Vergílio Ferreira escreve na voz certa. Explicar isto demoraria muito tempo. Esse acerto é puramente subjectivo. A conclusão que tiro é por isso pessoal mas transmissível. Serão com certeza os temas, as histórias e tudo o mais que me fascinam no autor, mas há algo mais na leitura que me arrebata. A voz, a forma que ela toma na leitura que vou fazendo de todos os livros, é-me familiar. Não propriamente minha, porque o não é, mas digamos que no silêncio do meu pensar e sentir encontra um espaço que já era dela. Como se ler VF fosse o completar de algo pré-existente. Não sei dizê-lo melhor. No fundo, a leitura é apenas o eco de algo que li antes de nascer e depois de morrer, para lá do limite e antes do limite de se ser.
Que horas são? a manhã vem já aí. Ardem-me os olhos de vigília, o corpo cansado. À porta da capela, fica num alto junto ao mar. À porta da capela, olha à volta o horizonte nocturno, olho o céu cheio de estrelas.
Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há um pequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo. Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta da enseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, um cone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbito na cara, roda para o lado oposto.
Preciso de ter um sítio onde esteja bem. Onde esteja eu e não o que me dizem que é o mais plausível de ser eu. Um lugar oculto sem ninguém a testemunhar-me a vergonha. Porque tanta coisa a ser vergonha. Saber como comportar-me ser sensato ter propósitos. e a tua imagem aí - é bom. Eu sei. O teu perfil contra o longe das oliveiras. Contra a tarde clara do ar. E os teus olhos na distância em que estou e tu já não. Never more. É uma tarde de Maio talvez. Alguém canta numa casa da rua de baixo. Nunca mais.
- Não me diga que também gosta do nome!
Quando foi que te conheci? Nunca mais.
E uma comoção súbita, profunda. Tomo os cravos um a um espalho-os devagar por cima. então foi como se eu próprio me não visse, não existisse, dissipado no vazio de estar ali. Luto desesperadamente, os olhos ardem-me. O sol violento, a terra deserta. Eu só.
Podia eu dizer o mesmo? na luz dúbia da manhã, entre a noite que terminou e dia que vai começar. O facho do farol varre as águas de vez em quando, embate-me subitamente, esmorece numa pequena luz. E o rumor do mar como um coro, o estoiro das vagas contra o fundo da falésia.
- Não gostava que viesse. Preferia levar a imagem do orgulho dela e do meu. E tu no meio, sem orgulho nenhum.
Não tinha ilusões sobre isso, não tinha. E quis que tu as não tivesses também. Revelar-te o estado de coisas real. Revelar-te a miséria da nossa vida. E ver se aprendias a humildade. É a lição máxima de um homem.
O jovem, meu caro amigo, ignora o interesse da cultura e tem pressa de se instalar na vida. E sem dúvida a cultura não se pode explicar em termos práticos, não é assim? Digamos que ela só se aprecia depois de se ser culto. Há que obrigar o jovem a ser culto como há que obrigá-lo a ser higiénico. Abandonado a si, o infante nunca se lava, meu amigo. Não vamos concluir daí que a sujidade é que tem razão.
Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro. E é tudo.
Tinha um dedo imperativo no ar. Arrumei os utensílios e dispus-me a sair. Mas quando justamente ia a sair. Porque a vida é assim. Súbitas resoluções sem cálculo. Como se nós trabalhássemos para um lado e a vida para outro. Subitamente foi assim. Havia uma poderosa força vinda de Flora. E eu deixei-me ir, um outro de mim deixei-o. No fundo, seria isso? a instintiva certeza de que outra força a trabalhava também. Mas quando a tomei com determinação - a cara rápida voltada de lado, aproveitei a nuca o pescoço. E foi aí. Ela respirava forte sobre o meu ombro.
- Sim? - disse eu.
- Não - disse ela para trás de mim.
Mas eu insistia já com a colaboração do resto do meu corpo. Não, não, disse ela, desprendendo-se. Outra vez disse-me ainda. Um fim-de-semana. Preparar isso com sensatez. No próximo? perguntei. Depois se fala, está bem? respondeu. E então fiquei sem palavras para continuar. Afastei-a um pouco, olhei-lhe nos olhos, ela olhou-me frontal e sorriu breve.
A felicidade não se mede pela quantidade do que nos aconteceu de agradável, mas pela quantidade de nós que responde ao que acontece. Nunca ficou nada em mim que não respondesse. E nas tintas para a filosofia.
Quis acompanhá-lo à aldeia, recusou vigorosamente como se estivesse a insultá-lo - estaria? Fechado sobre a sua condenação como sobre um bem privativo. Tinha um buraco no pescoço, era dele. E o orgulho avultava no seu corpo franzino. Era dele como a sua fatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo da desgraça, pensei. Telegrafei para o irem esperar, esperaram-no. Telegrafaram-me algum tempo depois para o ir enterrar, enterrei-o. Era Inverno, devia ser Inverno. Tenho frio na alma e na memória. Devia ser.
Fomos jantar fora. Fomos ao cinema. Mas tudo para mim foi difícil e provisório, porque eu estava impaciente pelo que não era isso. Mas havia um cerimonial a cumprir para afastar o mais possível o seu terceiro andar de uma casa de passe. Oh, gostei bem que não fosse, eu amava-te decerto. Era um amor geometrizado na linearidade do teu corpo, como hei-de dizer? no rigor de seres um ser corpóreo. Porque o teu corpo perfeito adiantava-se sobre ti e era com ele que eu primeiro me defrontava. Que é que quer dizer amor? contigo não o sabia, nunca o soube, teria alguma significação? ou a significação não é dele mas de cada um de nós ou de tudo aquilo com que somos cada um de nós. Flora abriu a porta subira a escada em perfeita naturalidade, decerto porque o termos estado juntos esbatera o que era aí anormal ou era a sua legitimação. Depois houve bebidas. Tentei ainda que não houvesse para haver logo o que haveria. Mas Flora não tinha pressa. Abrira as janelas para a noite quente, sentou-se num sofá. E retomava não sei já que conversa para haver um espaço neutro entre nós. De vez em quando, talvez nos pontos mais difíceis da conversa, o tique de enrolar as pontas do cabelo. E fumava constantemente para compor nela um não sei quê de escultural. Flora, o ruído já suspenso do tráfego, a extensão escura do parque. E este todo harmonioso construído disciplinado.
Avanço um pouco no terreno em frente da capela. Há um pequeno muro branco a toda a volta, até ao limite do perigo. Alveja na obscuridade do amanhecer, o muro. Na ponta da enseada há um farol. De vez em quando o facho varre o ar, um cone de poalha luminosa, como um olho brilhante bate-me súbito na cara, roda para o lado oposto.
Preciso de ter um sítio onde esteja bem. Onde esteja eu e não o que me dizem que é o mais plausível de ser eu. Um lugar oculto sem ninguém a testemunhar-me a vergonha. Porque tanta coisa a ser vergonha. Saber como comportar-me ser sensato ter propósitos. e a tua imagem aí - é bom. Eu sei. O teu perfil contra o longe das oliveiras. Contra a tarde clara do ar. E os teus olhos na distância em que estou e tu já não. Never more. É uma tarde de Maio talvez. Alguém canta numa casa da rua de baixo. Nunca mais.
- Não me diga que também gosta do nome!
Quando foi que te conheci? Nunca mais.
E uma comoção súbita, profunda. Tomo os cravos um a um espalho-os devagar por cima. então foi como se eu próprio me não visse, não existisse, dissipado no vazio de estar ali. Luto desesperadamente, os olhos ardem-me. O sol violento, a terra deserta. Eu só.
Podia eu dizer o mesmo? na luz dúbia da manhã, entre a noite que terminou e dia que vai começar. O facho do farol varre as águas de vez em quando, embate-me subitamente, esmorece numa pequena luz. E o rumor do mar como um coro, o estoiro das vagas contra o fundo da falésia.
- Não gostava que viesse. Preferia levar a imagem do orgulho dela e do meu. E tu no meio, sem orgulho nenhum.
Não tinha ilusões sobre isso, não tinha. E quis que tu as não tivesses também. Revelar-te o estado de coisas real. Revelar-te a miséria da nossa vida. E ver se aprendias a humildade. É a lição máxima de um homem.
O jovem, meu caro amigo, ignora o interesse da cultura e tem pressa de se instalar na vida. E sem dúvida a cultura não se pode explicar em termos práticos, não é assim? Digamos que ela só se aprecia depois de se ser culto. Há que obrigar o jovem a ser culto como há que obrigá-lo a ser higiénico. Abandonado a si, o infante nunca se lava, meu amigo. Não vamos concluir daí que a sujidade é que tem razão.
Ser professor é colaborar mais eficazmente com o futuro. E é tudo.
Tinha um dedo imperativo no ar. Arrumei os utensílios e dispus-me a sair. Mas quando justamente ia a sair. Porque a vida é assim. Súbitas resoluções sem cálculo. Como se nós trabalhássemos para um lado e a vida para outro. Subitamente foi assim. Havia uma poderosa força vinda de Flora. E eu deixei-me ir, um outro de mim deixei-o. No fundo, seria isso? a instintiva certeza de que outra força a trabalhava também. Mas quando a tomei com determinação - a cara rápida voltada de lado, aproveitei a nuca o pescoço. E foi aí. Ela respirava forte sobre o meu ombro.
- Sim? - disse eu.
- Não - disse ela para trás de mim.
Mas eu insistia já com a colaboração do resto do meu corpo. Não, não, disse ela, desprendendo-se. Outra vez disse-me ainda. Um fim-de-semana. Preparar isso com sensatez. No próximo? perguntei. Depois se fala, está bem? respondeu. E então fiquei sem palavras para continuar. Afastei-a um pouco, olhei-lhe nos olhos, ela olhou-me frontal e sorriu breve.
A felicidade não se mede pela quantidade do que nos aconteceu de agradável, mas pela quantidade de nós que responde ao que acontece. Nunca ficou nada em mim que não respondesse. E nas tintas para a filosofia.
Quis acompanhá-lo à aldeia, recusou vigorosamente como se estivesse a insultá-lo - estaria? Fechado sobre a sua condenação como sobre um bem privativo. Tinha um buraco no pescoço, era dele. E o orgulho avultava no seu corpo franzino. Era dele como a sua fatalidade, ele fazia-mo sentir. Ser proprietário mesmo da desgraça, pensei. Telegrafei para o irem esperar, esperaram-no. Telegrafaram-me algum tempo depois para o ir enterrar, enterrei-o. Era Inverno, devia ser Inverno. Tenho frio na alma e na memória. Devia ser.
Fomos jantar fora. Fomos ao cinema. Mas tudo para mim foi difícil e provisório, porque eu estava impaciente pelo que não era isso. Mas havia um cerimonial a cumprir para afastar o mais possível o seu terceiro andar de uma casa de passe. Oh, gostei bem que não fosse, eu amava-te decerto. Era um amor geometrizado na linearidade do teu corpo, como hei-de dizer? no rigor de seres um ser corpóreo. Porque o teu corpo perfeito adiantava-se sobre ti e era com ele que eu primeiro me defrontava. Que é que quer dizer amor? contigo não o sabia, nunca o soube, teria alguma significação? ou a significação não é dele mas de cada um de nós ou de tudo aquilo com que somos cada um de nós. Flora abriu a porta subira a escada em perfeita naturalidade, decerto porque o termos estado juntos esbatera o que era aí anormal ou era a sua legitimação. Depois houve bebidas. Tentei ainda que não houvesse para haver logo o que haveria. Mas Flora não tinha pressa. Abrira as janelas para a noite quente, sentou-se num sofá. E retomava não sei já que conversa para haver um espaço neutro entre nós. De vez em quando, talvez nos pontos mais difíceis da conversa, o tique de enrolar as pontas do cabelo. E fumava constantemente para compor nela um não sei quê de escultural. Flora, o ruído já suspenso do tráfego, a extensão escura do parque. E este todo harmonioso construído disciplinado.
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