sabores

provei o silêncio
e descobri aí que o suor das noites de verão não sabem ao mesmo que as lágrimas doces do teu rosto

um pouco nossas

para a Ana Filipa e os seus

são sempre também um pouco nossas
as avós dos outros

e quando uma parte
parte de novo um pouco da nossa

porque os sorrisos abertos e bonitos que tinham eram iguais aos que na infância te embalaram
porque há um carinho por dentro destas coisas
como um abraço e um ninho que ficam para sempre

faz parte
sabemos

e o que fazer com tudo isto que não seja guardar num cantinho da alma todo esse amor
e de vez em quando
numa fotografia ou numa lembrança
lá voltar e sentir o calor do dia mais luminoso de sempre


nem delas mesmas

Revisitar antigos sopros, escutá-los com atenção. Reencontrar as ideias gastas de um outro tu. Iguais, imutáveis, paradas no tempo e no momento exato em que primeiramente apareceram. Como se nunca acabassem de nascer e, ainda assim, sem estarem verdadeiramente vivas. Vagueiam no limbo, são sem serem e vão sendo como as sombras da espuma de uma onda. Acabam e reaparecem sempre.
Pergunto-me se é possível calar o que não fala ou esconder o que é líquido e neblina.
Posso sentar-me e escrever tudo isso, de uma vez, de um trago como quando nos lançamos nos abismos. Mas, e depois? Que fazer com o silêncio definitivo? Mas nem é essa a razão, não há nunca silêncio, apenas o ruído atabalhoado do que se sonha. E, é sabido, os sonhos não acabam nunca, apenas o esquecimento os cobre às vezes com o manto da amnésia. Mas eu não esqueço nada do que não escrevo, esse infinito é vasto e incansável. Persiste em revelar-se, teima em resvalar por entre os dias e as noites.
O óbvio impõe-se, não sou eu que decido estas coisas, as palavras não são minhas, não são de ninguém, nem delas mesmas.

Tim Maia

Existem ecos que guardaste nas gavetas, coisas diversas que foste esquecendo. No silêncio dos dias lentos, elas rangem dentro das cómodas do passado. Hesitas em verificar, em abrir essas caixas e cadernos já velhos. Ficas-te a ouvi-las com atenção, receoso do que possam dizer à luz do presente. Fazes de conta que vêm do vizinho ou lá de fora onde o mar se ergue pela janela e inunda a sala.
Pões música esperando que a contradição da inspiração e da alienação casem e se revelem na ponta dos dedos para que te obrigues a sentar e a escrever de novo. O apelo tem a vertigem da atração e da repulsa. A coragem e a covardia da poesia, o impulso e a contenção, o abandono e a disciplina.
Por momentos foste envolvido no balanço de uma canção, de uma guitarra e de uma voz, até que cessou essa vaga num verso definitivo. Diz esse verso, que beleza é sentir a natureza, na voz do Tim Maia.

o outro eu

regresso à solidão
no subtil suspiro do respirar
regresso à quietude definitiva do espírito
o mergulho no corpo e o voo da alma
a queda imparável do ser

reencontrar-me
eu que nunca me conheci de verdade

a escolha

houve um momento em que fizeste uma escolha
entre escrever e não escrever

esse momento foi decisivo e irrecuperável

decidiste não escrever

e a partir daí a vida tomou um rumo em vez de outro

esse outro rumo ainda vagueia no fundo do fundo
como o monstro adormecido de um vulcão
e por vezes
o teu ser estremece de uma ponta à outra
como se o corpo uivasse até ao limite de si mesmo
e os poucos versos que vão saindo de quando em vez
são a sombra ténue de tudo o que ficou por dizer

não é bom nem é mau
foi a escolha que fizeste