o poema ao contrário

meu amor
seria o primeiro verso do poema ao contrário

depois, que seria na verdade antes,viria
que velo o teu sono

e depois, que seria ainda mais antes,
saber que descansamos na cratera do nosso encontro

e depois, que seria num antes de tudo,
saber o estilhaço de alma que é ver-te pela primeira vez

e acreditaria, logo ali,
no amor à primeira vista

o poema ao contrário é circular
porque começa e acaba no amor
num lugar sem tempo
num lugar sem lugar

o poema ao contrário,
finalmente endireitado

saber o estilhaço de alma que é ver-te pela primeira vez
que descansamos na cratera do nosso encontro
que velo o teu sono

meu amor

não temos princípio nem fim

A melancolia é um sentimento de falha, de ausência. Sofre-se ao senti-la. Não de uma dor insuportável mas antes de uma dor que insiste e se insiste. Sorte daqueles que como eu, a sentem assim de peito aberto, que a acolhem com a alma. Tanto por saberem que ela é fruto de se ter vivido um tempo por inteiro, de se ter comungado com outros totalmente, de os tornar família, como de se aperceberem que esse mesmo tempo escorreu de vez e o que nos fica é um eco de carinho. E sorte ainda mais, aos que mais tarde encontraram outro alguém que lhes dê um regaço onde se revela uma paz imensa. Tu és esse regaço. Poder eu, com o meu passado rico e pleno, descansar em ti esta nostalgia melancólica que me aperta o ser, e ter em ti um lugar de silêncio onde repousar, onde aceitar que não se volta para trás mas onde partilho a tal dor em desvanescer permanente e tranquilo, é a revelação do infinito que me és, do amor incondicional que te sinto.
Dizer-te que me rendo a ti, eu e o meu passado, que o torno teu, que to ofereço. O amor será isto, poder entregar-me também em saudade do tempo anterior a ti, ao antes de te saber, porque lá nos confins de nós mesmos, no abismo interior, sabemos ambos, que tu e eu somos fruto de algo ainda mais antigo que tudo o resto, que tudo isto. Nós, e a força toda do pronome, não temos idade, não temos princípio nem fim.

como lá longe

rodeado de todos os outros
quereres fazer parte deles
de te instalares em silêncios
como lá longe nascem e morrem estrelas
sem testemunhas para além do eco
eternamente propagado no mar cósmico

Voltar a casa

Ser-se de lugares vários. Poder dizer-se que se regressa a casa e não ser sempre o mesmo destino. Por uns dias, reencontrar um lugar com cheiro a passado, um lugar tatuado no tempo, retalhado numa infinidade de momentos, cravado no fundo da alma, com toda a magia possível de se reerguer ao presente e embalar-nos numa melancolia tão doce, tão suave, que o infinito se sente a resvalar em cada poro. Voltar a casa, é um estado de espírito.

O revés

Terá contado histórias, todas as histórias. Mas não ouviste, estavas demasiado preocupado com a espuma da cerveja a deslizar do copo, ensopando o pousa-copo de cartão. Terá dito coisas, todas as coisas. Mas não tomaste atenção, perdias-te nas espirais do fumo dos cigarros dos tipos ao lado. Terá explicado o que aconteceu, tudo o que aconteceu. Mas não entendeste, vagueavas o espírito pelo lado oculto do que ele contou, disse e explicou, que é como quem diz, vagueavas pelo lado oposto de tudo isso. De todas as histórias que ele contou, de todas as coisas que ele disse, de tudo o que aconteceu e ele explicou, nada retiveste, criaste antes, à volta disso, tudo o seu contrário, todas as histórias que ele não contou, as coisas que ele não disse, e tudo o que não acontecu e ele não explicou. Como se ele ao falar-te, provocasse em ti, o revés, o reflexo

do silêncio

apenas do silêncio poderá brotar a palavra definitiva, perfeita e limpa
a palavra final que te dirá tudo de uma vez, de uma só vez, de uma só e irremediável vez
dessa palavra brotarão outras, ecos, reflexos, imparáveis, povoarão os recantos mais profundos, as terras mais longínquas, as montanhas mais altas
e quedar-se-ão mudas uma vez mais, sopros quietos na solidão universal,
apenas do silêncio poderá brotar mais silêncio

Escrever-te amor

De quando as últimas palavras que te escrevi? Essa ideia do amor que me assombra desde sempre, desde o antes. Essa rendição total do ser. A emoção que é o teu olhar a galopar-me a alma, o arrepio silencioso de te dizer "tu" e o rebentar na boca do pronome e de tudo o que ele carrega, por dentro, por fora, por todo. Escrever-te como no tempo em que a sala com vista para o mar era o palco perfeito para a poesia, com uma quietude tal que os quadros nas paredes murmuravam ecos dos seus traços. Evocar-te pelo verbo, pelo infinito definido e preciso de te amar ali, no agora, no imediato, e sentir ao mesmo tempo que não tinha corpo nem pele que chegassem para o compreender totalmente, porque escrever-te palavras de amor era a evidência de que jamais conseguiria fazê-lo por inteiro sem sangrar de vez numa síncope total, numa implosão de mim.
No fundo, escrever-te amor, é tão intenso que mais vale uma folha em branco e o mar infindo de todas as possibilidades.

faz ruído

faz ainda demasiado ruído o silêncio
por isso o outono não descansa
e contorce-se nos ventos irrequietos
nas chuvas intermitentes que se despenham
vindas do céu desmaiado de palidez

faz ainda ruído o silêncio adiado de um mar revolto
encorrilhado entre espuma e águas cor de chumbo
tricotando-se entre os calhaus negros

faz ruído o silêncio vazio das palavras
que insistes em cravar na imensidão da tua pórpria mudez

faz ruído o silêncio
pois ele é todo o barulho possível
na implosão de todos os sons
cataclismo de todas as sílabas
revés de cada sopro
rumor ou murmúrio

Borges

Ler Borges é um acto de loucura. A noção de infinito nunca foi tão palpável. No meio dessa queda vertiginosa pelo universo que se nos revela, nem tempo há para a total rendição. Não há tempo, ele já escoou todo para lá do agora... e repete-se ad eternum sempre igual, nunca igual, desdobrando-se nas inumeráveis possibilidades do que aconteceu, acontece e acontecerá, sendo que nem essas noções são precisas. Ler Borges é, finalmente, confrontarmo-nos com o desassossego de uma fatalidade, sendo que ela não tem rosto, não tem denúncia, e ela, no fundo, pode ser todas as coisas possíveis e todas as coisas impossíveis. Ler Borges é sermos transparentes e estarmos dentro de um cubo feito de espelhos.

a possibilidade infinita de todas as coisas

o gato dorme as horas da tarde que tardam em passar
tu velas essas horas
ao som de música cubana
foi a que te calhou hoje

escolhes palavras
evitando assim apanhares a roupa seca
e preparares a tábua

pensas na barba por desfazer
e concluis duas coisas

que nem a roupa se apanha e se passa sozinha
nem a barba se desfaz sem pegares na lâmina

curioso também é revelar-se
já no fim destes versos
que eles
tão pouco
se escrevem sem uma mão a fazer o frete
por muito que existissem já
na possibilidade infinita de todas as coisas

O limbo

Sendo que a literatura é a arte de mentir para revelar a verdade, não é menos certo que a verdade são mentiras reveladas. Andamos assim, no limbo. Talvez o limbo seja o que de mais concreto exista.

O tecido do tempo visto por um poeta

Olhamos o relógio e faltam cinco minutos.
Fica esse momento feito eternidade.
5 minutos que não terminam nunca.
Infinitos no tecido do tempo

Olhamos o relógio uma vez mais.
Foda-se!... passaram já 10 minutos.

alguma coisa

lês uma cena de um deles
de um desses que sabem ou souberam escrever
coisa simples
limpa
batida à máquina em fundo branco que fora silêncio

e disso que lês percebes que disseram alguma coisa
e que dizer alguma coisa tem que se lhe diga

tu dize
vais dizendo
mas não sabes se é alguma coisa
porque alguma coisa que se diga não é para todos

lado lunar

Ficou esse lado lunar do Gerês a ressoar ainda hoje no silêncio dos olhos. Um rumor quieto a percorrer-te a alma, um chamamento profundo como que um convite. Hás-de aceitá-lo em breve e cumprirás um regresso.


Dos sítios

Foste a alguns sítios já mas faltam-te muitos mais. Dos sítios a que foste alguns tatuaram-se em ti. Melhor, revelaram-se em ti, como se já lá estivesses estado antes de tudo. Porque é isso, é exactamente isso, reencontrares no deslumbre de certas paisagens, um arrebatamento anterior a ti, como que um reconhecimento infinito, uma rendição total da alma e do ser. Um lugar que te escancara os olhos e a boca em espanto, não é mais que a vertigem contraditória de saberes e não saberes ao mesmo tempo, que ali pertences, que ali sempre pertenceste e que ali sempre pertencerás.

Ele ali

Por certo foram os silêncios profundos dos cafés desertos que lhe trouxeram paz. Numa mesa, mergulhada a um canto, coberta de sombras, o espírito pôde acalmar. De frente para a saída, vendo o mundo à distância pelas portas envidraçadas, sentia-se repousar. Uma cerveja morna pousada definitivamente. Uma música de fundo a pairar na poalha de luz sombria. Uma folha em branco e uma caneta. Do papel o mar mudo da ausência de palavras, na caneta todo o ruído possível condensado em tinta. E ele ali, entre a possibilidade de poesia e a mais profunda quietude da alvura da folha vazia.

prá Lira

prá Lira
o beijinho de parabéns nos intervalos
nas pausas
nos silêncios
e no mergulho da partilha que vai quase em oito anos
(e uns pozinhos pra trás, uns pós de perlimpimpim de tumulto necessário)

o beijinho neste dia daniversário
um beijo inho sí la ba a sí la ba
nas pausas
nos silêncios
nos entretantos
nos agoras e nos depoises

o beijinho inho inho em cada uma das vinte e... oito primaveras
e nas vinte e oito seguintes

o beijinho nos lábios
e nos arredores em redor em redor em redor
do teu eu inteiro

prá Lira
o beiju de paRRabénze
seguindo-a sempre.


faço o que posso

um cão ladra para lá do negro da janela
sei que faltas cá tu
que o amor não é uma ciência exacta
é antes uma paciência exacta
uma dedicação que uma força tem por nós
um alento que se nos sopra em silêncio
e cujo arrebatamento é a força maior que um verso pode suster

o cão já não ladra
e ainda assim por obra de não sei que fantasma
sei que todavia faltas cá tu
e a paciência exacta que o amor é
prevalece a força maior que um verso
(ou dois)
pode suster

faço
por isso
o que posso.

regressar ao fim

não se regressa propriamente onde nunca se esteve
mas podemos regressar ao caminho
podemos reencontrar as mesmas estradas enlameadas
os mesmos passeios escorregadios

não se regressa ao que jamais se alcançou
mas podemos regressar ao sonho
à vontade profunda de almejar
ansiar
aspirar

não se regressa às palavras que não se disse
mas podemos dizê-las pela primeira vez
rasgando o silêncio
nem que o rasgando regressemos à quietude anterior

não se regressa a nada a não ser ao fim

tu

o gato a ser gato
eu a ser eu
tu a seres tu

o gato sendo gato
é o gato mais a curiosidade que lhe eriça o pêlo
e uma ou outra cambalhota mais no meio da sala

eu sendo eu
sou eu e pouco mais
o que já não é pouco num pedaço de gente

mas tu sendo tu
és tu mais o teu sorriso a mergulhar em mim
tu mais o teu corpo desenhado em sombra
tatuado em meu olhar
tu mais tu mais tu
imensa em mim
no que escrevo
e
no que não escrevo

pois tu és tu
e sendo tu
és também o silêncio na tua ausência
és lugar vazio certas manhãs
és ternura no sono que me calhe velar

tu sendo tu
és um infinito tal que me tolda a vista da escrita
e me remeto a uma rendição anterior a mim

porque eu, sendo eu
sou eu e pouco mais

o gato sendo gato
é gato também quando dorme
é gato enroscado enquanto escrevo

e tu és tu
e não há pronome que chegue para te nomear
nem nome sequer
nem palavra
nem nada

Ardes

O calor a estalar-te nos poros. Do alto do céu azul, cai a luz quente do sol, inundando-te em vagas, levando-te a dilatares o olhar por dentro. A roupa, por pouca que seja, a ser pele da pele. O verão é agora uma palavra inteira, sendo também o inferno dos graus a treparem o termómetro, sempre a subir, percorrendo cada ruga da face, cada curva das costas, cada dobra das pernas. O suor não vem logo, vem no descanso de uma sombra milagrosa, coalhando em sopa morna por todo o corpo. A alma também ferve, errática, desnorteada. O abandono à canícula é inevitável e nem a poesia te refresca. Ardes com os dias que rebentam, ardes com as noites que teimam em ecoar a chama dos ventos desérticos pela madrugada fora.

do primeiro mergulho do ano

na volta dos anos, no interminável regresso do apelo da água, do sol e do sal,
das vagas do calor que me inundam o corpo, do silêncio quente sob o zénite, das brisas rasteiras junto à toalha, dos olhares descansados que se lançam ao horizonte, seja ele o que está lá longe ou logo aquele que se distrai ali junto aos pés molhados,
dos passos leves rangendo a areia que pisam, dos gritos alegres dos mais pequenos que rasgam o ar de cima a baixo,
das rugas trilhadas sobre a água reflectindo a luz do dia e espelhando-a à nossa volta até ao mais fundo da alma
comunhão serena do espírito com o tempo que se nos escapa dia-a-dia,
o primeiro mergulho é o acerto do relógio profundo

Do sangue e da pedra


Do sangue e da pedra. No meu nome, bem no meio, vindo do lado materno, existe Rocha. Plantada assim entre o início do que me chamam e a herança paterna a rematar a graça. Assim, Rocha, bem no meio do Filipe e do Pinto da Silva. Rocha do Minho e do mar vareiro de Aveiro. Dos pescadores falarei um outro dia, hoje fico-me pela mineralidade minhota. Logo hoje, dia de solstício onde o sol se alonga um pouco mais do lado de cá, desenhando um ângulo perfeito por entre os menires lá mais do Norte.
A minha Rocha vem de terras húmidas e verdes, isoladas entre serras e matas, semeadas desses pedregulhos enormes carregados de nevoeiros místicos. Terra também de druidas, de celtas, de silêncios rasgados por uivos de lobos, pássaros solitários e ribeiras teimosas a cair em escarpas.
Rocha feita pedra, imóvel na aparência pois foi-se lançado pela eternidade dos homens que pariu nos princípios, ecoando agora em gerações que se afastaram, é certo, como eu, mas cujo sangue carrega esse calhau primordial, radical. Essa Rocha do início, do zero absoluto. Rocha etérea, pesando mil toneladas, viajou já milénios e muitos mais viajará ainda.

Sonhando com a paisagem sem horizontes


No teu imaginário, algures entre o sonho e o desejo, sempre esteve uma fuga para longe. Lançares-te assim para a solidão mais profunda através do embarque irreflectido. Partires para onde reina o silêncio e a água escura dos oceanos ou o negrume eterno do universo. Acomete-te a vertigem dos navegadores antigos e dos astronautas modernos. Há momentos intensos que acontecem dentro de ti, um chamamento, uma total entrega à imagem irreal de uma paisagem sem horizontes. Sim, isso, uma paisagem sem horizontes, banhada somente pelo infinito e pela paz derradeira da alma, da entrega, da rendição. 

MC

O meu afazer é não me ocupar de nada. A minha felicidade é perder pensamento, deixar-me ocupar por aquela leveza, esquecendo-me de que, perto, existe algo chamado «realidade». As garças cinzentas passam com lentidão de barco e parecem dar-me razão: o paraíso não é um lugar, é um breve momento que conquistamos  dentro de nós.

Mia Couto in Pensageiro Frequente
Prémio Camões 2013

ser

tenta o teu impossível, lança-te ao destino de pena em riste, enfrenta os silêncios e torna-os teus, ou pelo menos, torna-te parte deles na afirmação limite de se ser alguém, ou, quando muito, de se ser alguma coisa
pois sabes do poder dos verbos e sabes bem que o mais poderoso deles é o verbo ser

Das ramagens

Recordas a tal metáfora poderosa que te contaram um dia: há em África, uma espécie de árvore cuja ramagem é tão densa, tão densa, que mesmo ao sol do meio-dia, por baixo da sua sombra, quem olha para cima, parece ver o céu estrelado na noite, pois a única luz que passa pelas folhas e ramos, são pequenos pontos brilhantes quais estrelas nocturnas.
Claro que o poder da lembrança não chega ao poder da metáfora em si, que a não conheces na sua forma original, mas só a ideia te arrebata. A ideia da metáfora e a ideia de que alguém se lembrou dela e a escreveu. Duas ideias imensas, densas como folhagem da árvore, leves como a poesia.
Por cá, nestas latitudes as ramagens são mais leves.

livre

os silêncios a espreguiçarem-se nas ondas dos lençóis, a luz da manhã a inundar de sombra as paredes quietas,
já saíste e a tua ausência contigo,
fico eu e o teu lado vazio ainda morno, impresso na memória da noite já recolhida,
pelo quarto os sinais da tua ida matinal, o pijama, os chinelos, os colares, tudo semeado no acaso do sono interrompido, um rasto de perfume apressado
acordar sem ti e ter-te ainda assim, como quando acaba uma música e nos fica o eco na alma, ficas-me tu no corpo e no cheiro, no desenho tatuado da retina ensonada
acordo por fim e saio também
em casa ficará com certeza o nosso sopro, bailando no deserto humano que deixámos, enfim a sós, sem juízes, sem limites, apenas poesia sem leitor algum
livre portanto

Do vazio

Falas para o silêncio de um anfiteatro vazio. Cenário ideal para o que tens a dizer, pois o vazio para o qual falas é da mesma espécie do teu.


Dos silêncios forçados


Dos silêncios forçados pelas decapitações, brotam muitas vezes vozes ainda mais profundas e duradouras. A seiva lavra no invisível, no olvido momentâneo, no negrume dos âmagos, na quietude imensa das cavernas. Não há grito maior do que aquele que é atirado pelo símbolo, pela metáfora, pois ele resvala pelo mundo inteiro ecoando em cada esquina, em cada beco, em cada ravina, projectado como sombra infinita à hora do zénite perfeito.

Da foz à nascente


Se dos milagres que nos chegam, o espanto maior é percebermos que ao nos chegarem são esses mesmos milagres mais o eco de todos os locais por onde passaram, o milagre maior é aquele que não nos chega mas que já lá está há milénios. Como se no momento em que o acolhêssemos entenderíamos de imediato que ele já lá estava, que ele já era e é. No fundo, nesses casos, somos nós que chegamos a ele, nós e todos os ecos por onde passámos para a ele chegarmos. O amor é isso, um encontro com o que já lá estava antes de tudo e para lá de tudo. Uma história de sombras e penumbras que a luz vai desenhando da foz à nascente e não o contrário.

Trindade

Caminhamos juntos desde a primeira noite. Uma certa ideia do amor a acompanhar-nos. No silêncio das ruas desertas pudemos olhar o céu e a poalha de estrelas. De dentro das casas chegava-nos a luz fatiada pelas persianas corridas e um ou outro gato a esgueirar-se pelas vielas. A madrugada avançava, adensando-se ainda mais na quietude de todas as coisas e as sombras dos lampiões cresciam até ao negrume dos jardins mudos. Nós os dois mais uma certa ideia do amor, trindade perfeita no calor noturno, em comunhão serena e rendida.

33


Das capicuas. 33 anos. Por que não? Idade fatídica para a parte humana de J.C. e de Sam Cooke por exemplo. É assim, 15 de Março há 33 anos, nascia eu do ventre de minha mãe enquanto o meu pai jogava à bola. Há quase dois milénios atrás, Júlio César era apunhalado pelo próprio filho e outros naifas.

Andamos nisto

Andamos nisto e reconhecemos certos gestos quando, de longe, observamos os outros. E andamos nisto e, por vezes, arrebata-nos a ausência do carinho a que estamos habituados. As minhas mãos vazias das tuas quando vejo televisão, o meu olhar sobre o lado deserto que é o teu na cama, o silêncio na cozinha quando preparo comida apenas para um, a escuridão da entrada por não chegares. Andamos nisto e é bom porque o valor das coisas somos nós que o pomos lá dentro e é sabido que quanto mais ausência se adensa no tempo mais valiosas se tornam as coisas. No fundo somos avaliadores, aprumados dentro de nós quando a solidão levanta a voz e nos diz, com todas as letras, o que realmente nos faz falta. A mim, és tu que me fazes falta. E é bom para que quando estiveres eu saiba ser-nos por inteiro, sem condições, sem distracções e sem hesitações.

Saldanha da Gama revisitado

Saldanha da Gama foi um artista que conheci em Bruxelas. Um homem no mínimo peculiar. Escritor, artista plástico, anarquista, possuidor de um humor desarmante, foi um homem especial.
Tive o prazer e a honra de escrever uns textos para acompanhar uns "quadros" que ele fez, numa exposição na Orfeu em Bruxelas. As imagens não estão nas melhores condições, os textos são o que são, mas é das coisinhas de que mais me orgulho. Tratou-se na altura, para mim, de olhar os "quadros" de Saldanha da Gama e escrever o que me pareceu serem as suas más (mas deliciosas intenções) nestas colagens, pinturas, chamem-lhes o que quiserem.

Trunfo é copas


O baralho do corpo das mulheres dá-se à exibição. Cartas na mesa, na cama, ao espelho, na cadeira e no banho. Solitárias ou acompanhadas, multiplicadas nas copas dos seios expostos, esperando o corte de algum outro naipe. Com elas, seja qual for o jogo, não há espadas que as assustem, paus que as satisfaçam totalmente nem ouro que lhes seja suficiente. Com elas o trunfo é sempre copas, esse grall do amor, meio cheio, meio vazio dependendo do tempo.



Correspondência


Na arte perdida (ou revelada, lá está) que é a epistolaria, é muitas vezes menosprezado o papel do envelope. Papel enquanto material e papel enquanto metáfora. O envelope é o último reduto do silêncio antes da revelação, da despedida, da confissão, da declaração (de amor ou impostos, ou de impostos amores ou ainda de amores impostores), do desabafo, do ruído, da difamação, da cordialidade, da amizade, etc, etc. Pandora talvez não o soubesse (a caixa era, na verdade, um envelope selado), se o soubesse talvez o resto não fosse História.



A lógica da batata entre parêntesis


A lógica da batata perdeu-se (ou revelou-se, é que nisto das artes plásticas {recicladas ou não} entre a perdição e a revelação vai a distância de um pêlo {encravado ou não isso é outra história} e nunca se sabe bem se as diferenças não são, afinal, igualdades {ou vice-versa}), mas dizíamos nós, perdeu-se a lógica da batata em colagens caleidoscópicas. Tanto se imiscui entre dois jogadores de ténis (trocarão eles bolas ou batatas?) como entre um casal num salão de dança e uma sombra desenrolada num pedaço de relva. O negativo de uma mulher (que conjugação de palavras tenebrosa essa: o negativo de uma mulher, não será esse o primeiro sinal do Apocalipse?) encafuado entre uma árvore ruiva e metade de um losângo. Se isto não são provas irrefutáveis que a lógica da batata perdeu-se (ou revelou-se, é que nisto das artes plásticas...



Fazer a ponte


Fiquei surpreendido em descobrir com a tua carta e o fiel desenho do teu palácio, naquilo a que os parisienses chamam bucolicamente de “la campagne”, fotografias tuas juntamente com as das tuas irmãs, primas e amigas. Não vos sabia tão fotogenicamente sugestivas. Para além do óbvio amor ao ciclismo, narcisismo e outros ismos que me abstenho de mencionar e que vos une a todas. Se não for inconveniente, no próximo fim-de-semana alongado, alongo-me eu também até vós e, se assim o desejarem, alongo-me convosco em “vosco” e noutros “voscos” que tais... Poderíamos “faire le pont” todos em conjunto, seria “amusant” e “coquin”.



O auto-retrato geográfico


Relembrar os países por partes, por colagens. O passado a preto e branco, a loja (amarela) daquilo que temos a menos na cabeça e nos coloca acima do pensamento uma notícia triste. Postais ilustrados de outro tempo, combinados com restos de uma viagem de avião, palavra que rima com mão e que encontramos de palma escondida para que não se leia a sina. Uma data de cravos em Abril, um brinco feito anzol e por trás de montanhas sobem os raios do sol. Ao centro, sob a tal notícia triste, o mestre d’obras ou o mestre das obras, destas seguramente, de outras provavelmente.


Pescando galinhas




Não se apanham moscas com vinagre mas a pergunta é se se apanham galinhas com redes. Sobretudo as pernas de galinha que são mais irrequietas e se envolvem em meias. Meia palavra para bom entendedor chega, já diz o povo, esse sábio, mas galinha (ou “poule” em francês) com meias de rede até meia palavra se dispensa. Um coro de pernas de galinha, presas em meias de rede, cantando e batendo as asas freneticamente. Mas é sabido que nem as galinhas cantam nada de jeito nem voam lá grande coisa.



As dos outros


Ao termos que retratar o rosto de mulheres mais vale plagiar o retrato das mulheres dos outros (e se forem famosos como o Klimt ainda melhor). Embora o plágio seja universal e inevitável, já que nada se cria e que tudo se transforma (o rosto das mulheres não foge às regras), sempre se pode brincar com a mulher dos outros, recortando e colando os retratos a gosto.



Baralhar e dar de novo


As cartas baralham. As cartas baralham-se. As mulheres também. Aliás, os seus corpos é que baralham e se baralham. Com sorte, dão-se de novo, nem que seja em postais (mais ao menos artísticos) ou em literatura de títulos deliciosamente pleonásticos. As várias cartas trocadas no jogo epistolar podem levar a uma certa confusão artística mas há que ler nas entrelinhas para se perceber que o caos não é mais que uma ordem disfarçada. Matem-se os artistas, baralhem-se as mulheres e dê-se de novo, pode ser que desta vez saia algo mais que duques ou duquesas.



Camuflagem



Dizem que a camuflagem é um recurso resultante da Selecção Natural que permtiu a certos seres vivos escaparem à extinção. Na maior parte dos casos, a camuflagem permite enganar os predadores mas por vezes é utilizada pelos predadores para enganar as presas. Neste caso, ao falarmos de mulheres, a camuflagem serve para ambos os casos, dependendo dos humores. Elas não sabem é que para enganarem os homens não precisam de tanto, basta aparecerem.



A (outra) origine du monde


Ao centro a modelo de Courbet para a L’origine du monde, ficou curiosa e pôs-se a coscuvilhar(-se) sob o olhar (supõe-se) atento do homem do chapéu. No círculo imediato de influência temos pessoas de vários quadrantes cuja a única coisa em comum (e que não é pouco) é serem pedaços de gente. Os três reis magos afastam-se do centro e vão com dois mil anos de atraso num postal ilustrado. As pernas são semeadas um pouco por todo o lado e, no fundo no fundo, as colagens sempre ajudam a passar o tempo.


Dos penicos na cabeça

- Não acreditas na Liberdade?
- Nem por isso.
- Mas não leste o Quixote? Não leste quando ele se vira para Sancho Pança e lhe diz que a Liberdade é o bem mais precioso que os deuses deram ao Homem?
- Estás-me a citar um gajo que quando disse isso tinha um penico na cabeça.
- Mas precisamente por ter um penico na cabeça é que ele tem razão. As verdades maiores são ditas quando se tem um penico na cabeça, meu caro. Se não sabes isto, sabes muito pouco.

Dos antepassados

Ouvi histórias, algumas. Do lado da minha mãe e do lado do meu pai. Da mãe são histórias de vareiras por um lado e de lavradores por outro. Das vareiras a imensidão de filhos, do mar, dos lutos. Dos lavradores um tio-avô ou bisavô que foi morto por engano numa espera que correu mal. Um bisavô que morreu exactamente um ano antes de eu nascer e que tinha por hábito quando vinha lá do Minho ao Porto, ficar na avenida a contar os carros que passavam durante horas. Do lado do pai um bisavô que tinha duas famílias e que as manteve. Um que era estucador de tectos. Uma bisavó que caiu pelas escadas ao separar dois netos que se pegaram.
Dos antepassados ouvi histórias. A eternidade é isso, palimpsestos, farrapos dos ecos, mentiras novas sobre verdades antigas. Até sermos silêncio.

É noite já

No ocaso os silêncios crescem até preencherem as janelas desertas. Um resto de chamas ao longe sobre o mar. Recolhem-se as sombras e as formas começam a falar difusas, perdendo realce e escondendo esquinas e contornos. A noite envolve as ruas como uma onda, desaguando primeiro nos passeios e subindo as paredes e muros das casas até aos telhados mais altos. É noite já.

quando não estás

quando não estás
escrever para te ter aqui
outros tê-lo-ão gravado já, mas nada é novo, tudo é memória e o que parece novidade não é mais do que aquilo que já esquecemos
escrever, portanto, para te ter aqui
mesmo se te tenho na lembrança do corpo e no vazio das minhas mãos, mesmo se estás leve por entre o meu olfacto ou no sorriso aberto que se me tatuou nos olhos e na alma, mesmo se vagueias profunda nos ecos do meu escutar e me dizes coisas, as tuas coisas,
escrever para te ter aqui quando não estás e deixares de não estares em lado algum
pois escrever levar-te-á por todas as leituras fora, daqui ao infinito da voz humana
semear-te nas palavras para que te colha em todas as eras e em todos os silêncios e todas as ausências,
fazer do meu rumor atabalhoado a minha promessa solene de escrever para te ter aqui
quando não estás


Diziam eles

Diziam eles que o Amor era velho e deambulava sozinho em bancos de jardim durante a noite. Que o vento era o ar a mexer-se mais a memória por onde tinha passado, trazendo aromas de outros tempos, sombras de outras árvores e segredos de outros livros. Diziam eles.

Douro

Dizer o Douro. A vinha, a uva, o rio, a luz, o vinho e o silêncio. E dizer cada palavra, lançá-las soltas na imensidão do que são. Esperar e reparar que cada uma regressa e fala connosco. No Douro é tudo tão avassalador e tão humanamente real, que pode dizer-se que não há texto que o valha, relato que lhe faça jus ou testemunho que se acerque da verdade, e que apenas seguindo São Tomé e o seu "ver para crer", apenas com os olhos e com a alma rendida para lá dela própria se pode dizer Douro e compreender um pouco deste milagre tão grande, feito de luz, rio, granito, xisto, suor e sangue.


num só fôlego

num só fôlego ou em vários mas que no fim sejam apenas um como se as palavras se agarrassem umas às outras a evitar a queda de um precipício de mãos dadas no limite delas próprias num desespero profundo de resistência a quererem dizer o que dizem que é sempre mais do que o que vozeam como as sombras gigantes daquelas árvores míticas ou como as ondas do mar que se espraiam na imensidão da costa ou ainda os desertos silenciosos das camas desfeitas nos quartos abandonados pelos amantes apressados em ir trabalhar ou finalmente na quietude de uma estante repleta de livros a ganhar pó e atraso de leituras adiadas para sempre aquele sempre definitivo muito antes de acontecer de facto
escrever é ainda um acto sagrado de comunhão com o insondável
ou não
será somente encadear letras e esperar que a lotaria da literatura sorteie o milagre do acerto do que se tem a dizer

Do baú, anos 90


talvez seja silêncio que te lanço no escuro dos meus dias, talvez seja ausência que sonho, talvez sejam sombras e versos vazios que te atiro sem saberes, talvez seja tudo isso... e se é tudo o que tenho é porque não estou contigo...

Lendo

Vergílio Ferreira escreve na voz certa. Explicar isto demoraria muito tempo. Esse acerto é puramente subjectivo. A conclusão que tiro é por isso pessoal mas transmissível. Serão com certeza os temas, as histórias e tudo o mais que me fascinam no autor, mas há algo mais na leitura que me arrebata. A voz, a forma que ela toma na leitura que vou fazendo de todos os livros, é-me familiar. Não propriamente minha, porque o não é, mas digamos que no silêncio do meu pensar e sentir encontra um espaço que já era dela. Como se ler VF fosse o completar de algo pré-existente. Não sei dizê-lo melhor. No fundo, a leitura é apenas o eco de algo que li antes de nascer e depois de morrer, para lá do limite e antes do limite de se ser.


Que horas são? a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olha à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas.

Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há um pequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo. Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta da enseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, um cone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbito na cara, roda para o lado oposto.

Preciso de ter um sítio onde esteja bem. Onde esteja eu e não o que me dizem que é o mais plausível de ser eu. Um lugar oculto sem ninguém a testemunhar-me a vergonha. Porque tanta coisa a ser vergonha. Saber como comportar-me ser sensato ter propósitos. e a tua imagem aí - é bom. Eu sei. O teu perfil contra o longe das oliveiras. Contra a tarde clara do ar. E os teus olhos na distância em que estou e tu já não. Never more. É uma tarde de Maio talvez. Alguém canta numa casa da rua de baixo. Nunca mais.
- Não me diga que também gosta do nome!
Quando foi que te conheci? Nunca mais.

E uma comoção súbita, profunda. Tomo os cravos um a um espalho-os devagar por cima. então foi como se eu próprio me não visse, não existisse, dissipado no vazio de estar ali. Luto desesperadamente, os olhos ardem-me. O sol violento, a terra deserta. Eu só.

Podia eu dizer o mesmo? na luz dúbia da manhã, entre a noite que terminou e dia que vai começar. O facho do farol varre as águas de vez em quando, embate-me subitamente, esmorece numa pequena luz. E o rumor do mar como um coro, o estoiro das vagas contra o fundo da falésia.

- Não gostava que viesse. Preferia levar a imagem do orgulho dela e do meu. E tu no meio, sem orgulho nenhum.

Não tinha ilusões sobre isso, não tinha. E quis que tu as não tivesses também. Revelar-te o estado de coisas real. Revelar-te a miséria da nossa vida. E ver se aprendias a humildade. É a lição máxima de um homem.

O jovem, meu caro amigo, ignora o interesse da cultura e tem pressa de se instalar na vida. E sem dúvida a cultura não se pode explicar em termos práticos, não é assim? Digamos que ela só se aprecia depois de se ser culto. Há que obrigar o jovem a ser culto como há que obrigá-lo a ser higiénico. Abandonado a si, o infante nunca se lava, meu amigo. Não vamos concluir daí que a sujidade é que tem razão.

Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro. E é tudo.

Tinha um dedo imperativo no ar. Arrumei os utensílios e dispus-me a sair. Mas quando justamente ia a sair. Porque a vida é assim. Súbitas resoluções sem cálculo. Como se nós trabalhássemos para um lado e a vida para outro. Subitamente foi assim. Havia uma poderosa força vinda de Flora. E eu deixei-me ir, um outro de mim deixei-o. No fundo, seria isso? a instintiva certeza de que outra força a trabalhava também. Mas quando a tomei com determinação - a cara rápida voltada de lado, aproveitei a nuca o pescoço. E foi aí. Ela respirava forte sobre o meu ombro.
- Sim? - disse eu.
- Não - disse ela para trás de mim.
Mas eu insistia já com a colaboração do resto do meu corpo. Não, não, disse ela, desprendendo-se. Outra vez disse-me ainda. Um fim-de-semana. Preparar isso com sensatez. No próximo? perguntei. Depois se fala, está bem? respondeu. E então fiquei sem palavras para continuar. Afastei-a um pouco, olhei-lhe nos olhos, ela olhou-me frontal e sorriu breve.

A felicidade não se mede pela quantidade do que nos aconteceu de agradável, mas pela quantidade de nós que responde ao que acontece. Nunca ficou nada em mim que não respondesse. E nas tintas para a filosofia.

Quis acompanhá-lo à aldeia, recusou vigorosamente como se estivesse a insultá-lo - estaria? Fechado sobre a sua condenação como sobre um bem privativo. Tinha um buraco no pescoço, era dele. E o orgulho avultava no seu corpo franzino. Era dele como a sua fatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo da desgraça, pensei. Telegrafei para o irem esperar, esperaram-no. Telegrafaram-me algum tempo depois para o ir enterrar, enterrei-o. Era Inverno, devia ser Inverno. Tenho frio na alma e na memória. Devia ser.

Fomos jantar fora. Fomos ao cinema. Mas tudo para mim foi difícil e provisório, porque eu estava impaciente pelo que não era isso. Mas havia um cerimonial a cumprir para afastar o mais possível o seu terceiro andar de uma casa de passe. Oh, gostei bem que não fosse, eu amava-te decerto. Era um amor geometrizado na linearidade do teu corpo, como hei-de dizer? no rigor de seres um ser corpóreo. Porque o teu corpo perfeito adiantava-se sobre ti e era com ele que eu primeiro me defrontava. Que é que quer dizer amor? contigo não o sabia, nunca o soube, teria alguma significação? ou a significação não é dele mas de cada um de nós ou de tudo aquilo com que somos cada um de nós. Flora abriu a porta subira a escada em perfeita naturalidade, decerto porque o termos estado juntos esbatera o que era aí anormal ou era a sua legitimação. Depois houve bebidas. Tentei ainda que não houvesse para haver logo o que haveria. Mas Flora não tinha pressa. Abrira as janelas para a noite quente, sentou-se num sofá. E retomava não sei já que conversa para haver um espaço neutro entre nós. De vez em quando, talvez nos pontos mais difíceis da conversa, o tique de enrolar as pontas do cabelo. E fumava constantemente para compor nela um não sei quê de escultural. Flora, o ruído já suspenso do tráfego, a extensão escura do parque. E este todo harmonioso construído disciplinado.

Ensaio para um blues

Apenas um casaco na noite fria. O cachecol levou-o ela, as luvas também. A casa? Pegou-lhe fogo quando fugiu. Levou-me os livros e até o rafeiro que dormia aos nossos pés. Ficou o casaco e a noite fria. A guitarra? Terá ardido com a casa e as fotografias. O coração já era dela, tê-lo-á levado pois claro, ou então usou no incêndio, não sei. Fiquei eu, as chamas ao longe, um casaco e a noite fria. Dava para um poema, mas a inspiração era ela e ela lá foi, com o rafeiro, o cachecol, as luvas, os livros e o amor todo. Fiquei eu, o casaco remendado, um fumo escuro da casa queimada e um frio antigo como a Bíblia.

Não tenhas pressa

Não tenhas pressa. Nem que a tivesses, mas não tenhas. Nisto do luto mandamos muito pouco. Há a conveniência, a decência de ser gente entre gente, mas o que conta mesmo é algo que se passa por dentro. Por dentro do dentro, abaixo de nós, no invisível de tudo. Não tenhas pressa que hás de escrever as palavras devidas a seu tempo. Terás muitas, ou talvez não. Terás as que tiveres e serão as certas, mesmo que atabalhoadas. Não as culpes a elas, culpa o talento que não tens. A seu tempo elas virão e escreverás, como se diz por aí, "o que te vai na alma", porque para já, com o aperto da tristeza e de uma saudade avassaladora, cada palavra é um soluço incompreensível deste lado das coisas e das pessoas. Não tenhas pressa, tal como ela que agora tem todo o tempo do mundo, um jardim imenso e uma calma que na altura certa, partilharás também. Assim o esperas.

Da crença


O silêncio reinava e não era de hoje. A mudez que o acometera vinha de longe. Houvera um tempo em que aliava, por um lado, a crença de vir a realmente encontrar uma voz, com esboços de realmente vozear por outro. Hoje, resta apenas a crença como carcaça e é sabido por esse mundo fora, que uma crença por si só pode muito bem não chegar.

Do mar

A cada visita não te sobra nada a não ser uma espécie de humildade perante o mar. O teu corpo cumpre uma vénia no silêncio, uma reverência face à irreverência. Sabes que o mar é da mesma massa dos astros e dos confins do universo, do mesmo mistério que as partículas mais pequenas, das ondas invisíveis e etéreas. Tens olhos e alma não tens? Então.


Da decapitação das árvores

A sombra, o verde, a presença eterna de um aconchego, a morte de pé, os pássaros, as folhas, o símbolo do abrigo mais antigo, o exemplo da força de alcançar o céu, tudo isso são as árvores. Decapitas pelo mau tempo, fica a certeza de que outras virão ou até as mesmas retomarão o trabalho de anos em que a seiva teima em brotar e bater-se teimosamente contra a gravidade. Saber que o seu corpo dá para eternizar um amor, cravando na pele, tatuado na madeira para o sempre que for possível.







Torradas

As torradas dos cafés daqui são pedaços de um conforto poético. Pão de forma, dois andares, cortados em três fatias verticais cada um. Começo pelas fatias das pontas, trincando a côdea tostada antes de mergulhar no miolo embebido em manteiga. Deixo as duas fatias do meio para o fim, onde são elas toda manteiga derretida. É assim mesmo, bocados de prazer dourados, húmidos e quentes. O Homem não precisa de muito para sorrir. 

Das leituras

É sabido que a ambição de ler todos os livros da biblioteca que tenho é, tão só, uma mania. A cada livro novo que compro, empurro centenas de páginas para o silêncio provável das minhas não leituras. Ler não é uma escolha, é algo mais próximo do alinhamento dos astros e das matemáticas que isso envolve.

Lendo


Terminada esta primeira aventura com a poesia de Borges.


A minha humanidade está em sentir que somos vozes da mesma penúria.

Falam da pátria.
A minha pátria é um ganido de guitarra, alguns retratos e uma velha espada...



A MINHA VIDA INTEIRA

de novo aqui, com os lábios memoráveis, único e semelhante a vós.
Persisti na aproximação da ventura e na intimidade da pena.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Amei uma menina altiva e branca e de uma hispânica serenidade.
Vi um arrabalde infinito onde se cumpre uma insaciada imortalidade de poentes.
Saboreei numerosas palavras.
Creio profundamente que isso é tudo e que não verei nem executarei coisas novas.
Creio que as minhas jornadas e as minhas noites
se igualam em pobreza e riqueza às de Deus e às de todos os homens.


PARA UMA RUA DO OESTE

Dar-me-ás uma alheia imortalidade, rua sozinha.
És sombra já da minha vida.
Atravessas-me as noites com a tua certa retidão de estocada.
A morte - tempestade escura e imóvel - destroçará as minhas horas.
Alguém recolherá os meus passos e usurpará a minha devoção e esta estrela.
(A distância, como um longo vento, há de flagelar o seu caminho.)
Iluminado por nobre solidão, porá o mesmo anseio no teu céu.
Pôr-lhe-á esse mesmo anseio que sou eu.
Ressurgirei no seu vindouro assombro de ser.
Em ti outra vez:
Rua dolorosamente como uma ferida te abres.


Sei que, mesmo obscuro, qualquer privilégio é da estirpe dos milagres
e grande parte dele provém desta vigília
reunida em redor do que não se conhece: do morto,
reunida para guardar e acompanhar a sua primeira noite na morte.

(O velório desgasta cada rosto;
Os olhos morrem-nos lá no alto como a Jesus.)


Porque o ventre do cemitério do Sul
foi saciado pela febre-amarela até dizer chega;

Dos detalhes

Certos detalhes brotam do cenário mais improvável. Ou, pelo menos, dos momentos mais improváveis, como por exemplo, esperares um autocarro enquanto ouves rádio, e uma mãe a puxar a camisola da filha para baixo, impedindo que o frio lhe trepasse pelo fundo das costas acima. Um gesto que dava todo um tratado sobre a maternidade.
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O homem que escrevia nada

Havia um homem que escrevia nada. Publicou um livro no qual não escrevia nada. Foi entrevistado e perguntaram-lhe para que escrevia. Respondeu que escrevia para dizer nada. O entrevistador, arreliado, argumentou que para não escrever nada teve, ainda assim, de escrever alguma coisa e que a prova estava no livro publicado com palavras lá metidas. Respondeu o homem: "Pois, são as vicissitudes da escrita".

o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios incertos

vais escrevendo as palavras que te calharam, vais dizendo os silêncios que te nasceram, vais calando os gestos que se te desenham, porque tudo é um lento roer de notas numa guitarra que chora um blues e que inunda a sala, a sala vazia dela enquanto não chega e que com ela te trará de volta também
vais-te escrevendo nas palavras em que calhaste, nas palavras em que tropeçaste, tu trapalhão que és nisto de dizeres aquelas coisas que julgas teres para dizer, sabendo, à partida que o que te cabe dizer foi já dito antes de ti, antes disto e, mais ainda, foi dito para lá de ti, disto e daquilo
sabes, por fim, que o dicionário diz que a ciência é o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios certos, o que faz com que chegues à conclusão deliciosa que amar é o conjunto de conhecimentos fundados sobre princípios incertos
sabendo isso, não precisas de saber mais nada

Lendo


Continuo a leitura de Borges. O verdadeiramente extraordinário da poesia dele, é a sensibilidade extrema que consegue transmitir através das mais simples frases. Borges, com associações de ideias aparentemente banais, leva-me ao desfrutar incondicional de cada verso.



Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.




Na sala tão severa, como cegos,
procuram-se uma à outra as nossas solidões.
sobreviveu à tarde
a brancura gloriosa da tua carne.
No nosso amor há uma pena
parecida com a alma.

Tu
que ainda ontem eras só toda a beleza
és agora também todo o amor.



Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer outras tardes.


A casa da avó

A casa da avó. Velhinha, a casa e a avó. Fez 93 anos no dia 1, a avó, a casa não sei quantos anos terá. Sei que já teve várias árvores à frente, foram morrendo de pé. Plantaram-se outras, está lá agora uma, magrinha e novinha, despida de Inverno.
A casa era do avô também. E era a casa de muitas tardes de férias entre pães com manteiga, leite achocolatado, primos e uma bola de futebol.
Não é a casa dos meus sonhos, é uma casa de sonho, cujas traseiras escondem uma passagem até ao mar. E é curioso que a passagem é uma ilha perdida numa viela ladeada de muros e musgo onde os gatos se esgueiram. É uma casa onde da casa-de-banho, se se for homem, vê-se o Gilreu a batalhar o Atlântico enquanto se faz aquilo que ninguém pode fazer por nós.
Mora lá a minha avó, velhinha, no quarto de cima, um quarto semeado de fotografias do marido, dos filhos, dos netos, da mãe, dos dela, dos meus, dos nossos.
Fez 93 anos no primeiro dia do ano.
 
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