ainda não acabei

Manuel Cruz

mergulha-se
e no simbolismo navega-se à flor da alma
contra as correntes e os ventos
ou naufraga-se que no fundo vai dar ao mesmo

já se disse antes
um náufrago não deixa de ser marinheiro
e quem sabe se não é o maior dentre eles
como são poesia os silêncios entre as palavras
ou como é saudade o nó que aperta mesmo antes de se saber do que se sente falta
ou são premonições os sonhos febris nas noites de verão

o que sobra

disse-me que desconfiava
que seguramente eu tinha escrito naquele dia derradeiro
que
conhecendo-me
não seria possível que eu não tivesse escrito

pode ser que tivesse razão
mas eu não confirmei

escrever está para lá de mim na verdade

basta uma melodia a pairar e uma madrugada pela frente
e é sabido
que melodias e madrugadas não faltam
nem palavras nem coisas a dizer

o que sobra é a dúvida de uma leitura
porque um verso trinca-se até que sobre somente silêncio e um pouco de saliva nos lábios

um poema estava escrito

e a voz dela desceu como o sol nas tardes intermináveis de outono
feita de veludo e de abraço felino
um afago com acorde de piano

de pé olhava-a deitada no sofá
o mar a entrar pela janela infinita
a banhar-lhe a almofada de caracóis
os barcos ao largo num balanço subtil
voos de gaivotas no alto de um céu malhado aqui e ali de nuvens passageiras

o tempo a passar devagar
e as orquídeas eternas em em flor
os livros nas estantes a sussurrarem
um caderno sobre a mesa à espera de um verso

fiquei
aguardei que viesse

quando chegou
trouxe vários
e à mesa ficámos enquanto ela dormia

já não sei se bebemos ou se escrevemos
mas no fim
quando a noite já chegara
um poema estava escrito


a sede

bebe até a sede voltar
uma e outra vez
como uma obsessão
e onde saciar é o verbo definitivo e também impossível

uma sede que não se mata
e que insiste em não morrer

a solidão

num dos inúmeros inícios
quando os primeiros seres se refugiavam em cavernas
pintavam o universo nas paredes
tatuavam
com lama carvão e sangue céus e horizontes
ardiam em sonho e alucinações todo o real
nasciam e morriam nesses incêndios dentro dessas mesmas grutas
nunca de lá de saiam de verdade

desconheciam que a morte quando chega
chega para todos no mesmo exato momento
que é quando o tempo se esgota e acaba

e eram ignorantes de que a única escolha que todos temos
é a de poder morrer agora ou morrer mais tarde
não existe outra

e de tão solitários serem
tão abandonados nesses incêndios do espírito
tão órfãos de deuses e de esperança e de acasos
descobriam a solidão em todo o seu esplendor
não tinham a quem rezar
pois eram eles os deuses e as esperanças e os acasos

quiromante

o que pareciam ser vales imensos
eram tão só rugas na mão de um gigante

por esses desfiladeiros errou o poeta durante mil ocasos e mil auroras
desbravando madrugadas 
batendo trilhos
cruzando margens e escalando montes
teimando por caminhos encarquilhados
até às falésias derradeiras

no fim
na foz de tudo isso
na praia do cansaço e da rendição
já lhe lera a sina inteira

o acordo tácito da poesia

talvez tenhamos que rever a idade das coisas
recontar cada instante de novo
acautelar instantes que se nos tenham escapado
e fazer as contas uma vez mais

pelos vistos falta tempo ao tempo para explicar a existência de factos consumados

as palavras provavelmente são insuficientes ou limitadas
e as interpretações ganham vida própria

aliás
aviso
que cada leitura se faça por sua própria conta e risco
este é o acordo tácito da poesia

não culpem a voz nem lhe deem graças
os versos ficam órfãos a cada novo silêncio
são lobos solitários que uivam e uivam até a própria lua não caber mais no céu

em que

encerremos
cubramos com um véu ou manto
este horizonte inalcançável

deixemos que se extinga o suspiro do cansaço e do abandono

que o mar se estrele em mil sóis e bambeie num ondular sereno
e que o sono venha aos poucos e de soslaio

e que quando chegue
a memória se esfume no instante exato em que