O actor

As vidas vazias a que assiste reconfortam-no de certa maneira. Sabe que pelo menos não está totalmente só. Observa os gestos dos outros entre eles, e reconhece, nesse espectáculo, a inutilidade dos mesmos. Não é hipócrita para se julgar diferente, sabe bem que representa no mesmo palco, que para poder sobreviver (nem que seja dele mesmo) necessita desses gestos inúteis, desse desempenho de um papel que por imitação representa. Mas também sabe que a consciência de estar a representar a inutilidade, assalta-lhe cada vez com mais frequência, e isso torna-o pensativo, que como se sabe, é meio caminho andado para tomar resoluções. E sabe que se tomar resoluções, serão novas promessas que deixará por cumprir. Os loucos são aqueles que não cumpriram promessas ou que tudo fizeram para as cumprir.
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A trilogia inexistente

A ideia está mais ao menos clara, que é o mesmo que dizer assim-assim ou que existe mas que lhe falta corpo.
Uma história de amor, pois claro. Ou melhor, a história do amor que um homem sente por uma mulher, do deslumbramento dele perante ela. O homem refugia-se, deixando-a inesperadamente por uma razão que se mantém oculta até ao fim. Após o seu refúgio, o homem escreve cartas e mais cartas à mulher que ama mas que abandonou, nunca obtendo resposta, desculpando-se mas não se explicando. Passado uns anos, confrontado com uma doença que lhe dá pouco tempo de vida, decide escrever uma última carta, passando, a partir desse dia, a escrever-lhe apenas mentalmente, num relembrar constante da memória que tem deles quando estavam juntos, e iniciando um estilo de vida decadente. Nesse relembrar, para além das memórias, vai falando virtualmente com ela, relatando-lhe, também, o dia-a-dia, a rotina, as pessoas que encontra, os medos que tem, as esperanças que perdeu e aceitou, entre outras coisas.
Descobre após esse monólogo interior, através de um amigo comum, que a mulher que amava, tinha morrido pouco depois de ele a ter abandonado. Apercebeu-se que todas as cartas que enviara nunca tinham sido lidas, que tinham ficado em silêncio algures.
Mais tarde ainda, a doença de que sofria entra em regressão, o que faz com que sinta uma inexplicável vontade de regressar à sua vida passada, voltar ao apartamento da mulher que amava e reler, ele, as cartas que escrevera e que ela nunca recebera. Inicia aí uma luta para reaprender a viver com os outros, e na leitura que faz das suas próprias cartas imagina as possíveis respostas da mulher que morreu sem as ler.

Depois há a última ideia. A ideia de que a história desse homem é, de facto um livro escrito por alguém. À porta desse alguém bate um outro homem que diz ter-se apaixonado pela mulher do livro, e que pretende, de alguma milagrosa forma, materializá-la. Por isso vai a casa do suposto escritor, faz-lhe perguntas de onde terá tido a ideia para retratar tal mulher. O homem obcecado é um génio louco. E após enveredar por uma aventura surreal, que vai desde conhecer todas as mulheres que o escritor conheceu afim de averiguar se existe alguém real igual à personagem de ficção, até tentar, por via da representação, "encontrar-se" com a personagem, passando por experiências envolvendo química, biologia e física. No fim, é a feitiçaria que lhe dá uma oportunidade de encontrar-se com a tal mulher: o homem tornou-se literatura e num livro, escrito pelo escritor do livro das cartas e do homem que amava a mulher, o génio louco alcança o tão desejado encontro.
É mais ao menos isto, em três volumes, inexistentes, a não ser nas caves do meu pensamento. Isto há mais de dez anos.
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Da solidão

Ao fim da tarde, sentado na penumbra da sala, após mais um dia vazio, é quando a ideia o atormenta mais. É nesse particular momento do dia que a lembrança dos serões solitários (mesmo quando tinha companhia) o visita. Agora está só mas não está solitário. A solidão é uma certa melancolia que se eleva de dentro, sustentada por um sopro inexplicável. Sente-lhe falta. Porque a solidão combate-se, a golpe de lágrimas, poesia ou whisky. Já o estar só não se combate, desvanece-se em apatia, afunda-se.
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As palavras

Elas estão sempre aí, nem que seja em silêncio. O problema tem sido que o ruído da tua ausência tem-nas atirado para o olvido. Quando te lembras delas é com amargo de boca, é o arrependimento do abandono, da desistência. Não é por queimares em sonho futuros inexistentes que, de alguma forma, pagas a dívida. Fazes mal. Deverias lutar um pouco mais por elas. As palavras.
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Lendo


Continuo no meu périplo anglo-literario-marítimo com o Moby Dick. O vocabulário náutico e piscatório escapa-me, mas o espírito da odisseia envolveu-me desde o início. Isso e o tom de Ishmael, que apesar do rudeza e espíritos selvagens do mundo em seu redor, relembra-nos a cada frase que se trata de valores, de humanidade, de honra e dignidade. No fundo, de pura condição humana.

Once more. Say you are in the country; in some high land of lakes. Take almost any path you please, and ten to one it carries you down in a dale, and leaves you there by a pool in the stream. There is magic in it. Let the most absent-minded of men be plunged in his deepest reveries- stand that man on his legs, set his feet a-going, and he will infallibly lead you to water, if water there be in all that region. Should you ever be athirst in the great American desert, try this experiment, if your caravan happen to be supplied with a metaphysical professor. Yes, as every one knows, meditation and water are wedded for ever.

Yes, there is death in this business of whaling- a speechlessly quick chaotic bundling of a man into Eternity. But what then? Methinks we have hugely mistaken this matter of Life and Death. Methinks that what they call my shadow here on earth is my true substance. Methinks that in looking at things spiritual, we are too much like oysters observing the sun through the water, and thinking that thick water the thinnest of air. Methinks my body is but the lees of my better being. In fact take my body who will, take it I say, it is not me. And therefore three cheers for Nantucket; and come a stove boat and stove body when they will, for stave my soul, Jove himself cannot.

Yes, the world's a ship on its passage out, and not a voyage complete; and the pulpit is its prow.

But, perhaps, to be true philosophers, we mortals should not be conscious of so living or so striving. So soon as I hear that such or such a man gives himself out for a philosopher, I conclude that, like the dyspeptic old woman, he must have "broken his digester."

The more so, I say, because truly to enjoy bodily warmth, some small part of you must be cold, for there is no quality in this world that is not what it is merely by contrast. Nothing exists in itself. If you flatter yourself that you are all over comfortable, and have been so a long time, then you cannot be said to be comfortable any more.

Queequeg was a native of Rokovoko, an island far away to the West and South. It is not down on any map; true places never are.

I say, we good Presbyterian Christians should be charitable in these things, and not fancy ourselves so vastly superior to other mortals, pagans and what not, because of their half-crazy conceits on these subjects. There was Queequeg, now, certainly entertaining the most absurd notions about Yojo and his Ramadan;- but what of that? Queequeg thought he knew what he was about, I suppose; he seemed to be content; and there let him rest. All our arguing with him would not avail; let him be, I say: and Heaven have mercy on us all- Presbyterians and Pagans alike- for we are all somehow dreadfully cracked about the head, and sadly need mending.

A soul's a sort of a fifth wheel to a wagon.

But when a man suspects any wrong, it sometimes happens that if he be already involved in the matter, he insensibly strives to cover up his suspicions even from himself. And much this way it was with me. I said nothing, and tried to think nothing.

Ship and boat diverged; the cold, damp night breeze blew between; a screaming gull flew overhead; the two hulls wildly rolled; we gave three heavy-hearted cheers, and blindly plunged like fate into the lone Atlantic.

For what are the comprehensible terrors of man compared with the interlinked terrors and wonders of God!

No small number of these whaling seamen belong to the Azores, where the outward bound Nantucket whalers frequently touch to augment their crews from the hardy peasants of those rocky shores.

How it is, there is no telling, but Islanders seem to make the best whalemen.
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Roma


Roma. A poeira dos imperadores persiste. Cobre a Roma dos Papas, mesmo se esta se tenha talhado em ouro, mármore e génio. Mas a poeira persiste e constrói a geometria da cidade, está-lhe na matriz. Nota-se que tudo é imperial, tudo é reverência e tudo é majestoso. A civilização nasceu das ideias de Atenas, mas foi aqui que se materializaram, para o bem e para o mal. Do início ao apogeu, do excesso à queda, que apesar de ter sido total, aguenta-se ainda no imaginário e nesta tal poeira. As sombras de Roma são infinitas, mesmo quando lhes rebenta o sol de Agosto em cima.
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