a cova


dedicado ao João, Mário, Miguel e André
companheiros de viagem
inspirado numa obra do artista chinês Wang Gongxin exposta no Guggenheim em Bilbao

começou a cavar um buraco, toda a obra de uma vida. cavou até ao impossível. pazada a pazada cada vez mais profundo. tão profundo até o profundo deixar de ser fundo e ser o seu revés. procurou o sonho louco de, no fim da empreitada, encontrar o céu dos antípodas. imaginou o último punhado de terra a revelar o azul celeste do outro hemisfério. conseguiria olhar o céu olhando o chão. cavou como quem cava a sua própria sepultura para que o seu enterro fosse uma queda invertida, uma ascensão pelo solo.
era um poeta.
só a poesia vence a lei da gravidade.

escrever na areia

Escrever na areia e esperar que uma onda leve os versos de novo ao silêncio profundo do mar. Revelar palavras para as calar e serem elas a essência da quietude. Segredos que se murmuram uma vez e que a espuma das vagas cobre com seu manto salgado.
Nas profundezas dos oceanos, jaz uma biblioteca muda e cega, onde náufragos folheiam as proas dos livros e se remetem a uma leitura eterna de sereias, corais e leves poeiras do que submergiu.
O que se escreve na areia é uma tatuagem ao revés, do avesso, e, ao contrário do que se pensa, no corpo do mundo, ela perpetua-se na pele interior de todas as coisas. Uma autópsia do universo comprovaria isso mesmo. Toda a história do que nunca aconteceu está impressa no dentro do dentro.

madrugada

mil marés depois reencontro uma madrugada e o lento nascer do sol
as brisas da manhã a varrerem um resto de noite e a clarear o olhar

é a hora em que todos dormem ainda no ontem e por breves sílabas o tempo estagna antes de engrenar de novo
um verso em suspenso na corda do horizonte
tremendo perante o corte da aurora em sóis de um orvalho ainda há pouco lunar
não há hoje ainda, existe apenas a esperança de um alento

não é momento de paz nem de assombro
é o absoluto
o derradeiro sopro divino de todas as coisas
a combustão de um cosmos por decifrar
a possibilidade de todas as coisas e de coisa alguma

mil marés depois
a praia ainda colhe as ondas sem hesitar
e há segredos tão bem guardados que ninguém os sabe nem ninguém os soube
os silêncios são tranças e rugas e pele

campos imensos

Vi multidões de poetas a atravessar campos imensos. Iam carregados de inaudíveis silêncios com seus escritos nas mãos. Coisas que ninguém leu e que ninguém ouviu. Eram profetas a cumprir um destino devido. Uma turba de escribas em desalento, descrentes do passado e do próprio talento, iam de olhar denso e cerrado. Caminhavam como que levantados por ventos e tempestades, caminhavam sem parar por esses campos imensos.

do inominável

as palavras aladas são as mais fáceis
as que planam e têm asas e sobre a alma espiam sem lhe tocar

as palavras chãs é que são difíceis
as que chafurdam no mais baixo de nós com as hesitações e os infinitos desalentos que não acabam nunca
com as perdas irremediáveis dos futuros por cumprir
essas são as que não nos escapam e que, no entanto, não são nossas - mesmo se nos tatuam os poros da pele.

a voz que dita no escuro antes de adormecermos, esse turbilhão que nasce num lugar desconhecido e nos arrebata o espírito
ou quando nos deitamos na toalha da praia após um mergulho e não é apenas sol e sal que nos abraça mas também uma qualquer coisa de invisível, de inominável

atravesso silêncios novos de ausência

atravesso silêncios novos de ausência
pensava que os conhecia a todos
mas no jardim das infinitas campas de versos apagados
há sempre mais um segredo que se revela

jazem as palavras que enterrei nos atos indesculpáveis da vaidade
e nos arrependimentos literários que me acometem
são incontáveis as palavras que apaguei e que traí
como também são indizíveis as razões desses crimes e dessas traições
a indignidade de não se dizer uma verdade prevalece perante as ondas do esquecimento

atear ruídos é uma atividade de pirómano lírico
que perante as eternas florestas de poesia
sonha em ver um grande incêndio cujas labaredas engolem nada
para no fim restar somente uma chuva de cinza de poeira e de solidão

sei agora que os regressos são obras inacabadas de toda uma vida
e que o tempo é o mar que nos banha em silêncio

sobram nós górdios por todo o descampado da minha existência
e a espada que empunho tem o peso todo do passado e ferrugem semeada pelo milenar sal do mar