dia 30

talvez um dia
quando o voo outonal das folhas se desenhar como uma valsa numa pauta
te percas enfim num banco de jardim

dia 29

a tua sombra derramada na areia até à língua da última onda
eis a promessa do verão que há-de vir
a minha fome de sal no teu corpo iluminado
e nós perdidos de tudo o resto
sem que bússola alguma que não o nosso amor
nos possa encontrar

dia 28

no périplo dos teus textos não existe destino
e a origem data de um pretérito tão remoto que as leis das coisas ainda não tinham sido inventadas
remóis
por isso
os mesmos textos uma e outra vez
não escreves nada de novo
tudo é um revisitar dos mesmos versos e das mesmas vertigens
as mesmas quedas nos gritos que soltas até acordares em suores de outras peles e poros

a par de outros quixotes perdidos desta vida
embarcas nessa missão ingrata de seres tu mesmo e não um outro qualquer
os franceses usam a expressão malgré toi
apesar de ti e desses seres que te possuem a alma e a fazem estremecer até à síncope derradeira de um parto poético
frágil e tosco e recém-nascido mas já perto do fim
do último suspiro
até repetires a sina
até ao infinito
até sempre

dia 27

escrever um poema de amor numa noite de chuva
ou imaginar a esquina onde pela primeira vez te esqueci
ou ainda percorrer do teu colo aos teus lábios com os dedos cheios de sede

tudo isso nas penumbras de um quarto
desesperadamente a recuperar o atraso da escrita
como se o futuro apenas existisse amanhã quando
na verdade
o futuro existiu ontem quando estavas demasiado ocupado a imaginar o passado

dia 26

uma luz intermitente de um semáforo soluça pela sala
e divertes-te a sincronizar o teu piscar de olhos com ela

descobres assim que afinal ou não há luz ou ela é permanente

dia 25

encontrou um pôr-do-sol num velho caderno esquecido
num papel encorrilhado e sujo, escondido entre as páginas
derramam-se lágrimas cor de lava num céu que parece ser de outono

tirou a pintura e pousou-a na mesa
solto o sol pôs-se e a noite há tanto adiada caiu finalmente com seu lençol de breu

talvez daqui a uns anos, reencontre o desenho e poderá nascer o dia que agora apenas é promessa

dia 23

querem
talvez
que eu seja preciso e exacto naquilo que é a busca de uma voz própria
que a minha atabalhoada poesia esteja arrumadinha e que faça sentido
que os versos tenham pontuação e que a semântica se revele imaculada

esquecem é que as vozes nascem fora disto tudo
que se são feitas de uma outra matéria e álgebra e sopro
e que aqueles que as ditaram o fizeram já há mil noites atrás debaixo de outros céus e de outras luas
e que eram seres feitos de brumas etéreas e de todo um pasmo cósmico
e não de lágrimas nem de carne nem de sangue nem de suor nem de sarro

o que me chega agora
após essa odisseia incomensurável
após esse cataclismo de viagem através dos poros da existência

é o ganido possível
o gemido inevitável
o uivo gutural que me calhou regurgitar

não poderia nem ser exacto nem arrumadinho nem imaculado

dia 22

aos poucos as nuvens atravessam todo um céu demasiado azul para que azul seja mesmo

reina uma brisa quase muda e cuja textura ao deslizar na face lembra a pele de um pêssego maduro

as tais árvores que caem nas florestas desertas desconhecem ainda hoje se produzem ou não um som

e eu pergunto-me por que cairia uma árvore numa floresta deserta

ou por que razão havemos nós de ter lábios e línguas e olhares que não seja para termos sede e fome e arrepios por dentro da alma como terramotos imensos derramados em versos tão longos que não chega um só fôlego para o declamar nem chega um horizonte inteiro de página para o estender num traço apenas


dia 21

Numa madrugada mais em que se afundava no canto escuro do café do costume, ouviu dois homens a conversar junto ao bar. Nunca os tinha visto antes e quando entraram sacudindo as cabeças molhadas da chuva, reparou que vestiam igual por baixo das gabardinas: fato negro, camisa branca coçada do uso e uma gravata fina de nó aberto.
Pausadamente e já com um copo à frente, cada um dos homens ia falando à vez. Falavam de um encontro que ia acontecer mais tarde, no outro lado da cidade num prédio devoluto. Mencionaram um conclave de outros homens que se juntariam para uma eleição.
Não chegou a perceber exactamente do que se tratava, provavelmente porque já tinha bebido demais e, no fundo do café, na mesa de sempre, ele e a cadeira já eram um mesmo corpo inerte e abandonado. De qualquer forma, imaginou esses outros homens vestidos de igual no outro lado da cidade. Deixou-se afundar ainda mais no canto escuro do café do costume.

dia 20 - a trilogia perdida

Há uma história que vive nos confins da impossibilidade. Não se sabe que artes são precisas para cavar as terras onde ela está sepultadas.
Havia um homem que amava uma mulher. Supõe-se que ela o amava também. Sabe-se que um dia ele a beijou e partiu. Desconhece-se a razão. Isolou-se e passou a escreve-lhe cartas. Escreveu-lhe muitas, até ao dia em que descobriu que estava doente e que pouco tempo lhe restava. Decidiu então deixar de lhe escrever e começou a reviver todo o amor vivido num monólogo interno a ela dirigido, como se de uma última carta se tratasse. Revisitou todo o passado comum por dentro, ao mesmo tempo que lhe revelava a rotina desse isolamento junto a um mar. Um mar que antes fora deles.
Duas perguntas pairam constantemente no relato, o porquê do abandono e da fuga, e a dúvida sobre se ela teria recebido e lido todas as cartas que ele lhe escreveu após essa fuga. E há sempre poemas que ele lhe escreveu ou que ainda escreve mentalmente.
Mais tarde, numa outra finta do destino, uma cura salva-lhe a vida, mas, ao mesmo tempo, descobre também que ela morrera no dia em que a beijou e partiu. Imagina todas as cartas que lhe enviou e que nunca foram lidas. Essa prisão de silêncio leva-o a regressar. Ao voltar, visita a casa dela e descobre então as centenas de cartas por abrir. Dedica-se ao retomar de uma rotina e a revisitar tudo o que lhe escreveu. Fá-lo durante algum tempo, até, que um dia, um homem lhe bate à porta e lhe conta a mais bizarra das histórias.
Conta-lhe que veio de outro mundo, que, na verdade, leu dois livros sobre ele e essa mulher. Leu e releu esses livros, consta que um se chama A Última Carta e o outro Cartas em Silêncio, e que no meio dessas leituras todas também ele se apaixonou por essa mulher. Ficou obcecado. Visitou o autor desses supostos livros, perguntou-lhe quem era essa mulher. Que o autor lhe disse que não existia, que era um personagem de romance. Endoideceu, tentou recriar essa mulher através das mais variadas formas: envolveu-se com todas as paixões do alegado escritor, buscando aí reencontrar traços da mulher descrita nos livros, transformou os romances em peças de teatro e envolveu-se com a atriz que desempenhou o papel, estudou clonagem e manipulação genética, mas nada funcionou. Até que se virou para atividades ocultas e, finalmente, criou um feitiço que lhe permitiu entrar nos livros. E ei-lo ali, em frente do homem que amava a mulher, que a beijara e partira um dia sem razão e que agora estava curado. Desesperado, o homem que bateu à porta, percebeu que chegara tarde, que a mulher morrera. Ficaram dois homens apaixonados na derradeira página do terceiro livro, esse chamado O Homem que se fez Literatura.

dia 19

Eu vou ficar a ver o mar, disse ela.
E o mar e o mar e o mar.
Pois, o mar.

dia 18

escreveste um último chão para que os passos encontrassem um caminho
e para trás ficou a sombra do teu corpo

esculpiste uma derradeira onda de bronze onde pousavam em equilíbrio precário pelicanos enormes
e foi a noite que tudo cobriu com seus cheiros de gente ébria e perdida 

dançaste uma valsa e um tango e disseste poemas numa língua morta
e apostaste a vida com a única moeda que te restava numa roleta que não mais parou de girar

e até hoje
pendente
como os pelicanos sobre a onda
a tua existência espera o desfecho

dia 17

terás de improvisar um alento para que se desenhe o voo de um pássaro por entre a penumbra
tudo se cria e nada se transforma
os nortes virados a sul e todo o deserto despido de versos

conheces a imensidão das luas longínquas pois nelas te perdeste em suores nas noites mais febris de todas

deixa que a pulsação do cosmos te eleve até à sepultura que as estrelas cavaram no início dos tempos

dia 16

Por agora, sem olhar ao medo, descanso nas escarpas da desinspiração. Como se a mais desalentada das brisas esmorecesse, por fim, num verso sem voz.

dia 15 - o eremita

semeou no mais árido dos campos a última das suas lágrimas
esperou mil anos até que uma onda brotasse do chão e inundasse tudo até ao horizonte
enquanto esperou teceu mantos de sol e de vento
era eremita e mudo
falava por gestos lentos que duravam sombras e penumbras
encontrava-se por vezes com os fantasmas do amor mas não lhes ligava
preferia a solidão dos grãos de areia e mergulhar as mãos nas praias do sonho

dia 14

fora de tempo
como todos os versos
fora da rima e da cadência
tropeças nas letras que te calham
e a verdade é que nunca escolheste palavras
apenas fizeste de conta que ouvias uma voz e toda a tua escrita é um ditado

dia 13

ouviu histórias de oráculos, macumbas e feitiços
e entrou no ritmo desses lunários ambíguos que poetas mudos espalham de madrugada

ouviu os relatos alegóricos de quem jura ter visto anjos e escutou-os dizendo que por eles foram mordidos como vampiros
e dessa ferida
sangrando agora somente lágrimas de água doce
tendo o sal evaporado pelas nuvens dúbias de um sonho
caminham sempre de costas voltadas para o mar mesmo que tenham sido condenados a viver para sempre numa ilha

dia 12

as tardes limpas de sol
o mesmo sono leve de outono fora de época que cresce silenciosamente a cada hora que passa
um sofá imenso como o mar
e inevitavelmente o teu mergulho qual queda onírica sem fim

dia 11

já não te lembras da primeira vez que escreveste
suponho que nunca saberás quando for a última 

dia 10

Os lugares dos silêncios

Os bolsos profundos de casacos que já não usas, gavetas que não abres, o interior do carro em dias de trânsito e chuva, as lembranças de tudo o que não viveste, os templos distantes de lugares que não conheces e, sobretudo, uma cama sem ti.

Bolsos cuja solidão é tão densa que as mãos ocasionais se perdem no mais profundo dos breus. Por lá deambulam nos outonos, remexendo umas moedas ou uns rascunhos esquecidos de um versos desalentados. A mesma aura de penumbra paira à volta das gavetas que nunca se abrem e onde dormem cadernos tatuados de breves inspirações, e a mesma mudez autista sobra no interior de um carro no trânsito habitual. As lembranças do que nunca aconteceu respiram o mesmo ar e os templos distantes de terras às quais nunca foste padecem do mesmo sopro brando.
Uma cama sem ti também.

dia 9

pelos nevoeiros frios
numa varanda que anoitece
rabiscas no limite do dia a rotina que te impuseste 

este cronómetro que conta cada revolução terrestre
que teimas em sincronizar com a tua poesia caótica

dia 8 - lá longe no futuro

façamos deste gesto algo perfeito
como um acorde de piano exacto numa madrugada
ou uma onda numa daquelas praias de inverno

lentamente pousa letra a letra no íntimo dos murmúrios nocturnos
e espera que se revele o verso definitivo do que ouviste lá longe no futuro

dia 7


descansei no sétimo dia

antes de mergulhar nos teus olhos encadeado de ti
e depois de subir pelo calor do teu colo e serpentear na flor colorida do teu pescoço

dia 6

Se eu não escrevesse esta história talvez ela fosse diferente. Ainda vou a tempo de a deixar morar no silêncio onde sempre viveu. É aí que vivem muitas das mais extraordinárias das histórias (não é o caso desta), no silêncio, na lareira imensa dos lumes brandos dos arrependimentos. Há um antagonismo crónico para com os remorsos,  e ele é velho como são aquelas árvores milenárias feitas de madeira oca. Mas as coisas só valem a pena se, por trás, num canto qualquer de sombra, um arrependimento repousar roendo a alma, relembrando-lhe que tudo vibra no limbo do seu limite quando nos deparamos com uma escolha. E que tudo tem um eco próprio e um eco em negativo.


Mas aqui estou, e o dilema já não se coloca, pois o relato seguirá após esta atabalhoada introdução.

Não há muito a dizer, aliás, se calhar, se nada disser a coisa explica-se por si mesma.

Havia quadros por pendurar numa sala e as paredes já enlouqueciam. Uma janela enorme pedia voos largos de pássaros. Fim.


dia 5

adianta-te e veste a manhã onde os versos ainda dormem suspensos
e a luz hesita em revelar-se na plenitude dos sopros 

porque há brisas em todas as esquinas e mil poeiras à espera de serem esquecidas uma vez mais

dia 4

Sabias bem que, mais cedo ou mais tarde, a única forma de manteres esta contagem de dias e de escritos, seria forçares as palavras até deixarem de ser palavras.

dia 3

as poeiras do esquecimento assentam no silêncio

passaram mil noites desde que as palavras cavalgaram nas praias do verão

e das pegadas largas e livres que ficaram na areia molhada resta apenas espuma

velhos são os versos em ruínas que uivam no fundo das noites escuras das gavetas esquecidas

a fénix sem chama e esfomeada
sem voo e sem grito
é o triunfo dos desmaios
a vitória do que nunca foi escrito e do silêncio exacto dos adiamentos

prevalecem os rumores tímidos da inspiração e algumas rimas perdidas
como aqueles fogos que reatam antes de se esvaírem em penumbra e sombra e breu e cinzas de solidão

escreve como se ninguém ouvisse
pois na verdade
ninguém está a ouvir

dia 2

o segundo dia é o primeiro do desmoronamento das resoluções
e também o primeiro do renascimento de novas resoluções
e é o último dos dias em que um nevoeiro se dissipa e revela horizontes despidos de sol e de barcos

dia 1

o primeiro dia
como um fechar de olhos em leve ressaca

todo o infinito de um ano pela frente