É noite já

No ocaso os silêncios crescem até preencherem as janelas desertas. Um resto de chamas ao longe sobre o mar. Recolhem-se as sombras e as formas começam a falar difusas, perdendo realce e escondendo esquinas e contornos. A noite envolve as ruas como uma onda, desaguando primeiro nos passeios e subindo as paredes e muros das casas até aos telhados mais altos. É noite já.

quando não estás

quando não estás
escrever para te ter aqui
outros tê-lo-ão gravado já, mas nada é novo, tudo é memória e o que parece novidade não é mais do que aquilo que já esquecemos
escrever, portanto, para te ter aqui
mesmo se te tenho na lembrança do corpo e no vazio das minhas mãos, mesmo se estás leve por entre o meu olfacto ou no sorriso aberto que se me tatuou nos olhos e na alma, mesmo se vagueias profunda nos ecos do meu escutar e me dizes coisas, as tuas coisas,
escrever para te ter aqui quando não estás e deixares de não estares em lado algum
pois escrever levar-te-á por todas as leituras fora, daqui ao infinito da voz humana
semear-te nas palavras para que te colha em todas as eras e em todos os silêncios e todas as ausências,
fazer do meu rumor atabalhoado a minha promessa solene de escrever para te ter aqui
quando não estás


Diziam eles

Diziam eles que o Amor era velho e deambulava sozinho em bancos de jardim durante a noite. Que o vento era o ar a mexer-se mais a memória por onde tinha passado, trazendo aromas de outros tempos, sombras de outras árvores e segredos de outros livros. Diziam eles.

Douro

Dizer o Douro. A vinha, a uva, o rio, a luz, o vinho e o silêncio. E dizer cada palavra, lançá-las soltas na imensidão do que são. Esperar e reparar que cada uma regressa e fala connosco. No Douro é tudo tão avassalador e tão humanamente real, que pode dizer-se que não há texto que o valha, relato que lhe faça jus ou testemunho que se acerque da verdade, e que apenas seguindo São Tomé e o seu "ver para crer", apenas com os olhos e com a alma rendida para lá dela própria se pode dizer Douro e compreender um pouco deste milagre tão grande, feito de luz, rio, granito, xisto, suor e sangue.


num só fôlego

num só fôlego ou em vários mas que no fim sejam apenas um como se as palavras se agarrassem umas às outras a evitar a queda de um precipício de mãos dadas no limite delas próprias num desespero profundo de resistência a quererem dizer o que dizem que é sempre mais do que o que vozeam como as sombras gigantes daquelas árvores míticas ou como as ondas do mar que se espraiam na imensidão da costa ou ainda os desertos silenciosos das camas desfeitas nos quartos abandonados pelos amantes apressados em ir trabalhar ou finalmente na quietude de uma estante repleta de livros a ganhar pó e atraso de leituras adiadas para sempre aquele sempre definitivo muito antes de acontecer de facto
escrever é ainda um acto sagrado de comunhão com o insondável
ou não
será somente encadear letras e esperar que a lotaria da literatura sorteie o milagre do acerto do que se tem a dizer

Do baú, anos 90


talvez seja silêncio que te lanço no escuro dos meus dias, talvez seja ausência que sonho, talvez sejam sombras e versos vazios que te atiro sem saberes, talvez seja tudo isso... e se é tudo o que tenho é porque não estou contigo...

Lendo

Vergílio Ferreira escreve na voz certa. Explicar isto demoraria muito tempo. Esse acerto é puramente subjectivo. A conclusão que tiro é por isso pessoal mas transmissível. Serão com certeza os temas, as histórias e tudo o mais que me fascinam no autor, mas há algo mais na leitura que me arrebata. A voz, a forma que ela toma na leitura que vou fazendo de todos os livros, é-me familiar. Não propriamente minha, porque o não é, mas digamos que no silêncio do meu pensar e sentir encontra um espaço que já era dela. Como se ler VF fosse o completar de algo pré-existente. Não sei dizê-lo melhor. No fundo, a leitura é apenas o eco de algo que li antes de nascer e depois de morrer, para lá do limite e antes do limite de se ser.


Que horas são? a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olha à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas.

Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há um pequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo. Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta da enseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, um cone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbito na cara, roda para o lado oposto.

Preciso de ter um sítio onde esteja bem. Onde esteja eu e não o que me dizem que é o mais plausível de ser eu. Um lugar oculto sem ninguém a testemunhar-me a vergonha. Porque tanta coisa a ser vergonha. Saber como comportar-me ser sensato ter propósitos. e a tua imagem aí - é bom. Eu sei. O teu perfil contra o longe das oliveiras. Contra a tarde clara do ar. E os teus olhos na distância em que estou e tu já não. Never more. É uma tarde de Maio talvez. Alguém canta numa casa da rua de baixo. Nunca mais.
- Não me diga que também gosta do nome!
Quando foi que te conheci? Nunca mais.

E uma comoção súbita, profunda. Tomo os cravos um a um espalho-os devagar por cima. então foi como se eu próprio me não visse, não existisse, dissipado no vazio de estar ali. Luto desesperadamente, os olhos ardem-me. O sol violento, a terra deserta. Eu só.

Podia eu dizer o mesmo? na luz dúbia da manhã, entre a noite que terminou e dia que vai começar. O facho do farol varre as águas de vez em quando, embate-me subitamente, esmorece numa pequena luz. E o rumor do mar como um coro, o estoiro das vagas contra o fundo da falésia.

- Não gostava que viesse. Preferia levar a imagem do orgulho dela e do meu. E tu no meio, sem orgulho nenhum.

Não tinha ilusões sobre isso, não tinha. E quis que tu as não tivesses também. Revelar-te o estado de coisas real. Revelar-te a miséria da nossa vida. E ver se aprendias a humildade. É a lição máxima de um homem.

O jovem, meu caro amigo, ignora o interesse da cultura e tem pressa de se instalar na vida. E sem dúvida a cultura não se pode explicar em termos práticos, não é assim? Digamos que ela só se aprecia depois de se ser culto. Há que obrigar o jovem a ser culto como há que obrigá-lo a ser higiénico. Abandonado a si, o infante nunca se lava, meu amigo. Não vamos concluir daí que a sujidade é que tem razão.

Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro. E é tudo.

Tinha um dedo imperativo no ar. Arrumei os utensílios e dispus-me a sair. Mas quando justamente ia a sair. Porque a vida é assim. Súbitas resoluções sem cálculo. Como se nós trabalhássemos para um lado e a vida para outro. Subitamente foi assim. Havia uma poderosa força vinda de Flora. E eu deixei-me ir, um outro de mim deixei-o. No fundo, seria isso? a instintiva certeza de que outra força a trabalhava também. Mas quando a tomei com determinação - a cara rápida voltada de lado, aproveitei a nuca o pescoço. E foi aí. Ela respirava forte sobre o meu ombro.
- Sim? - disse eu.
- Não - disse ela para trás de mim.
Mas eu insistia já com a colaboração do resto do meu corpo. Não, não, disse ela, desprendendo-se. Outra vez disse-me ainda. Um fim-de-semana. Preparar isso com sensatez. No próximo? perguntei. Depois se fala, está bem? respondeu. E então fiquei sem palavras para continuar. Afastei-a um pouco, olhei-lhe nos olhos, ela olhou-me frontal e sorriu breve.

A felicidade não se mede pela quantidade do que nos aconteceu de agradável, mas pela quantidade de nós que responde ao que acontece. Nunca ficou nada em mim que não respondesse. E nas tintas para a filosofia.

Quis acompanhá-lo à aldeia, recusou vigorosamente como se estivesse a insultá-lo - estaria? Fechado sobre a sua condenação como sobre um bem privativo. Tinha um buraco no pescoço, era dele. E o orgulho avultava no seu corpo franzino. Era dele como a sua fatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo da desgraça, pensei. Telegrafei para o irem esperar, esperaram-no. Telegrafaram-me algum tempo depois para o ir enterrar, enterrei-o. Era Inverno, devia ser Inverno. Tenho frio na alma e na memória. Devia ser.

Fomos jantar fora. Fomos ao cinema. Mas tudo para mim foi difícil e provisório, porque eu estava impaciente pelo que não era isso. Mas havia um cerimonial a cumprir para afastar o mais possível o seu terceiro andar de uma casa de passe. Oh, gostei bem que não fosse, eu amava-te decerto. Era um amor geometrizado na linearidade do teu corpo, como hei-de dizer? no rigor de seres um ser corpóreo. Porque o teu corpo perfeito adiantava-se sobre ti e era com ele que eu primeiro me defrontava. Que é que quer dizer amor? contigo não o sabia, nunca o soube, teria alguma significação? ou a significação não é dele mas de cada um de nós ou de tudo aquilo com que somos cada um de nós. Flora abriu a porta subira a escada em perfeita naturalidade, decerto porque o termos estado juntos esbatera o que era aí anormal ou era a sua legitimação. Depois houve bebidas. Tentei ainda que não houvesse para haver logo o que haveria. Mas Flora não tinha pressa. Abrira as janelas para a noite quente, sentou-se num sofá. E retomava não sei já que conversa para haver um espaço neutro entre nós. De vez em quando, talvez nos pontos mais difíceis da conversa, o tique de enrolar as pontas do cabelo. E fumava constantemente para compor nela um não sei quê de escultural. Flora, o ruído já suspenso do tráfego, a extensão escura do parque. E este todo harmonioso construído disciplinado.

Ensaio para um blues

Apenas um casaco na noite fria. O cachecol levou-o ela, as luvas também. A casa? Pegou-lhe fogo quando fugiu. Levou-me os livros e até o rafeiro que dormia aos nossos pés. Ficou o casaco e a noite fria. A guitarra? Terá ardido com a casa e as fotografias. O coração já era dela, tê-lo-á levado pois claro, ou então usou no incêndio, não sei. Fiquei eu, as chamas ao longe, um casaco e a noite fria. Dava para um poema, mas a inspiração era ela e ela lá foi, com o rafeiro, o cachecol, as luvas, os livros e o amor todo. Fiquei eu, o casaco remendado, um fumo escuro da casa queimada e um frio antigo como a Bíblia.