dia 366

aqui estamos
na noite mais profunda

juntos
como no início desse longínquo primeiro dia

este caminho bissexto
como pretexto de um diário poético
chega agora ao fim

amanhã regressa um outro silêncio
um suspiro ou um eco

mas para haver poesia não são precisos poetas
nem versos nem poemas
para haver poesia
só é preciso leitores

a eles a minha gratidão 

noutra vida haverá mais

dia 365

o livro era velho
e lá dentro as coisas que dizia estavam gastas
comidas pelos olhos de muito leitor que por lá passou

ele já não lia
folheava as páginas apenas por instinto
e demorava-se horas nesse embalo

quando o chamavam para tomar a medicação
pousava o livro e suspirava
o verdadeiro romance era ele no asilo
e as horas intermináveis de uma loucura silenciosa

no fundo
ele era o livro velho e gasto que já ninguém lia

dia 364

talvez a minha língua embeleze a tua língua
e entre os lábios se elimine a distância para que se possam juntar

estas coisas de beijar e ser beijado
sempre foram delicadas
e inevitáveis
como as leis da física
e os feitiços e
de vez em quando
os eclipses

dia 363

para o ano não escreves

perguntam

ou avisam

ou afirmam

ou desconfiam

dia 362

cada ano tem 365 dias e seis horas
e de quatro em quatro juntam um
razão aliás pela qual escolhi este para esta contagem
achei que valia a pena percorrer esse dia a mais

apercebo-me agora
que um dos dias sumiu
perdido numa ressaca ou sugado pela preguiça

ainda vou a tempo de o meter aqui
tecer palavras entre os interstícios

se é possível guardar 6 horas a cada ano
e juntá-las ao fim de quatro
possível será escrever uns versos entre as linhas de cronos

dia 361

são leves traços de aguarela
e ela mergulha na imagem líquida da manhã
e eu espero-a à superfície
até que ela regresse
para que juntos possamos partilhar o café acabado de fazer

dia 360

solene a tarde que caiu de vez no mar
caiu como se fosse a última das tardes

agora todos os amanhãs testemunham a passagem do dia para a noite sem aviso
os pássaros sem norte largam os voos
e os gatos acordam nas vielas já sem sol
as próprias nuvens esfumam-se no céu sem ocaso

perderam-se os entretantos e as esperas
nada acontece
tudo vai sendo

dia 359

não estava em lugar algum
e perguntava-se porque demorava tanto tempo a desvanecer

os nevoeiros perdidos da memória
órfãos
a pairar
como o perfume dela

dia 358

há um novo conto da montanha do torga
em que o velho garrinchas ficou preso na serra quando tentava chegar a casa para o Natal
a neve e a noite chegaram depressa e obrigaram-no a refugiar-se numa capela

sozinho
juntou a imagem da nossa senhora e do deus menino
fez de josé e consoou

e lembro-me disto a cada ano
nesta noite mágica 

dia 357

a sombra vincada na parede esfuma-se em penumbra até entrar de vez na luz
e o que foi perde-se na luminescência e na poalha brilhante da claridade

curiosamente o contrário não acontece
a luz não se perde no breu
ela apenas se cala
e mesmo quando se apaga
um eco cintilante retine nos confins dos devaneios

uma faísca dura eternidades
mesmo se fugaz
tatua-se na retina do soterrado
nunca o abandona
nunca o deserta
permanece
insiste numa teimosia inamovível

dia 356

a imagem terá o seu simbolismo
e como uma aparição
revelou-se inesperada

era um poeta cego erguendo uma tocha

para quê
se era cego

perguntou-me o meu companheiro de bebida

por isso eu pensei em simbolismo
não o saberia explicar

um cego com archote
por que raio

talvez para os que não fossem cegos
para que o possam ver
já que ele não pode

ah
assim percebo

e
de acordo calámo-nos
bebemos até ser dia e o dono do bar nos atirar pela porta de volta ao mundo

dia 355

a busca constante da faísca
da centelha que inicie o derradeiro incêndio
para que o fogo se aviste desde o infinito da noite
para lá do horizonte
que as chamas se elevem pelo céu
e o pirómano se extasie

mesmo que estas chamas ardam nos versos
que apenas queimem as páginas do livro que ninguém escreveu ainda
e fulminem os olhos como os relâmpagos nas grandes planícies do oeste

a alma precisa de fins do mundo
ela implora por apocalipses e cataclismos
o espírito anseia pela grande tempestade dos sentidos


dia 354

um caminho empedrado e coberto de neblina
ninguém o percorre mas todos o conhecem

e desde que há tempo no mundo
perguntam para onde vai e para onde leva esse trilho

os que o espreitam não se aventuram
os que o cobiçam não se atrevem
os que o desdenham não são honestos

talvez um dia
alguém se perca
e por distracção por ele caminhe

assim começam muitos dos grandes feitos

por engano

dia 353

a água brotou por entre as pedras
vinda de uma mina profunda
invisível aos olhos mas viva na alma das gentes dali

e era pura
límpida como as manhãs frias e de sol no inverno

escorria pelas mãos seguindo as linhas da sina
como que um dilúvio desabando sobre o futuro aí escrito

no fim
as mãos sem rugas
lisas
o porvir oculto e indecifrável
ilegível até para o maior dos adivinhos


dia 352

o primeiro instinto seria cerrar os dentes e fechar os olhos
esperar pelo impacto e reagir

mas não
sereno
impávido
até mesmo aluado
levou o murro e não reagiu

cuspiu um dente ensanguentado
e perguntou



dia 351

talvez também aqui
neste silêncio
tenhamos que calar ainda mais

fazer silêncio no próprio silêncio
porque partiram demasiados este ano
e nisto dos versos 
o que os forja
é antes de tudo o resto
a comunhão e a fraternidade
a liberdade de estarmos tristes e saudosos
mas juntos
e apesar de tudo
gratos

dia 350

fui o primeiro a chegar
sentei-me no meu lugar e pedi a bebida do costume

tenho por hábito sentar-me de costas para a entrada
mas dessa vez não

quando o casal entrou
consegui assistir a tudo

e no tribunal meses depois
refutei os termos da acusação

ele tropeçou sozinho
disse eu ao doutor juiz

à noite
na cama com ela
a mentira deitou-se connosco

não se dorme bem quando há gente a mais na cama

dia 349

esgota-se o ano e esta contagem

pergunto-me o que vai sobrar

porque no último dia
no dia a mais que este ano tem
não vai caber tudo
não vai caber nada

dia 348

as lengalengas intermináveis
as longas onomatopeias da alma
as linhas da mão lidas sob o luar
os perfumes do nevoeiro em rodopio
as canções de amor de outros tempos
os escapes que acabam nos precipícios
os saltos para o infinito
a certeza da incerteza e o contrário ao contrário

a poesia escrita em sangue e cuspe
os gritos e uivos de quem vive como um cometa ou uma bomba que nunca acaba de explodir
a sede
sempre a sede
o desespero desta sede e a tenebrosa verdade de que nunca
nada
ninguém a pode saciar

mas saber
que assim é que vale a pena 

dia 347

tomou de assalto as paredes
e nas noites perdidas do verão
pelas esquinas e becos e ruelas
escreveu e pintou o mais que pôde
tatuou na urbe nocturna traços que o tempo foi engolindo

por vezes
nos meus passeios
reencontro um desenho ou um resto de frase numa fachada velha
e relembro-o
de como era louco e selvagem

e imaginário

dia 346

que luto pode caber num livro
ou que silêncio num outro silêncio

e que dia de chuva pode chover de novo
ou que manhã de luz não termina nunca de amanhecer

estas perguntas espalhadas na alma
e uma janela aberta para um mar enlouquecido
por onde o olhar sem açaime nem trela nem dono se incendeia em correria

a sede de morder o horizonte
de o ferrar até rasgar
para que céu e oceano se despenhem de vez
ou
pelo menos
uma vez
para vermos como seria tudo isto

dia 345

o que procuro nisto
nunca é muito certo

às vezes um exorcismo
outras um jogo de palavras

mas o que importa
é o verso final
pois é esse que se propaga no eco

como as últimas palavras de um condenado

dia 344

imitar murmúrios
e assim chegar ao silêncio

navegar os ruídos do dia
até não se ouvir mais nada

abraçar a noite
e o véu negro da madrugada

cair para lá da gravidade
escrever o testamento e lê-lo em voz alta

deixo tudo
a todos

dia 343

ardemos
e no incêndio chamas
o verbo ou as labaredas
não sei

mas ontem sonhei que era o meu último dia
e o fogo de hoje confirma que reencarnamos na explosão dos nossos corpos
e então
o último dia afinal foi hoje

amanhã
pela manhã
voltamos a colher lenha

dia 342

os venenos e as curas
a nostalgia e a apatia
as longas horas de espera e os sonos sem sonhos
as convicções e os abandonos
as entregas e os furtos

e o infinito
que um dia acaba para sempre
como um eco

dia 341

eram sombras
e cobriam o quarto
talvez umas meias no chão
provavelmente atiradas durante a noite quando calor da cama já era demasiado

dormiam

e neste cenário
para além deles e das meias no chão
a voz do poema também presente

se um deles acordasse
será que se assustava com a intrusa
e que no sobressalto o outro acordaria também
e será que a voz perante os olhares de pânico
se escapava como um felino pela porta

estas perguntas ficam sem resposta
pois o sono era pesado e a voz apenas sussurrava

dia 340

da janela dá para ver durante toda a madrugada
um semáforo a soluçar até ao infinito

e nas noites de chuva
sobre o vidro molhado de mil gotas
a luz multiplica-se mil vezes
todo o universo replicado nessas bolhas
e o olhar
perdido
mergulha nelas até o sono tudo igualar

dia 339

mais um daqueles que faz de cambalear uma arte
pondo-se a discursar no meio do bar para todos ouvirem
como se não tivéssemos
cada um de nós
mais nada para fazer
como se as nossas bebedeiras não importassem 
como se um bêbado fosse mais que outro bêbado

mas lá dizia o homem coisas sem sentido
até que uma música começou a tocar
e ele
encarando as coisas do amor
parafraseou Jacques Brell
e antes de cair para o lado disse

não me deixes pas

dia 338

o pó espera
a cinza já não

dia 337

coisas assim
como uma vela a arder
a insistir na chama
a teimar no fogo
a resistir pela noite
decidida até ao fim
incorruptível

e se acaba não é por ela
acaba porque o mundo é finito
e as coisas assim
como uma vela a arder
e a insistir
e a teimar
e a resistir
pertencem ao infinito

dia 336

dormem num mar silencioso
esperam nas insónias e nos suspiros
conspiram até transbordarem da alma
em pranto
ou em soluços
ou
por vezes
em colapso
como os castelos de cartas

anónimos
livres e melancólicos
fadados ao esquecimento
efémeros como os primeiros flocos de neve

dia 334

o céu e nada mais
que ele se anuncie numa tempestade derradeira

e usar estas frases como lema
nem que seja a fazer de conta
que isto de simular uma existência prende-se muito com a pose e com o estilo

pelo menos ter a decência de enganar as gentes
mas fazê-lo com classe
com a vaidade de um pavão que nem sabe que está depenado mas que nem isso importa

o céu e mais nada
e uma gabardina
e uns óculos de sol
e um humor tão corrosivo que entre a gargalhada e a vergonha e a melancolia nasça uma dúvida cheia de certezas

e claro
uma bebedeira daquelas

dia 332

uma coisa sem nome

era isto que ela dizia enquanto dormia
e eu nunca cheguei a acorda-lá nem a perguntar-lhe que coisa seria

e assim sem nome ficou a coisa
até hoje

dia 331

o rosto
morará sempre no mesmo lugar
nas estrelas cadentes de um sorriso
no sono que se evola pela tarde
no espelho que o devolve
no quadro que envelhece
no retrato imperfeito da infância
na lembrança baça de uma paixão
numa nuvem de passagem
numa pedra mais eterna

dia 330

o rumor de que estava vivo
de que disse às pessoas que não estava em lado nenhum
e de que as pessoas
ainda assim
apareceram

dia 329

pé esquerdo
número 10
e nunca se jogou tão divinamente à bola

um dos meus sonhos
era receber um passe dele e fazer um golo

da magia desses desejos de crianças sobra sempre um pouco
e ainda hoje
se pudesse escolher
gostaria de ter sido canhoto

dia 328

vai ser um daqueles que hesita
que se demora na dúvida
que receia existir

procuro dar-lhe alento mas talvez seja mesmo uma causa perdida

olhamo-nos e anuímos
o melhor a fazer é recomeçar
apagar tudo e recomeçar

no entanto
também nesse acordo cresce a incerteza

porque não aguentar
deixar que se escreva e deixar que se leia
que mal pode fazer para além de um poema mau andar por aí

decidimos finalmente
assim fica
assim é

que seja o que a poesia quiser
o arrependimento poderá ser uma forma de se estar vivo
já muita palavra eu falhei para que umas quantas mais não possam escapar



dia 327

um poeta russo com vários medos e um arrependimento

lamento não ser fogo

e o sangue do poema era sujo e lamacento
como a água nas poças esquecidas do inverno

estas minhas leituras fugazes e ocasionais
despertam por vezes a sensação antiga de que outras vozes há que desconheço por inteiro
como se nascessem de um outro caos que não babel

há qualquer coisa que estremece entre o silêncio e o ruído
uma entidade inominável

dia 326

as constelações
que se desenham
não nos pontos luminosos das estrelas
mas no negrume que existe entre eles

é o silêncio que se revela
o infinito das distâncias
os vácuos das irrealidades

como quando se dorme sem sonhos
como quando se era antes de se ser
como se será depois de se ter sido

o eco do silêncio

dia 325

o que fazer

a garrafa vazia
o pão seco de ontem
o frigorífico avariado e a televisão perdeu as cores
passear o cão imaginário
fumar à janela o charuto esquecido de um casamento com décadas
voltar a ler os mesmos livros e esperar um final diferente
afinar a guitarra com as cordas gastas até que uma rebente
olhar as fotografias limpas à pressa na lide semanal
os quadros de sempre nas paredes de sempre
ir dormir
não conseguir adormecer
levantar e passar o dia em pijama
escrever
rasgar
escrever de novo

tudo isto ele disse-me enquanto lavava as mãos
e eu nem sabia que ele escrevia
as coisas que se descobrem junto aos mictórios

dia 324

dos abismos das coisas banais
por vezes brota um gesto definitivo que não significa grande coisa

talvez por isso as coisas banais carreguem o peso do silêncio
talvez por isso a rotina seja a verdadeira revolução
ser-se indiferente às coisas mundanas
semear as emoções aos poucos num ou noutro esgar dissimulado

o grande grito adiado para as noites de luar
os uivos para as tardes ébrias de sábado
os gemidos para as ressacas épicas de domingo
os poemas para as madrugadas infinitas de outono



dia 323

a geografia dos corpos
explicada em golfos e estreitos por entre os lençóis
em penínsulas e ilhas de caracóis

dia 322

a viagem fora uma descida à demência
e convenhamos que é sempre mais bonito dizer estas coisas em verso

porque toda a história foi a mentira
mentiu que mentiu
e no fim desse exagero sobrou a loucura e um desespero
e tudo isso num bolero
acumulando energia como o oceano ao recolher as ondas antes de lançar o maremoto

quando por fim já os olhos ferviam e todos sabiam o que ia acontecer
já era demasiado tarde
o homem já estava para lá dele mesmo
tudo o resto ficara deste lado

dia 321

repleto de secretismo e sem pressa
atravessou o jardim enquanto a própria sombra o seguia

era daqueles seres que conhecia o sabor das cicatrizes
tinha um quê de felino e um quê de neblina

não mais foi visto
mas ainda hoje
por vezes
parece que por entre o piscar de olhos
a silhueta se desenha e refaz o caminho

dia 320

ela escrevia coisas
eu bebia café
a manhã era de luz e a preguiça de domingo

e este cenário imaginário desfalece
porque até o que se inventa alguma substância terá de ter para que se sustente

ela não escrevia coisa nenhuma
e o café que bebo sem açúcar nunca mais me soube tão bem como quando o adoçava
nem amanhece e chove sempre num cansaço derradeiro

mas até este descenário se esfuma
pois também ele não carrega uma voz dentro da voz

ela não escreve é certo
mas o café puro e negro conquistou-me
e as manhãs são tardes onde o corpo repousa

o sentido disto é o de sempre
um verso de cada vez
um verso
por cima do outro

dia 319

acabo de ler um poema
e depois de escrever vou voltar a ele

não sei se será o mesmo ou se mesmo eu serei eu próprio
porque a cada verso vamos sendo outro e a cada leitura outro texto é o que se leu

e neste carrocel de identidades
fica a vertigem
fica sempre a vertigem
e a tontura e o leve desmaio antes do renascer

isso
renascer
caminhar no esquecimento para que tudo seja novo uma vez mais

como no amor
como na morte
como na escrita
como nas promessas e resoluções

dia 318

pensei que pudesse escrever
equinócio
ou
prismas
ou coisas do género

e que assim o resto viria

mas hoje não
hoje vai ser mais difícil
hoje vai doer um pouco mais

dias há em que as palavras não chegam

dia 317

forjar com o fogo dos relâmpagos os versos definitivos
ou não
talvez baste a saliva e o sangue e o suor a manchar farrapos
ou não
quem sabe se calhar os ventos e a voz sejam suficientes
ou não
gestos e intenções
ou não
sonhos desejos 
ou


dia 316

olhava o chão
encostada à porta

nunca soube o porquê nem o que sentia nem quanto tempo assim ficou
mas era daqueles olhares em que dava para perceber que se por acaso se desencostasse
toda a casa ruiria e o mundo inteiro iria atrás

dia 315

as cartas não diziam grande coisa
talvez porque já ninguém sabe escrever cartas
ou ninguém as sabe ler

o que diziam tinha que ver com o aconchego das palavras certas
mas as palavras eram as erradas

na verdade
as cartas eram minhas e eu nunca as cheguei a enviar

cartas em silêncio

dava um título dum livro

dia 314

por vezes
antes de começar
vasculho nos outros
busco nos livros e nas gavetas e nos cadernos

não
não é inspiração que procuro
somente um empurrão
daqueles que fazem falta quando à frente o vazio imenso se levanta

dia 313

até agora
o único breve mistério que me visita
é ainda não ter sabido morrer

estas palavras
ditas por um bêbado
ressoam pelo bar

eu fico no meu lugar a assistir
ouço as tiradas ébrias de cada um
umas melhores do que outras
vou bebendo e retocando a maquilhagem
ou o contrário
ou é ela e não eu
não sei
não interessa
a hora do fecho chega
a madrugada é tão densa que até a própria noite ressaca


dia 312

para lá do significado de uma palavra
digamos que por detrás das folhas do dicionário
nem na frente nem no verso
por trás de tudo isso
sobra
nalgumas delas
a voz final e definitiva do que se quer dizer
mesmo quando não sabemos o queremos dizer

o rumor que vibra desde a fornalha da criação do verbo
que sopra dentro do dentro
que sustém os uivos impossíveis de conter
o rumor que trepa pelas tripas e pelo âmago acima
até rebentar pelo lábios e pelos olhos e por um desmaio tal que damos a volta da consciência
até sobrarmos apenas em suor e sangue e lágrimas

e livres

dia 311

veladas as palavras
e desconhecida a passagem
ainda assim
não hesitou

fez-se ao caminho sem ouvir nem ver
que o que importa é a jornada

no regresso
se o houvesse
o relato revelar-se-ia

se por acaso se perdesse
pelo menos o caminho desbravado estaria

que se seguissem outros
fossem náufragos como ele
ou paladinos como os mitos

dia 310

de novo ao longe no mar
erguem-se as nuvens sobre o sol
e um lento incêndio de fim de tarde derrama-se até ser noite

creio que o instinto navega por lá
como um pirata
sem plano sem rumo mas decidido

ele é a certeza inexplicável da premonição
e mesmo quando não acerta
mantém a teimosia inquebrável de que algures no labirinto das coisas possíveis
lá acertou e lá tinha a sua razão

o instinto é o último reduto daquilo que é invencível

dia 309

desta vez convidei-o para se sentar comigo à mesa

partilhámos várias rodadas e finalmente contou-me
uma vez mais 
a viagem ao oeste

o que sobra é a paisagem
como um despojo de guerra
a vista não acaba nunca
planícies infindáveis com as montanhas e as nuvens a correr no horizonte

enquanto falava íamos bebendo

o assombro é tal
que é fácil de entender que quem por aqui andou
falasse com os espíritos todos os dias

adorava ouvi-lo
sobretudo porque mais ninguém o ouvia
já que me confirmaram que à mesa só estava eu

dia 308

estava obcecado
o homem queria a todo o custo dizer uma coisa

no meu lugar do costume
a meio da minha bebida
observava-o ao longe

o que eu quero é que me digam
que palavra apenas foi dita uma vez

temia que me perguntasse a mim
eu não sou dado a pensamentos
nem a bêbados
nem a enigmas

acabei de beber e saí
o homem lá continuou na procura da tal palavra órfã de ecos

dia 307

os atrasos
sempre os atrasos

tudo em si é um desfasamento do instante preciso
nada existe agora

vivemos com a ilusão de que o passado e o futuro são irreais
mas na verdade
é o presente que revela o grande engano
o grande golpe

nada é nem nada vai sendo
ou foi ou há de ser

dia 306

os ramos nus contra a luz parda de um céu cinzento
a típica árvore outonal
e o mar por trás
imenso
ondas a despenharem-se contra as rochas cansadas
um insistir que data do tempo antes de tudo
o rugir imparável do oceano

e eu
aqui
escravo de um pasmo tão terrífico
que o que me sobra é um excesso de olhar
como se vomitasse a alma de uma só vez
e ela se perdesse no meio das ondas
deixando a carcaça do meu corpo na praia e o espírito estilhaçado pelos ventos

o que eu descrevo
é o infinito sim
mas é o infinito que acaba constantemente

dia 305

aos poucos
os golpes vão sendo mais fundos na carne do tempo

o eco já quase se extinguiu
pouco se ouve do que foi dito no início
o rumor agora é outro
é o do fim que se aproxima

curiosamente
o fim que se aproxima
traz tudo outra vez
acende as trevas do futuro
e sem vergonha
revela

vai recomeçar tudo de novo

dia 304

parada à porta com uma cerveja na mão
e um sorriso quase a desenhar-se nos lábios
o silêncio que tudo dizia e um último olhar antes de ir para a sala

assim me deu os versos de hoje

dia 303

eu nunca o tinha visto
mas parece que era um cliente habitual
e estava sentado na minha cadeira

não gostei e fiz questão de o dizer

passado algum tempo
o homem do bar veio ter comigo
disse-me que eu estava a falar sozinho

calei-me
sei bem que não é boa ideia meter-me comigo mesmo


dia 302

o templo em ruínas
e a ausência de qualquer prece

um silêncio com o peso do mundo
e no fim
um poema inteiro sem um único verbo

dia 301

os versos de ontem
hoje
os versos de hoje
mais logo

e assim simulo uma armadilha a cronos

dia 300

uma vez mais um quarto vazio de hotel
desarrumado
não muito
o suficiente para se perceber que lá dormiu alguém

curiosamente o único pertence presente
era um véu abandonado sobre a cadeira
uma das pontas a tocar o chão

a luz acesa e a janela aberta

quem lá dormiu
ou saiu ou saltou pela janela

tudo isto pensou o ladrão sem nada para roubar
de um véu não precisava ele

saiu

dia 299

procurei os versos onde os tinha deixado
já lá não estavam

até hoje não voltaram

imagino que um dia batam à porta
talvez
talvez não

se voltarem não sei se lhes perdoo
mas não sei se os vou culpar também

compreendo que quando se é poema
a fuga é um apelo tentador
como aquelas traças nocturnas que se lançam num candeeiro 

dia 298

lembro-me de ter tentado criar uma lembrança
de agarrar um momento qualquer e tatuá-lo na memória
de dizer para mim mesmo
aqui agora

fi-lo algumas vezes no passado na esperança de poder lá voltar
de saber
onde e quando

mas desses exercícios o que ficou foi apenas a ideia

sei que os fiz
mas nada mais
a recordação esfumou-se
caiu no poço de tudo o resto que não lembramos

a memória é líquida
não se agarra
escoa

dia 297

este poema não tem pais

o verso de cima não é meu
mas pareceu-me correcto adoptá-lo

dia 296

não posso deixar escapar
esta miragem

não sei bem de onde regressou
mas tenho sido inundado pelo céu e pelas danças de nuvens
e é-me difícil descrever esse deslumbramento

porque há tanto espaço entre a vertigem e olhar
que tudo é uma queda da alma
um pasmo sideral ver sob o horizonte longínquo essas montanhas de névoas
como imensas fumaças brancas cobrindo a abóboda celeste
imitando as nebulosas afastadas e silenciosas do cosmos

não sei
não cabe aqui o arrepio do espírito
ele é um relâmpago fulminante
temos que se por um qualquer acaso o conseguisse dizer
todo o poema implodiria

dia 295

as asas arderam pela noite
deixando um rasto de faísca e fumo mais negro que o próprio céu
a fénix renascida e incandescente
regressada de um lugar oculto
de uma catacumba qualquer

desenhou um largo voo sobre o horizonte até desaparecer

quando olhei à minha volta
reparei que ninguém se apercebera do milagre
hesitei em contar
percebi que mais valia guardar o segredo
enterrá-lo bem fundo em mim

quem sabe se um dia
uma outra garça mítica irromperia de mim em chamas iluminando um outro olhar igual ao meu

dia 294

o sangue coagulara entre as linhas da sina
e era agora areia negra que esfarelava entre os dedos

mas parecia que uma sombra se lhe agarrava às mãos
uma película invisível do crime
um tom
um timbre
um eco

jamais se livraria disso

compreendeu ali mesmo que num duelo até à morte
ambos morrem
um de vez
o outro de vez em quando

dia 293

lambia os versos que escrevia
era um ritual
como os felinos fazem às feridas e às crias

depois
lia-os à janela aberta para a madrugada
aos gritos

e tudo isto ela me contava enquanto olhava para o chão

a ser verdade
provavelmente acordava os vizinhos

dia 292

tinha um rosto de quem engoliu muito sol muito sal e muito mar
os olhos perdiam-se no fundo das rugas e tremiam levemente quando falava
reluziam como aquelas pequenas estrelas longínquas nas noites sem nuvens

o que dizia era sempre muito profundo e definitivo
monólogos de quem já tudo viu tudo fez e tudo sabe
ou quase

todos o ouvíamos com a atenção possível do momento
o sono pesava o álcool acabara faz muito e a chuva não ajudava

mas lá o ouvíamos

e o homem falava
dizia coisas incontestáveis que carregavam o peso das grandes verdades

quando se calou alguém perguntou

já está?

esperou algum tempo antes de responder
até que disse antes de se calar de vez nessa noite

vai-se estando

dia 291

fugiu o poema
como uma sombra no inverno
sugada pelo frio da noite e do sono

revela-se depois
espreguiçando na manhã de outono

a história do que não se escreveu dava para encher uma mesinha de cabeceira
mas por vezes somente os óculos de leitura lá moram
e se calhar um despertador a pilhas 
que nunca se gastam
como se agarrassem a existência a cada segundo silencioso

não
já não me lembro dos relógios a corda nem das botijas de água quente
nem das camadas de mil cobertores sobre o corpo nocturno
o passado já não suspira
já só jaz 

dia 290

mais uma vez
no meu canto e a insistir numa bebida já quente
o velho de sempre queixava-se da mulher

porque ela isto
porque ela aquilo

sempre à mesma hora
os mesmos lamentos

quando finalmente se calava
o homem do bar dizia-lhe em voz baixa

homem
tu nem tens mulher 

mas talvez fosse isso mesmo
não tendo mulher
o velho queixava-se dela com toda a razão 



dia 289

um verso ou dois
à deriva

e como todo o poema
por muito que se escreva e exista
por muito que se amontoe e apinhe
haverá sempre mais mar de folhas em branco do que poesia

por isso mesmo
todo o texto é jangada
e todo o poeta náufrago

dia 288

show a little faith, there's magic in the night - Bruce Springsteen

estes textos que estão para aqui
são o que são

alguns mais velhos e retocados
outros espontâneos
outros sem nada a ver com isto
como aquele que ainda não escrevi
e que falava de eu ler o teu corpo em braile mas que os meus dedos deslizavam para sempre na tua pele
e que o cetim da tua língua me saciava a sede que me atormenta
e que os ritmos do teu sono revelam um qualquer enigma impossível de resolver

não escrevi esse texto e ainda assim apaguei-o numa noite em que bebi até adormecer ao som do Boss

dia 287

tudo pronto
disse ele
tratei de tudo
concluiu

e então o que falta
perguntei meio interessado meio distraído no resto da bebida que custava terminar

então
falto eu
suspirou

percebi
às vezes
a única coisa que falta
a única coisa que se escapa pelos dedos do tempo
somos nós

dia 286

fez o luto dele mesmo
enterrou simbolicamente o corpo num grande prado irreal
vieram os amigos imaginários despedirem-se

encurralado na falsa morte que inventou
escolheu mudar de aparência
mas o espelho devolvia-lhe o mesmo espírito de sempre

conformou-se
não valia a pena morrer

deixou-se ficar
vivo até para lá do esquecimento

dia 285

os suspiros lentos da madrugadas
as neblinas do sono
os arrepios da preguiça
o cheiro de um pijama lavado
o fim de um filme que se arrasta
esta rotina de roer versos
o que resta de luz da vela que ela deixou sobre a mesa
o mar a respirar do outro lado das janelas
um carro a rasgar o silêncio
o livro que desistiu de ser lido
a guitarra silenciosa e ainda assim desafinada
o último verso
ou antepenúltimo
isso

dia 284

tatuou-se a imagem na caverna dos olhos
de tão nítida e intensa
de tão viva e tão real

anos mais tarde
quando tudo o resto que lhe entrava pelo olhar já se perdia
essa paisagem reluzia como no primeiro dia

o que era nunca chegou a dizê-lo
mas um sorriso sereno sustinha-lhe o rosto quando lhe perguntava


dia 283

a lua nasce e as sombras recolhem-se junto às esquinas e às bordas dos passeios

é a hora de esvaziar os copos
de saciar a sede antiga do verão e encher a alma com o outono

em breve tudo será coberto pelo silêncio da melancolia
e o perfume doce das esperas pairará no ar

o recolhimento das almas
mesmo daquelas que querem ferver para fora dos corpos

há torpores que têm o peso do mundo
a rendição momentânea do espírito
o abandono dos seres a um momento feito de nada

dia 282

deste espelho de mar e de céu
por entre estas miragens de ilhas
passam uma onda e uma nuvem

geminadas à nascença e à deriva no atlântico 
de onde surgiram não sei
mas talvez
agora que parto
as possa reencontrar em casa

a onda a rebentar no gilreu 
e a nuvem a derreter-se pelo Douro dentro

e como eu
ambas de olhar líquido e repleto de luz açoreana
ambas a duvidar se foi sonho se foi a sério



dia 281

o mar e o vento
e no meio labirintos de basalto
intermináveis e indecifráveis 
com poeira e areia negras
e o prodígio da vinha
que sorve o sal e o iodo e a luz
que mais tarde se cheira e se bebe
que mais tarde se recorda e se esquece
que mais tarde se traga e se trinca

dia 280

aqui há mais céu
cabem mais nuvens e cabe mais luz
e com isso se perde o olhar
naufraga porque se perde
e à deriva se reencontra até se despenhar num azul mais profundo ou num verde mais intenso

aqui sobra ar
porque nem o mais amplo dos suspiros esgota esta imensidão
sobram silêncios e estradas vastas que entram pela montanha
sobram orvalho e pedras negras que de terem passado pelo inferno repousam agora junto ao mar como se nada fosse

aqui sobra tempo
que se demora como quando um assombro se revela
e não mais pára de se revelar

dia 279

amanhece ao largo
longe da janela e dos olhos
a luz tem de percorrer o próprio mar até encontrar um pedaço da ilha
vai chegando e entrando pelo quarto 
até se emaranhar nos teus caracóis

e então sim
é dia
a noite e o sono dão a vaga
é o meu turno que se inicia

dia 278

lá em cima o maior dos silêncios
uma paisagem lunar mas com a gravidade bem presente e a lembrar-nos que há um preço a pagar pela subida

mas os infinitos valem a pena 
sobretudo eles valem a pena 

se nos puseram aqui
se nos ensinaram a andar
se nos disseram que esta vida são dois dias

como não subir
como não chegar lá em cima
calar e ao mesmo tempo uivar como os lobos nas noites de febre e de luar?

dia 277

no meio
onde o infinito se estende para todos os lados
e a solidão se encontra até nas rugas das pedras

as aves de passagem como as nuvens que se agarram aos montes até se derreterem no mar outra vez 

isto nasceu de espirros monstruosos vindos das entranhas do inferno

e o que sobra
é um milagre e um absurdo

aqui era suposto apenas passarem ondas e ventos
seguindo suas rotas

mas agora
não passam
ziguezagueiam por estas ilhas
atordoadas as ondas e confusos os ventos

aqui não era suposto haver nada
mas há

dia 276

uma janela aberta sobre o mar e a outra ilha ao largo
uma cauda de baleia e uma gaivota em mármore que ondula
o silêncio de um vulcão velho escondido para lá das nuvens 

falta-me o engenho de dizer isto como deve de ser
mas não faz mal
tenho os olhos cheios e a transbordar
o deslumbramento é sempre fruto de uma emboscada da emoção 

dia 275

à Isabel e ao António

aguardo em resguardo seguro
antes de iniciar o périplo

a amizade abre todas as portas
colhe todas as ceifas e cuida de todas as ânsias

sem estar em casa
estou em casa
e grato estou

dia 274

à deriva na véspera que insiste em durar
nadas como podes no mar branco do silêncio
tentas-lhe um eco um sopro um murmúrio um segredo

e a resposta é sempre igual
só uiva quem tem a alma a transbordar
por vezes ela aninha-se junto às sombras e penumbras

há que deixá-la em paz


dia 273

não há nada hoje
nada que te inspire e te ajude no início do verso
e isso é bom

é bom porque a inspiração é uma mentira
e as coisas acontecem porque sim
e também porque não

as luzes da sala adormecem aos poucos
e apesar do piano que puseste a tocar
há um silêncio a roer a noite e a implorar que vás dormir
mas nunca vais dormir
ou melhor
vais sempre dormir um pouco depois
um pouco mais tarde
não sei porquê
mas é assim
adias-te
e amas e odeias esse teu atraso

dia 272

uma coisa é a borda do lençol na cama
a que dobramos até nos cobrir o corpo antes de adormecer

outra coisa é o profundo do lençol
o meio da cama e o poço no qual caímos durante a noite e o sono
aquele meio onde nos perdemos em febre e naufragamos um no outro
esse mar desconhecido e nocturno onde te desencontro e encontro entre insónias e despertares

esse lugar sem nome mas com sabor a pele ao acordar na preguiça matinal

dia 271

poderia escrever sobre a promessa de uma ilha e uma montanha
de todo o mar à volta e de um horizonte mais longe visto lá de cima
de cetáceos a rasgar a película encorrilhada do oceano
de pedras negras e vento a saber a sal

mas não
prefiro esperar e escrever sobre a promessa de uma ilha e uma montanha
de todo o mar à volta…

dia 270

escreveu durante algum tempo até que parou
levantou-se e bebeu um copo de água
foi até à janela
o caderno sobre a mesa esperava

deixou-se ficar
o vento passava

a solidão que esperasse um pouco mais
não fazia diferença
nunca
na história destas coisas
ficou um verso por escrever

dia 269

era um individuo todo ele metido atrás dos óculos
a figura mingava e cabia nas lentes

olhava o meu jardim e dizia que lhe lembrava uma cortina japonesa
ia puxando os óculos ao nariz com a ponta do dedo

eu ficava em silêncio
demasiado ressacado para contrapor uma ideia ou esmurrar-lhe a cara
até porque os óculos pareciam sólidos
e provavelmente as minhas mãos pouco habituadas a socos sofreriam com o impacto

no fim
quando ele foi embora
fiquei a pensar na cortina japonesa

até hoje

dia 268

sãos as quedas
o despenhar do espírito nas águas profundas do esquecimento

são os gestos solitários dos loucos
o desespero de ter no corpo um outro corpo feito de fogo a querer sair

são os uivos
as fúrias que mordem a própria língua e que rangem os dentes até quebrarem

são os poemas
as ânsias que se escapam pelas palavras como os pássaros assustados pelo tiro da espingarda

és tu
a fruta doce do verão e o aconchego de um cobertor no inverno

dia 267

uma certa forma de prever o movimento do vento
e de como cai sobre os ramos e as folhas
e de como dança nos teus caracóis
e de como se lança sobre a camada enrugada do mar e o encorrilha até ao infinito

os voos das gaivotas que desenham os caminhos insondáveis da inspiração
e que encontram sempre um caminho
uma trajectória
um ir

dia 266

o que ele disse era verdade
e um vestígio de emoção ainda escorria do rosto
uma última gota de qualquer coisa a vibrar nos olhos
até que a cara se petrificou em estátua parda e o semblante neutro revelou-se

nós todos ficámos sem saber o que fazer
se acudir
se apenas aceitar que quando se despeja a alma é natural que os despojos sejam feitos de silêncio e de quietude

dia 265

eu queria inventar um amor
ou pelo menos
inventar melhor os amores que fui perdendo
certamente para os perder de novo

ela dizia estas coisas ao telefone
eu ouvia mas era a falta de cerveja no copo que me prendia grande parte da atenção
até porque ela estava numa mesa mais afastada
e não era certo que as palavras que me chegavam eram as que realmente ela dizia

imaginei então que não sendo essas as palavras
os amores perdidos já não o eram
e nada havia a inventar
apenas um copo para voltar a encher

dia 264

esquece o corpo
deixa-o para trás
leva somente o brilho do sorriso e a sombra das mãos

colhe as tardes lentas do outono até serem noites de inverno
aconchega-te num cachecol colorido
e caminha contra o vento

o carácter vai-se construindo nessas pequenas coisas

dia 263

avisam-te sobre os perigos de não cumprires uma promessa

mas esquecem o perigo escondido das promessas cumpridas 

dia 262

Entrou decidido e sentou-se à minha frente. Não o reconheci. Começou a falar enquanto eu bebia a última cerveja. Já antes dele entrar, essa decisão fora tomada.
O que dizia eu não percebia bem, mas evocava gente toda vestida de igual que se juntava para escrever. Sobre isto, sim, eu já ouvira falar e testemunhara da veracidade da coisa.
Lá continuou mais algum tempo até se despedir, levantar-se e, tão decidido como chegou, saiu.
Terminei a cerveja, quente e murcha. Paguei. 
Cá fora, de regresso a casa, vi três homens vestidos de igual. Entraram para uma casa abandonada. 

dia 261

recordo os jardins lavados pela chuva
o frio da manhã e o silêncio que antecede o retomar das coisas

nas árvores e na relva
os corvos vão pintando manchas de breu

a promessa do outono a chegar 
e de que o tempo
a partir de agora
vai passar mais devagar

mas
como sempre
vai passando

dia 260

o que o atraiu foi o cheiro a café, pão fresco e um sorriso bonito à porta

quando entrou e viu em roda um grupo de gente a meditar
juntou-se e meditou também

no fim
lá bebeu o café, comeu o pão e sorriu de volta 

amanhã talvez voltasse 

dia 259

sobre as nuvens dissertou longamente
descreveu-lhes os esquissos em detalhe
e as danças lentas ao longo da tarde correndo o céu
como a espuma de uma onda perdida no meio do mar

a este prazer dedicava-se sempre que a melancolia lhe chegava sem avisar

sabia que por cima
nas pinceladas do firmamento
haveria sempre contornos a descobrir
mesmo quando carregado de chumbo e a chuva a cair
nuances existem nos tons de cinzento

não se explicam as cismas
nem as manias
a escolha que se coloca é simples:
ou as ignoramos ou delas fazemos uma forma de se ser gente
às loucuras apenas se entregam os corajosos

dia 258

um ofício é um ofício
e anos a fio
desde novo
tirava terra de um lado para por ao lado

as mãos calejadas como que um calendário
de todas as campas que abriu

mas porque também os coveiros se apaixonam
quando foi da mulher
pediu a outro que abrisse o buraco
limitou-se a deitar o ultimo punhado
e pensou
quando morrer a última pessoa
não haverá quem a enterre

dia 257

com tempo
pousa a alma
estende-la no fio do horizonte 
põe-na a arejar nos ventos do infinito 
sacode o pó e os cheiros 
purifica-a até à nudez

veste-a uma vez mais
com a alegria das manhãs lavadas
e regressa ao caminho

dia 256

à flor da pele corre uma brisa
percorre os poros e contorna os sinais
e eleva-se ao arrepio

vai e vem
como um soluço telúrico

eriçam-se os sentidos
num espreguiçar que acaba por desprender os lençóis

viro-me
e adormeço de novo

é o meu momento favorito no sono 

dia 255

ouves ritmos criolos hoje
que te embalem nessa sedução sem fim
que a seda da língua te envolva 
que essa febre te possua

eu irei mais tarde
colher tudo isso na tua boca e no teu corpo

dia 254

as luzes vão cavando na escuridão
e a loucura das traças rodopia nos lampiões

faz calor ainda
apesar de ser noite
a terra engoliu o sol
aos soluços durante o dia
e agora rumina uma febre nocturna

eu respiro
devagar
que o há momentos
em que somos nós que mandamos em Cronos 

ou assim o pensamos
e assim ele nos engana

dia 253

a noite caiu-me de novo em cima
não houve verso que resistisse

foi preciso que a manhã inteira se derramasse
para colher poesia

dia 252

deixa passar a corrente
e esquece-te de te lembrares
que há dias que se esvaem como os nevoeiros lentos das manhãs 
e quando reparas
já é amanhã 

os ontens caíram em silêncio
mas honrados 

dia 251

um pequeno vislumbre
uma amostra somente

e perceber o privilégio
a sorte

são estes os dias que valem a pena

dia 250

o calor e o cheiro a xisto que não se explica
o rumor de um grilo incansável pela noite
os dias que se alongam até ao último cacho desengaçado

estas são as promessas dos meus próximos dias

dia 249

talvez possamos descansar numa sombra
deixar que o sol do meio-dia passe
saciar a sede e esperar que o sol desça um pouco

talvez aí possamos olhar para a copa da árvore
reparar na folhagem a peneirar a luz e o calor
ver os veios nos ramos e no tronco
imaginar as raízes e os silêncios subterrâneos

e então quem sabe
comecemos a falar
a contar histórias e medos e desejos

poderemos por fim voltar à estrada
com menos calor
e menos peso na alma

dia 248

a seda de uma língua
a textura do leite
um acorde de piano

e neste aparente caos
tudo faz sentido

seja um beijo
uma sede antes de ir dormir
ou Chopin de imprevisto

dia 247

há muito que ninguém te conta um segredo
nota-se nos olhos
tremem quando sussurro um verso
revelam uma ânsia e uma vertigem

não serei eu a dizê-lo
não sei nenhum
nunca ninguém mos falou
mas sei que existem
que roem as penumbras e assombram o sono

eu apenas murmuro o que se revela
como a voz do narrador nos romances
ou a chuva quando cai

dia 246

recordo uns versos sobre alguém a escrever num barco
porque a esta hora vejo os cargueiros ao largo
à espera que o porto reabra
as luzes como uma grinalda no fio do horizonte
e pergunto-me se esse alguém ainda lá está a escrever

porque nunca acaba o que é dito no silêncio

dia 245

talvez voltar às coisas simples
correr
beber um café
olhar aquários vazios
ler de novo os livros que te marcaram
pontapear uma bola
comer um pacote de bolachas inteiro

ou então inventar um passado
mentir a propósito da cicatriz que tens no braço e da pequena falha no sobrolho
lembrares de que nunca foste loiro nem tiveste olhos azuis
que a tatuagem no ombro se apagou porque na verdade nunca a fizeste

queimares os cadernos de poemas no grande incêndio romântico da tua imaginação

ou então
em vez de tudo isso
ires dormir
que já é tarde

dia 244

até veres uma lua a nascer
não tens o direito de uivar

mais um bêbado com suas tiradas a estragar-me o sossego da cerveja
não que me falasse directamente
mas falava alto para todos os que estavam sossegados e sentados nos seus cantos

há gente assim
gente que tem coisas para dizer
e nada nem ninguém os cala

assisti a socos e navalhadas
e ainda assim
essa gente
mesmo ensanguentada e de olhos pisados
acaba por dizer sempre mais qualquer coisa

merecem por isso o nosso respeito

dia 243

o telefone tocou de madrugada
atendi

do outro lado ninguém falou

imaginei que fosse um jornal velho a lutar com o vento no chão
não sei porquê
talvez fosse do sono

desliguei

de manhã tocou de novo
era engano
perguntei se tinham ligado durante a noite
disseram que não
pediram desculpa

a meio da tarde
quando mais uma vez o telefone tocou
não atendi

arrependo-me até hoje

dia 242

ela foi dizendo coisas enquanto olhava para a televisão desligada

no fim do dia
o que importa
é que sobre um pouco de dinheiro
não muito
apenas o suficiente para apostar que foi o último

à volta dela os outros ouviam até ser hora de recolherem todos aos quartos
e aos coletes de força

dia 241

leu livros que diziam muito pouco
e outros que diziam demasiado

dias houve em que não bebeu muito
e outros em que bebeu excessivamente

noites que passou em claro
e outras em que desmaiou

nesse aparente equilíbrio das coisas
somente se apercebeu dos extremos

nunca navegou um mar cinzento
ou a luz o cegava
ou o breu o cobria

ou desesperou
ou rejubilou
nunca se contentou

dia 240

pão, vinho, amor e cólera
disse Neruda

e um quarteto desses daria um bom concerto

dia 239

confessou
que voz era coisa que não tinha nem nunca chegara a ter

de olhos vermelhos de cansaço e o corpo despejado no sofá admitiu que não era ele que escrevia
que encontrara umas pessoas
uns escritores sombra a quem pagava em bebida os escritos que depois assinava
eram homens e mulheres vestidos de preto que se juntavam em recuados e caves de casas velhas para escrever
eles tinham barba e elas cabelo comprido
falavam em rima e nunca riam
apenas sorriam

que mos podia apresentar disse-me

recusei amavelmente
e depois de me afastar vesti o meu casaco negro e passei a mão pela barba

dia 238

a última vez ainda tudo era a preto e branco
as noites eram perturbadas pelo barulho intermitente de um frigorífico velho no quarto
a cama quente demais e as manhãs tão longínquas que a insónia teimava como uma canção que não sai da cabeça
o tempo tinha mais tempo por dentro

agora
tudo diferente
as cores do abandono pintadas nas paredes
a cama sem colchão e um frigorífico desligado e ferrugento no chão da sala
o silêncio inconfundível das ruínas
o tempo não passa... o tempo já passou

dia 237

chovia forte lá fora
eles estavam na mesa ao lado da janela

eu no lugar do costume
no canto
com meia cerveja a morrer no copo

mil gotas desciam no vidro formando lanços de lágrimas
e o reflexo do rosto dela silencioso
multiplicado por todo o vidro

não falaram até saírem
os cafés bebidos e perdidos sobre a mesa e um guardanapo

a solidão é isso
uma mesa desarrumada com chávenas de café fora dos pires sem ninguém

vá lá que ainda me sobrava cerveja morna
sempre era um pequeno aconchego antes de sair
também eu
para a noite chuvosa

dia 236

reescrevi mil vezes os versos de hoje
e mil vezes insuficientes foram

porque insiste uma palavra em aparecer
e não sei o que fazer com ela depois

o sensato seria não escrevê-la
evitar o ruído atabalhoado do que se seguiria

mas aqui estamos
e uma pessoa quando olha de frente o inevitável
ainda se agarra à teimosia do impossível
do milagre 
da escapatória 

dia 235

eu tu ele ela nós vós eles elas
mas na verdade
agora
é

você

dia 234

deixar as constelações no céu
não lhes mexer

e o mar para lá da janela
que entre mais tarde

o copo de água na mesa
e a vela a tremer de luz até sugar o pavio e esfumar-se em penumbra

dia 233

os ossos retratados num quadro
mas ele não sabe os nomes dos ossos
nem sabe sequer se são humanos

no entanto
eles ali estão
desenhados ao detalhe
limpos de qualquer epiderme
e à volta restos de flores e de terra

uma sepultura a céu aberto
de alguém ou de algum bicho

e ele e o gato olham o quadro

dia 232

tinha uma voz aguda
e falava com a certeza de um louco

o mundo vai acabar
o fim aproxima-se

eu ouvia
como sempre
bebia e anuía mas não o convencia

ele insistia
e abria os olhos até quase saltarem fora

o mundo vai acabar

até que me levantei
e o deixei sozinho
mas antes de sair perguntei-lhe
na minha voz grave e olhos meio cerrados

e que tenho eu a ver com isso?

já cá fora
tropecei e esfolei um joelho


dia 231

a sede instala-se
seca a garganta das coisas
até elas desaparecerem nelas próprias
implodindo sem rasto sem sombra nem eco

um dia escreverei sobre essas coisas
pedaços de pedra a resistir ao deserto
garrafas partidas em entulhos vasculhados por gaivotas
farrapos a fazer de cobertor aos sem-abrigo
beatas fumadas até ao filtro arder
gatos esfomeados a fugir nas vielas
tatuagens com nomes de amantes que já não o são
livros por ler
beijos nunca trocados
guitarras sem cordas
cinzas de lareiras com mais de cem anos
ruínas do que nunca foi monumento sequer

e quando escrever sobre essas coisas
a sede saciar-se-á

dia 230

antes
nesta sala
três silhuetas de mulher e uns arcos compunham o cenário
havia também um quadro a preto e branco

hoje
outros quadros e janelas maiores abrem sobre o mar

as madrugadas são iguais
o som da televisão da vizinha
talvez mais carros rasguem o silêncio lá fora

mas
na verdade
a página em branco contém o mesmo abismo de neve quieta e muda
e cada palavra surge malgré moi como dizem os franceses
e os versos amontoam-se seguindo a regra da gravidade poética

o segredo está em insistir
insistir até que doa
e sobretudo
até que deixe de doer

dia 229

o primeiro verso era sobre o regresso da chuva
todos os outros eram um desastre
talvez se aproveitasse o terceiro
mas mesmo assim decidi apagá-los
sacrifiquei o primeiro por solidariedade
mesmo que não merecesse
pois falava desta chuva de verão que vejo cair pela janela

mas a poesia tem um código e uma irmandade
e por vezes também
um carrasco

dia 228

a longa caminhada pelo esquecimento
faz-se por um jardim sem pássaros
sem flores
e com um lago com água tão serena que até os nenúfares desconfiam

por vezes num banco senta-se uma dúvida
outras vezes uma impressão
e os lábios no limite de se abrirem para dizer uma palavra acabam mudos e em silêncio

dia 227 - ciclo

não pintava há muito
tinha as telas espalhadas pelo chão
inacabadas nos traços e incompletas na alma
as tintas secas quebravam sob o peso do calor
e restos de cerveja em garrafas quase vazias azedavam pacientemente

o gato não parecia interessado no bloqueio criativo
e miava quando tinha fome

quando finalmente voltou a pintar
veio o inverno e as manchas de humidade nos cantos da sala

optou por beber chá e eram as chávenas que agora se multiplicavam pelo chão
o gato dormia por cima de uns trapos manchados
a alma e o traço voltavam aos quadros

dia 226 - moby dick

nem ela nem ele
pouco apareceram até ao momento
e após quase quatro anos de leitura e mais de metade do livro passado
temo que quer o capitão quer a baleia
tenham desistido de mim


dia 225

tentei escrever uma história
mas a história não se escrevia
teimava em não se contar
ficava a meio
afastava-se do fim e arrastava-se em longos adiamentos de si mesma

ela espera ainda
como se fosse eu a ter a chave do seu desenrolar

entretanto
vai-se desbotando
petrificando na indefinição que sempre foi

hei-de tentar uma vez mais
e saberei enfim
se por baixo dessas palavras mumificadas
palpita um coração ainda
ou
se como as figuras de pompeia
elas se desfazem em cinza e poeira 

dia 224

quando o vento traz ecos
e parece repetir sempre o mesmo uivo
e as gaivotas disparam pelo céu sem rumo
e os arbustos contorcem-se num emaranhado de ramos
e as nuvens passam no alto esfumando-se
e as gentes recolhem a casa
e o mar ergue-se espreguiçando-se após um longo sono
e as palavras revoltam-se
e os carros passam apressados pela rua roendo o alcatrão
e os cães ladram nos jardins escondidos
e tudo o resto parece serpentear em desnorte

a lua imóvel e irredutível
tatuada num disco pálido
cala-se em luar sereno

dia 223

gravar o nome na areia
na mesa da escola
numa árvore
na pele
numa pedra com outra pedra

morder uma língua
arranhar a noite e o calor do verão
gritar numa almofada até faltar o ar

tudo isto
o instinto de dizer que se existe
nem que seja ao espelho
ou à folha em branco
ou à solidão

dia 222

um vestido vermelho
era tudo o que lembrava 
eu ouvia mas por vezes a atenção resvalava como aqueles grãos de areia nas dunas
mas ele insistia que o vestido vermelho era a derradeira recordação que tinha
eu acenava que sim
mas ele continuava

uma pena
que a memória não fosse dela nua
sem vestido vermelho algum

dia 221

falava-se de onomatopeias
e pensei que para além dos bichos
do fogo
da água a cair numa fonte
de uma porta a fechar-se com o vento
também o silêncio tinha a sua:
a poesia

dia 220

um dia cheio
de vinha
de sol
de pele
de amigos e gente tão boa como fruta madura
de nós
de ti
e de uma lua impossivel e irreal

dia 219

longe do mar
nas planícies silenciosas do interior
quando a lua se ergue
ergue-se mais alta

não sei explicar
como se houvesse mais céu entre o luar e o olhar

talvez seja outra coisa
talvez haja mais olhar entre o céu e o luar

dia 217

pela tarde o infinito ficou suspenso 
demorou numa onda que deslizou pelo areal inteiro
cobrindo de espuma as pegadas e as conchas e as pedras
ao longe o teu corpo deitado e um perfume a sal voando com o vento

o meu naufrágio final em versos

dia 216

o corpo nunca se cala
nem mesmo depois de morrer

os sopros da matéria fazem-se ouvir no silêncio da noite
seja um coração a bater 
seja uma entranha a torcer
seja uma carcaça a apodrecer

um corpo fala até ao infinito

dia 215

antecipas a cama
sabendo que uma lua grita cheia na noite lá fora
e grilos e cigarras rompem o silêncio rangendo seus cantos indecifráveis 

o vento sopra neste lugar
trazendo uma réstia de mar e de sal

esta é uma noite perfeita para que as almas se abandonem ao sonho
ou que os sonhos se abandonem às almas

dia 214

viemos por estradas desertas
o carro fez as curvas devidas
e na rádio tocou a música certa

esta foi a odisseia
até finalmente chegar ao teu corpo no silêncio do quarto

há sempre um périplo numa história que vale a pena 

dia 213

li um poema sobre a lealdade do pó
e de como arranja sempre forma de voltar

nas estantes
nos livros
nos copos
no chão de madeira
no sofá
nos candeeiros
nas Escrituras
tudo vem do pó e tudo retorna ao pó

nas estrelas
esse pó primordial que tudo criou

e quanto mais não fosse
nos versos cantados de Joni Mitchell
we are stardust
we are golden
and we've got to get ourselves
back to the garden

dia 212

ela chegava vinda de uma longa linhagem de feiticeiras e bruxos e de gente errante que habitava em florestas tão densas que o sol apenas penetrava no inverno quando a folhagem desfalecia e as árvores ficavam nuas

os cabelos eram longos como estas palavras intermináveis e faziam lembrar os dos druidas e os das donzelas presas em torres altas e inalcançáveis para que nunca a virtude pudesse ser profanada

os olhos eram profundos e vertiginosos e faziam qualquer um perder o fôlego como quando se lê um verso tão comprido que até a voz interior se extingue por falta de pulmão

sorria às vezes
outras não

nunca a vi
tudo isto foi-me dito por uma outra mulher que calhara de ficar a meu lado numa fila de espera

a espera nunca o é de verdade
pois tudo já aconteceu

dia 211

existe um momento preciso no meio da pior das tempestades
em que o marinheiro sabe que já nada mais importa
que por muito que o desespero trepe pela alma e que o caos reine sobre o mundo
o espírito vigora imperturbável

esse momento pode durar um segundo apenas antes que de novo se despenhe todo o ser
mas é o suficiente para que de frente para a derrota inevitável
ele prevaleça invencível inquebrável e indomável

dia 208

em breve um pouco de sal e de mar
depois o silêncio da noite rasgado pelas cigarras

vinho e espumante nos entretantos
sol pela pele e tu pelos lábios

céus estrelados até à vertigem
tardes a ler e manhãs a ouvir música

dia 207

por um breve instante
a luz entrou por uma fresta junto à porta
o quarto iluminou-se o suficiente para que eu visse no chão
um pouco de pó e umas meias que a preguiça semeou antes de me deitar para dormir

e antes da escuridão voltar
revelou-se ainda
numa das paredes
o verso que um dia me tinhas lido

semeámos a quietude que agora grita em alto mar

voltei a adormecer

dia 206

comecei a escrever
parei e recomecei
porque de cada vez as palavras eram já outras e as anteriores deixaram de fazer sentido

então lembrei-me de Herberto Hélder
e do texto sobre um pintor que tinha em casa um peixe vermelho

enquanto pintava o peixe 
o bicho do vermelho passou a preto
deparando-se com tal impasse
o artista decidiu pintar um peixe amarelo

neste texto fiz o mesmo

dia 205

nomear as coisas inomináveis
porque assim se revelam

mas cabe a cada um essa arte

no que me toca
quando escrevo
a palavra que me assombra e paira sobre todos estes versos
é intuição

e a intuição nunca nos pertence por inteiro
visita-nos
e desarruma a alma
como a paixão

dia 204

não sei se é

a tua pele como mapa
e a tua boca como destino
ou a minha pele como mar
e a minha boca como ilha

sei que à escala das noites e da nossa cama
naufragamos juntos

dia 203

quando contempla o sol
nem uma gota de penumbra cai sobre o chão por trás dele

ninguém até agora conseguiu explicar o fenómeno
mas ouviu-se o rumor de que a sombra lhe foi sugada pelo breu das noites solitárias
e que agora
por muito que haja luz
não há silhueta de negrume que o seu corpo desenhe

dia 202

esculpi o meu próprio sonho
juntei nas mãos um pouco daquele vento raro que sopra de oriente
e quando a tarde se alonga na janela lá o formei entre os dedos
feito de brisa e sopro e olhar

adormeci no sofá para que ele definitivamente ganhasse forma
e então
a meio do sono
lá se narrou por dentro

o que me disse não sei
nunca me lembro dos sonhos

dia 201

encontrei-o passadas mil vidas
sempre igual
o olhar profundo e um sorriso muito subtil desenhado no canto dos lábios

continua a vaguear
percorre as noites junto ao porto e em cada esquina escreve nas paredes
entra em cada bar aberto e bebe até que o escorracem

lembro do tempo em que ia com ele
quando eu próprio lhe ditava o que escrever nessas paredes escuras
e quando era eu que pagava a conta do que bebíamos enquanto o atiravam pelas portas para o meio da rua

está igual
não mudou nada esta minha alucinação

dia 200

há palavras que já ninguém sabe dizer
e sonhos que ninguém sabe sonhar mais

esse lugar de silêncios é imenso como as noites nos planetas errantes

talvez o acaso faça com que se cruze ao largo com uma estrela
e assim possa nascer o dia sobre o horizonte
e alguém fale as tais palavras uma vez mais e sonhe os tais sonhos uma vez mais
nem que seja por um instante apenas

até mesmo os silêncios precisam de ecoar
e também os esquecimentos precisam de ser lembrados de vez em quando



dia 199

uma tarde

o mar rugia e serpenteava por entre o silêncio das pedras junto à praia
cuspindo sal contra o céu azul e quente
sal esse que depois caía sobre a areia para se evaporar ou ser recolhido por uma qualquer onda de regresso
colhido em espuma e poeira líquida que a língua do sol sorvia pela tarde interminável

dia 198

a pele dos versos eriçou com o sopro da leitura
como se de repente
uma verdade se revelasse inesperada

o próprio poema
surpreendido
não acreditou
jamais poderia ser aquilo que acabara de ser lido

mas é assim mesmo
a incredulidade de como quando ouvimos a nossa própria voz

dia 196

tinha um pequeno ponto negro no lago esverdeado à volta da íris
por vezes esse ponto era o centro de um turbilhão
e o quarto e a roupa e a cama e tudo o resto era sugado por ele num movimento largo e lento que durava a madrugada inteira

quando amanhecia e eu acordava
era como se tivesse viajado por um portal
e os olhos eram agora negros e o ponto levemente azulado

como se tudo se tornasse o negativo da véspera

até recomeçar mais uma vez a tempestade
ao fim do dia
quando os corpos pedem água e saliva e suor

dia 195

escrevi há muitos anos
um texto sobre um homem que olhava da rua para uma janela iluminada

o que via era uma silhueta de alguém a escrever
e logicamente
o que esse alguém escrevia era sobre um homem de gabardina que ele via pela janela do outro lado da rua junto à esquina

e eis-me aqui
à janela
ou na rua
a olhar
ou a escrever
e isto não acaba nunca
como a serpente que devora a própria cauda

dia 194

os truques do costume começam a falhar
as palavras antecipam os teus dedos predadores
e assim se escondem e esquivam

as noites carregam um excesso de luar
há demasiada luz nas planícies para que a caça aconteça
e se calhar também tu já não és tão furtivo como no início
ou carregas um cheiro que te denuncia
ou arrastas a tua inépcia fazendo demasiado barulho para que uma presa não se aperceba

o que te vale é a fome
um animal com fome é capaz dos mais desesperados atos
inclusivamente
escrever

dia 193

talvez
hoje
por esta hora
seja melhor ficar por aqui e adormecer

até porque como almofada
não faltam rascunhos e versos mutilados para pousar a cabeça

dia 192

também o tempo é necessário que passe
que insista na erosão dos rostos e que esculpa os carácteres e as rugas
mesmo quando as rugas são por dentro da pele e os carácteres mudos por baixo da alma

um grito
ainda que não se solte
reverba num qualquer espectro sonoro
talvez inaudível
talvez irreal

mas há relatos
de que em certos casos
uma irrealidade acontece

dia 191

vou chegar
e cair

se no fim da queda lá estiveres
saberei
então que afinal

ascendi

dia 190

o interminável desabafo que sopra desde o início dos tempos vindo do pulmão cósmico ecoa nas paredes da existência numa cadência que leva as almas a estremecerem quando adormecidas e nos sonhos maremotos inundam as planícies desertas com ondas enormes que transbordam para os corpos que acordam febris e ofegantes

dia 189

o quarto tinha uma cama e uma cadeira
uma porta claro
e uma janela bem no alto
pequena

um louco de pé a olhar
e a espaços a falar coisas incompreensíveis

quando dois homens vestidos de branco entraram
o louco parou de falar e de olhar
deixou-os deitarem-no na cama
e antes deles saírem disse

há histórias por contar e poemas por escrever
e enquanto assim for
nenhuma cela ou loucura terão a última palavra

dia 188

o ritmo secreto dos morcegos que planam ao crepúsculo
os voos cegos e loucos que desenham sobre as varandas e terraços recuados
traçam enigmas encriptados que só eles saberão ler

dia 187

entre a curva das tuas costas e um verso com a palavra semente
algo se interpôs
como um nevoeiro súbito em forma de silêncio
e a tua silhueta foi ficando desfocada até ser bruma também
e a palavra no verso germinou
e mais tarde reencontrei-te na cama

e não sei o que significam estas coisas

dia 186

um versozito
assim despachado
que hoje foi noite de repasto e bebidas a condizer
a comunhão das almas
e Baco presente

quando assim é
há que saber retirar-se
pela calada da noite e lembrar Jorge Neto

estou mareado

dia 185

o sol caiu sobre as copas das árvores
os ramos estremeceram
e feixes peneirados de luz desceram até mim

banhado pelo caleidoscópio místico dessa poalha cintilante
apercebi-me que todo o ruído cessara

a minha morte
mais uma vez
fora adiada

um burocrata qualquer
interpôs um recurso mais
o pelotão de fuzilamento recolheu

voltei à cela
amanhã
talvez dê para ver um pássaro

essa é a vantagem de quem não morre
há sempre a esperança de ver um pássaro mais  

dia 184

derramaram-se os versos e a toalha manchou
quando secou
um largo padrão emergiu
um labirinto sem saída nem entrada
como a poesia deve de ser

dia 183

iria escrever sobre estarmos a meio do ano
que metade já passou

cento e oitenta e três dias desde esta cisma de versos diários
outros tantos para completar este ano bissexto

e lembrei-me do paradoxo de Zenão
e fui ver
e quando se vai ver vê-se mais coisas

fiquei a saber que Zenão para além de paradoxos prezava a integridade
e que morreu torturado e trucidado por um tirano
mas que não cedeu
nem por metade
e que por isso
dois milénios e meio depois
alguém ainda o chama pelo nome

dia 182

esqueci as palavras que diziam as coisas
e com isso as próprias coisas deixaram de ser

nesse vazio dança a incerteza
como um enigma inacabado ou impossível de resolver
uma cisma nublada por uma lembrança perdida

no entanto
o milagre de nomear outras coisas cresce nos dedos
e assim
vou dizendo
dedilhando
tecendo a manta de versos
destes trapos e remendos
as almas serão assim
mantos de retalhos

dia 181

está um pouco mais de meia lua
e sobre o mar
um caminho de luar espelhado estende-se até ao poço do horizonte

o silêncio é tão denso
que mesmo se alguém gritasse nada mais que uma brisa se ouviria

as madrugadas assim cheiram a verão e o segredo é ter paciência
quem souber esperar
poderá assistir a um pôr-de-lua

dia 180

o rosto desenhado sobre um papel velho
e o subtil abandono ao sono é como um milagre que escapou do traço

em toda a arte há uma fuga
uma libertação

dia 179

um tronco enorme e decepado pousado no meio de uma tarde de sol
à volta uma coleira cor de ferrugem
ainda assim
a madeira velha e seca
parece debater-se em busca de um último grito de uma seiva secreta
as árvores morrem de pé e a espernear ao ritmo de um outro tempo

dia 178

quando junto ao caminho foge uma sombra felina
e com ela
pela escuridão dos arbustos
some parte do nosso olhar

o que resta aproveita a desculpa de uns versos
e esculpe na ignorância as certezas poéticas de que o bicho
na verdade
vinha a mando da inspiração
e que por isso mesmo
fugiu

dia 177

ver um sonho de perto
provar-lhe os cheiros
e levar um resto da promessa numa garrafa

depois trabalhar o esquecimento como um enigma
escondê-lo num fundo
até ao dia em que a memória
por uma razão oculta
se eleve de novo até à lembrança remota do que os olhos viram e a boca bebeu

então haverá uma história para contar

nada preenche o silêncio como uma história que se conta

dia 176

hoje regressaste ao sol e às águas de um retiro que te lava a alma
o calor emana do xisto e todo um vale se contorce na mais certeira das expressões:
a beleza absoluta

dia 175

deixa a água passar
ou uma chuva
uma enxurrada
para que assim te possas purificar

e então
limpo
impoluto e imaculado

podes sujar-te uma vez mais

chafurda
porque há-de chover de novo

dia 174

não será o amor
nem a dor
nem o pasmo
mas antes a vertigem

sim
a vertigem será o mais difícil de escrever
porque as trivialidades da vida vão ocorrendo
mesmo se as galáxias se afastam e nebulosas explodem no infinito

li algumas coisas sobre o universo
mas também li poemas
e beijei no escuro
e dancei bêbado
e escrevi cartas de amor
e li cartas de amor
e conversei com amigos
e despejei a alma
e suei até o cansaço ser bom
e tive febres até ao limite do corpo
e marquei golos bonitos e falhei alguns fáceis
e comi fruta
e pisei o deserto e praias e vulcões
e parti um braço
e bebi vinhos mais velhos do que os meus avós
e dormi ao relento

e é tudo a mesma coisa

dia 173

a dor de todas as ruas vazias
é um verso de al berto a que volto por vezes

sem razão particular
até porque outros há de que gosto mais

mas este talvez goste de mim
quem sabe?


dia 172

o destino a insistir nas inevitabilidades
a ser arrogante e casmurro
cheio de certezas e de verdades

mas ele
perante o destino
só se ria
não se importava
porque o que lhe acontecia não era importante
o que importava era o que sentia
e naquilo que sentia
o destino não mandava nem nunca mandaria

e por isso sorria
e bebia mais um copo
e esticava as pernas
e adormecia sem uma única preocupação

dia 171

mais uma rendição perante o cansaço
caem os braços junto ao corpo
o próprio corpo sobre os joelhos
e por fim
tudo o resto desaba como uma derradeira vénia que se esqueceu de parar

dia 170

ela disse
anda escrevendo demasiado tarde
e eu passeei nesse gerúndio
olhei para o relógio
e concordei


dia 169

sobre a mesa a vela vai cavalgando o que lhe resta
luta com o pavio e dança com a chama
a cera derramada revela o lento sacrifício

quando por fim esfumar-se num derradeiro suspiro
um ponto em brasa resistirá até também ele ser devorado pela noite


dia 168

o que ele dizia parecia não fazer sentido
afirmava veementemente enquanto emborcava mais uma bebida

os meus poemas vivem assombrados pelas palavras que lá não meto
insisto em escrever outra coisa do que aquela que me é ditada
não cedo à tentação

talvez eu tenha perguntado porquê
ou não
não sei bem
mas ele continuou

não queiras saber porquê
uma razão nunca foi motivo válido para o que quer que fosse
uma razão é uma desculpa disfarçada
e uma desculpa é o mais inócuo dos versos
vem nos livros

que livros perguntei eu antes de cair bêbado no chão

dia 167

o sol nasce no plágio rotineiro do que foi o primeiro dia há mil noites atrás
e as horas passam imparáveis uma vez mais com a força esmagadora da rotina e da inevitabilidade

no entanto
existe nas catacumbas das madrugadas
um breve instante em que o próprio tempo se suspende
e aí
no largo lago da solidão
o silêncio é tal que lhe sentimos as brumas por entre os dedos

dia 166

não ergueram nenhum monumento
e a memória sobreviveu na corda dos ecos e nas rugas dos velhos

é curioso assistir ao esquecimento
entender a amnésia como a maré que enche
os rostos que em vultos se tornam e as palavras que aos poucos se vão calando

eu sei tudo
e o que eventualmente não souber
é somente porque esqueci


dia 165

deixa que a palavra se molde na mão
que ganhe a forma devida e o timbre certo
só assim dirá ao que vem

dia 164

Tinha por costume falar com os mortos. Era uma tradição que herdara de uma avó e que mantivera ao longo dos anos. Provavelmente não passará o hábito a ninguém. Os filhos há muito que não os via e os netos não chegou sequer a conhecê-los.
Isto de falar com os mortos, não era bem falar com os mortos. Tratava-se mais de um sopro ao ouvido. Aproximava-se dos corpos e sussurrava-lhes uma qualquer lengalenga.
Um dia, depois de várias bebidas partilhadas, contou-me que nunca nenhum dos mortos se indignara com o que lhes segredava, que nunca nenhum se emocionara, que nunca nenhum regressara.
Estranhamente, contou-me tudo isto ao ouvido. Quando acabou de falar, apercebi-me de que eu estava deitado no chão, morto. Não me indignei, não me emocionei e não regressei.

dia 163

é tarde
sobre a toalha da mesa
uns brincos umas moedas e outras pequenas coisas que trazias nos bolsos
o corredor já sem ti mas ainda com o teu perfume a guiar-me para o quarto

dia 162

o sol caiu
e o mar cobriu-se de breu

se há versos a escrever
eles adormeceram
há que fazer pouco barulho

dia 161

o ancião tinha um nome que incendiava a língua
por isso quem o chamava ou cuspia fogo ou bebia água

conta-se que a própria mãe
no dia em que o baptizou
queimou a casa
e que as amantes
todas elas
ardiam durante a noite enquanto lhe gritavam o nome

dia 160

os gestos eram largos e desenhavam grandes círculos no ar
esboços ficavam suspensos por um instante em anéis de poeira

repetia a cerimónia todas as tardes
e à volta dele juntavam-se curiosos

eu era um deles
e aproveitava para memorizar os movimentos que mais tarde em casa imitaria

quando deixou de aparecer
ninguém se juntava mais
pois ninguém se junta ao redor de uma ausência
e esses círculos de poeira mística não mais decalcaram o céu
e as tardes ficaram mais sós

por vezes
quando me lembro
revisito esse ritual
mas nenhum aro de neblina se pendura no silêncio da minha solidão