dia 243

o telefone tocou de madrugada
atendi

do outro lado ninguém falou

imaginei que fosse um jornal velho a lutar com o vento no chão
não sei porquê
talvez fosse do sono

desliguei

de manhã tocou de novo
era engano
perguntei se tinham ligado durante a noite
disseram que não
pediram desculpa

a meio da tarde
quando mais uma vez o telefone tocou
não atendi

arrependo-me até hoje

dia 242

ela foi dizendo coisas enquanto olhava para a televisão desligada

no fim do dia
o que importa
é que sobre um pouco de dinheiro
não muito
apenas o suficiente para apostar que foi o último

à volta dela os outros ouviam até ser hora de recolherem todos aos quartos
e aos coletes de força

dia 241

leu livros que diziam muito pouco
e outros que diziam demasiado

dias houve em que não bebeu muito
e outros em que bebeu excessivamente

noites que passou em claro
e outras em que desmaiou

nesse aparente equilíbrio das coisas
somente se apercebeu dos extremos

nunca navegou um mar cinzento
ou a luz o cegava
ou o breu o cobria

ou desesperou
ou rejubilou
nunca se contentou

dia 240

pão, vinho, amor e cólera
disse Neruda

e um quarteto desses daria um bom concerto

dia 239

confessou
que voz era coisa que não tinha nem nunca chegara a ter

de olhos vermelhos de cansaço e o corpo despejado no sofá admitiu que não era ele que escrevia
que encontrara umas pessoas
uns escritores sombra a quem pagava em bebida os escritos que depois assinava
eram homens e mulheres vestidos de preto que se juntavam em recuados e caves de casas velhas para escrever
eles tinham barba e elas cabelo comprido
falavam em rima e nunca riam
apenas sorriam

que mos podia apresentar disse-me

recusei amavelmente
e depois de me afastar vesti o meu casaco negro e passei a mão pela barba

dia 238

a última vez ainda tudo era a preto e branco
as noites eram perturbadas pelo barulho intermitente de um frigorífico velho no quarto
a cama quente demais e as manhãs tão longínquas que a insónia teimava como uma canção que não sai da cabeça
o tempo tinha mais tempo por dentro

agora
tudo diferente
as cores do abandono pintadas nas paredes
a cama sem colchão e um frigorífico desligado e ferrugento no chão da sala
o silêncio inconfundível das ruínas
o tempo não passa... o tempo já passou

dia 237

chovia forte lá fora
eles estavam na mesa ao lado da janela

eu no lugar do costume
no canto
com meia cerveja a morrer no copo

mil gotas desciam no vidro formando lanços de lágrimas
e o reflexo do rosto dela silencioso
multiplicado por todo o vidro

não falaram até saírem
os cafés bebidos e perdidos sobre a mesa e um guardanapo

a solidão é isso
uma mesa desarrumada com chávenas de café fora dos pires sem ninguém

vá lá que ainda me sobrava cerveja morna
sempre era um pequeno aconchego antes de sair
também eu
para a noite chuvosa

dia 236

reescrevi mil vezes os versos de hoje
e mil vezes insuficientes foram

porque insiste uma palavra em aparecer
e não sei o que fazer com ela depois

o sensato seria não escrevê-la
evitar o ruído atabalhoado do que se seguiria

mas aqui estamos
e uma pessoa quando olha de frente o inevitável
ainda se agarra à teimosia do impossível
do milagre 
da escapatória 

dia 235

eu tu ele ela nós vós eles elas
mas na verdade
agora
é

você

dia 234

deixar as constelações no céu
não lhes mexer

e o mar para lá da janela
que entre mais tarde

o copo de água na mesa
e a vela a tremer de luz até sugar o pavio e esfumar-se em penumbra

dia 233

os ossos retratados num quadro
mas ele não sabe os nomes dos ossos
nem sabe sequer se são humanos

no entanto
eles ali estão
desenhados ao detalhe
limpos de qualquer epiderme
e à volta restos de flores e de terra

uma sepultura a céu aberto
de alguém ou de algum bicho

e ele e o gato olham o quadro

dia 232

tinha uma voz aguda
e falava com a certeza de um louco

o mundo vai acabar
o fim aproxima-se

eu ouvia
como sempre
bebia e anuía mas não o convencia

ele insistia
e abria os olhos até quase saltarem fora

o mundo vai acabar

até que me levantei
e o deixei sozinho
mas antes de sair perguntei-lhe
na minha voz grave e olhos meio cerrados

e que tenho eu a ver com isso?

já cá fora
tropecei e esfolei um joelho


dia 231

a sede instala-se
seca a garganta das coisas
até elas desaparecerem nelas próprias
implodindo sem rasto sem sombra nem eco

um dia escreverei sobre essas coisas
pedaços de pedra a resistir ao deserto
garrafas partidas em entulhos vasculhados por gaivotas
farrapos a fazer de cobertor aos sem-abrigo
beatas fumadas até ao filtro arder
gatos esfomeados a fugir nas vielas
tatuagens com nomes de amantes que já não o são
livros por ler
beijos nunca trocados
guitarras sem cordas
cinzas de lareiras com mais de cem anos
ruínas do que nunca foi monumento sequer

e quando escrever sobre essas coisas
a sede saciar-se-á

dia 230

antes
nesta sala
três silhuetas de mulher e uns arcos compunham o cenário
havia também um quadro a preto e branco

hoje
outros quadros e janelas maiores abrem sobre o mar

as madrugadas são iguais
o som da televisão da vizinha
talvez mais carros rasguem o silêncio lá fora

mas
na verdade
a página em branco contém o mesmo abismo de neve quieta e muda
e cada palavra surge malgré moi como dizem os franceses
e os versos amontoam-se seguindo a regra da gravidade poética

o segredo está em insistir
insistir até que doa
e sobretudo
até que deixe de doer

dia 229

o primeiro verso era sobre o regresso da chuva
todos os outros eram um desastre
talvez se aproveitasse o terceiro
mas mesmo assim decidi apagá-los
sacrifiquei o primeiro por solidariedade
mesmo que não merecesse
pois falava desta chuva de verão que vejo cair pela janela

mas a poesia tem um código e uma irmandade
e por vezes também
um carrasco

dia 228

a longa caminhada pelo esquecimento
faz-se por um jardim sem pássaros
sem flores
e com um lago com água tão serena que até os nenúfares desconfiam

por vezes num banco senta-se uma dúvida
outras vezes uma impressão
e os lábios no limite de se abrirem para dizer uma palavra acabam mudos e em silêncio

dia 227 - ciclo

não pintava há muito
tinha as telas espalhadas pelo chão
inacabadas nos traços e incompletas na alma
as tintas secas quebravam sob o peso do calor
e restos de cerveja em garrafas quase vazias azedavam pacientemente

o gato não parecia interessado no bloqueio criativo
e miava quando tinha fome

quando finalmente voltou a pintar
veio o inverno e as manchas de humidade nos cantos da sala

optou por beber chá e eram as chávenas que agora se multiplicavam pelo chão
o gato dormia por cima de uns trapos manchados
a alma e o traço voltavam aos quadros

dia 226 - moby dick

nem ela nem ele
pouco apareceram até ao momento
e após quase quatro anos de leitura e mais de metade do livro passado
temo que quer o capitão quer a baleia
tenham desistido de mim


dia 225

tentei escrever uma história
mas a história não se escrevia
teimava em não se contar
ficava a meio
afastava-se do fim e arrastava-se em longos adiamentos de si mesma

ela espera ainda
como se fosse eu a ter a chave do seu desenrolar

entretanto
vai-se desbotando
petrificando na indefinição que sempre foi

hei-de tentar uma vez mais
e saberei enfim
se por baixo dessas palavras mumificadas
palpita um coração ainda
ou
se como as figuras de pompeia
elas se desfazem em cinza e poeira 

dia 224

quando o vento traz ecos
e parece repetir sempre o mesmo uivo
e as gaivotas disparam pelo céu sem rumo
e os arbustos contorcem-se num emaranhado de ramos
e as nuvens passam no alto esfumando-se
e as gentes recolhem a casa
e o mar ergue-se espreguiçando-se após um longo sono
e as palavras revoltam-se
e os carros passam apressados pela rua roendo o alcatrão
e os cães ladram nos jardins escondidos
e tudo o resto parece serpentear em desnorte

a lua imóvel e irredutível
tatuada num disco pálido
cala-se em luar sereno

dia 223

gravar o nome na areia
na mesa da escola
numa árvore
na pele
numa pedra com outra pedra

morder uma língua
arranhar a noite e o calor do verão
gritar numa almofada até faltar o ar

tudo isto
o instinto de dizer que se existe
nem que seja ao espelho
ou à folha em branco
ou à solidão

dia 222

um vestido vermelho
era tudo o que lembrava 
eu ouvia mas por vezes a atenção resvalava como aqueles grãos de areia nas dunas
mas ele insistia que o vestido vermelho era a derradeira recordação que tinha
eu acenava que sim
mas ele continuava

uma pena
que a memória não fosse dela nua
sem vestido vermelho algum

dia 221

falava-se de onomatopeias
e pensei que para além dos bichos
do fogo
da água a cair numa fonte
de uma porta a fechar-se com o vento
também o silêncio tinha a sua:
a poesia

dia 220

um dia cheio
de vinha
de sol
de pele
de amigos e gente tão boa como fruta madura
de nós
de ti
e de uma lua impossivel e irreal

dia 219

longe do mar
nas planícies silenciosas do interior
quando a lua se ergue
ergue-se mais alta

não sei explicar
como se houvesse mais céu entre o luar e o olhar

talvez seja outra coisa
talvez haja mais olhar entre o céu e o luar

dia 217

pela tarde o infinito ficou suspenso 
demorou numa onda que deslizou pelo areal inteiro
cobrindo de espuma as pegadas e as conchas e as pedras
ao longe o teu corpo deitado e um perfume a sal voando com o vento

o meu naufrágio final em versos

dia 216

o corpo nunca se cala
nem mesmo depois de morrer

os sopros da matéria fazem-se ouvir no silêncio da noite
seja um coração a bater 
seja uma entranha a torcer
seja uma carcaça a apodrecer

um corpo fala até ao infinito

dia 215

antecipas a cama
sabendo que uma lua grita cheia na noite lá fora
e grilos e cigarras rompem o silêncio rangendo seus cantos indecifráveis 

o vento sopra neste lugar
trazendo uma réstia de mar e de sal

esta é uma noite perfeita para que as almas se abandonem ao sonho
ou que os sonhos se abandonem às almas

dia 214

viemos por estradas desertas
o carro fez as curvas devidas
e na rádio tocou a música certa

esta foi a odisseia
até finalmente chegar ao teu corpo no silêncio do quarto

há sempre um périplo numa história que vale a pena 

dia 213

li um poema sobre a lealdade do pó
e de como arranja sempre forma de voltar

nas estantes
nos livros
nos copos
no chão de madeira
no sofá
nos candeeiros
nas Escrituras
tudo vem do pó e tudo retorna ao pó

nas estrelas
esse pó primordial que tudo criou

e quanto mais não fosse
nos versos cantados de Joni Mitchell
we are stardust
we are golden
and we've got to get ourselves
back to the garden