tempestade nos olhos

sempre um lento passar de versos
nas noites que escolhes não escrever

como se as palavras nascessem num canto esquecido
e serpenteassem pelas sombras que cresceram desde o poente

e em ti um silêncio enorme sobre um outro silêncio já velho
mudo na eternidade do teu próprio adiamento

resta-te a lembrança baça do que foi perderes-te num poema
e brotares do outro lado da página
com uma tempestade nos olhos

empate

a planície e nada

e este verso que ouviste ficou
a planície e nada
todo um tratado

o mundo inteiro à frente como uma onda imparável
e no entanto apenas o silêncio a prevalecer
como se no próprio espectro sonoro não existisse espaço suficiente para suster tamanha intensidade
e a mudez se revelasse imprevista

e no desenrolar disto tudo
nas infinitas explosões de vida
o que resta é nada
esse deserto imenso de formas difusas e enevoadas
esse limbo infinito de solidão

a tristeza é o relógio parado que sabemos ser mentira
e no fundo
mesmo no fundo
nas catacumbas da alma
jaz uma árvore despida de folhas cujos frutos nunca brotaram

o marasmo de nós
as promessas por cumprir e as que cumprimos por engano

existe sempre uma luz
mas o breu também vence batalhas

saibamos perder
e mandar tudo à merda
esse gesto não será nunca uma derrota
mesmo não sendo uma vitória

na vida também se empata

Os três inexistentes livros

Seriam três livros.

O Livro I contaria a história de amor. Um homem e uma mulher conhecem-se e apaixonam-se. Ele conta a história. Fica-se a saber que o amor dele vem de uma vertigem sem limites pela beleza dela. Uma beleza que o despedaça logo de início, que se torna um vício terrível. Do amor dela por ele pouco se vai sabendo. A dado momento, por razões ocultas, ele desaparece, beija-a e parte. Nesse exílio ficamos a saber que ele lhe escreve cartas, centenas, milhares, durante vários anos. Cartas das quais nunca recebe resposta. Um dia, descobrindo que tem uma doença terminal, decide escrever uma última carta. Nessa carta despede-se e revela que passará o resto dos dias a relembrá-la e a relatar-lhe num monólogo interior o dia-a-dia que leva nesse lugar no qual se refugiou. Essa última carta é que abre o Livro I perfazendo o capítulo 1. Nos capítulos seguintes inicia-se o monólogo e aí ficamos a conhecer a história, de como se conheceram, de como o amor por ela tinha vida própria, de como as razões para a sua fuga mesmo que sempre ocultas tinham igualmente vida própria. Ao mesmo tempo ele vai relatando a tal rotina que leva desde que a deixou, uma vida de escrita, de bebida, de encontros num bar com várias personagens que lhe contam as suas vidas.
No fim, uma visita inesperada de um amigo, revela-lhe que pouco depois dele ter partido ela morrera num acidente. Nunca chegara a ler nenhuma das cartas que ele lhe tinha escrito, que pouco tempo tivera para sofrer com o seu desterro. Decide então deixar de lembrá-la, escolhe o silêncio e espera que a doença o leve também.
O Livro I teria o título de "A última carta".

O Livro II o monólogo regressaria, e ele explica que, afinal, tinham encontrado uma cura e que não morreria dela em breve. Com esta notícia decide regressar ao lugar onde a conhecera e onde viveram os dois. Reencontra a casa dela igual, e um vizinho guardara todas as cartas que ele lhe escrevera nos anos anteriores. O livro teria passagens de certas dessas cartas e todo o relato de como ele tentava reencontrar uma rotina no antigo mundo onde a conhecera. Encontra gente nova que lhe conta as suas histórias e no fundo, o monólogo que vai dizendo dirige-se a ela, como se a quisesse ressuscitar. De novo o amor pela beleza dela ganha forma e vida própria.
O Livro II intitular-se-ia "Cartas perdidas".

O Livro III é o relato de um escritor que tinha publicado os dois livros anteriores e que é acordado a meio da noite por um homem baixo e duma certa idade que lhe entra em casa e que lhe conta toda uma aventura: esse homem, ao ler os livros, apaixonara-se pela personagem feminina, sofreu da mesma vertigem que o protagonista masculino, que aquilo se tinha tornado doentio, uma obsessão, que precisava, a todo o custo, de conhecer aquela mulher e que por isso visitava o autor para saber se ela era real. O autor explica que se trata de ficção, mas o homem não aceita. Diz que visitou todas as mulheres que o autor conheceu mas não "a" encontrou. Ao longo dos anos pesquisou e estudou várias ciências afim de arranjar uma forma de a tornar real. Que estudou teatro, encenou os livros a ver se conseguia acalmar o seu amor contracenando com uma actriz que fizesse dela. Tentou através da genética recriar em laboratório uma mulher que fosse ela. Nada tinha resultado. A sua última tentativa tinha sido criar uma fórmula química numa bebida que uma vez ingerida o transformaria em literatura e assim conseguiria entrar nos livros e encontrá-la finalmente. Tudo isto é relatado pelo autor. Na cena final, o homem bebe e desaparece. O autor olha para a estante onde tem os livros que escreveu e do nada, aparece um outro.
O LIvro III seria "O homem que se fez literatura".

um quixote é preciso



um Quixote é preciso

essa doidice desvairada de se ser livre e prisioneiro ao mesmo tempo
de crer acima de tudo que as injustiças existem para serem combatidas
que gigantes são moinhos e que o amor comanda a loucura
que não há tempo a perder em ser-se pequeno
que as batalhas nos esperam e que a coragem vai a cavalo e que o medo é o seu alimento mais poderoso
que a paixão nos torna invencíveis
que a morte pode ser bela se for enfrentada de frente
com o coração como escudo e a poesia como lança

trilogia do início - início


trilogia do início

III

início

depois do antes

é impossível saber o inicio no seu exacto momento
ele é invisível ao presente

o começo ocorre apenas quando o tempo já sobre ele fez o seu trabalho
e é uma saudade futura cuja percepção se me escapa

o início é uma ilusão
até porque muitas vezes ele não acaba de se revelar
como se o seu nascimento fosse permanente e inacabado

por isso não sei propriamente o que se ergue no horizonte
mas navegar é inevitável e à deriva teima em ser o melhor plano

depois do antes
quando tudo se incinerou nos vales mais profundos da alma
quando a cinza assentou dos seus voos flamejantes
caminho diferente e igual

pronto a cometer os mesmos erros e as mesmas glórias
sabendo que nunca se recupera o que passa mas que se abrem as portas escancaradas do que está por passar

antes do antes, o antes e o depois do antes
são o desenho preciso de tudo o que é possível
nada se altera e ainda assim tudo muda

das verdades

Das várias linguagens, a Verdade é uma entidade indizível, inexplicável, irrevelável. Pois se no momento exacto em que se manifesta já ela se metamorfoseou.
No fundo, a Verdade viaja até se mostrar. Seja essa viagem no gesto primitivo de um abraço, mimo ou beijo, seja tatuagem de um verso ou expressão artística, no afago ou vertigem de uma emoção, esse percurso muda a Verdade. Ganham-se outras verdades e perdem-se forçosamente outras do tecido original. E assim é, e assim é bom que seja.
Tudo isto para dizer o seguinte:

ele caminhava junto ao mar, o que por si só é todo um manifesto. Chegou à conclusão de que tudo deixa um rastro, um eco ou um traço de sombra e penumbra. Rastro invisível, eco inaudível ou penumbra ténue. Mas nenhum testemunho se apaga de vez. As coisas acontecem. E mesmo depois de acontecerem, mesmo após o esquecimento e de milhões de anos de erosão, sob a pele da existência uma cicatriz delicada não deixa de se desenhar num sopro, numa subtil textura levemente rugosa.
Os venenos destilam fel eternamente e os variados antídotos que vamos criando e tomando, ajudam, sim, a manter a alma no seu voo mas a gravidade é a lei teimosa que prevalece e, a longo prazo, nada evita a derradeira queda.

Mas a beleza de tudo isto é que a queda não é queda pois não há cimo ou baixo no cosmos, as quedas vêm de todos os lados.
Dizem eles, até, que devagar, ao ritmo de incomensuráveis medidas de tempo, o universo desacelera, que a gravidade definha e se extingue, que depois do futuro restará somente um caldo morno no marasmo disto tudo, um pântano espacial.

Aos olhos dele, que caminhava junto ao mar, esse tal futuro seria a ausência dela. Ele já lá estava.

devaneio

ah esta coisa de vir aqui e não dizer nada e assim dizer tudo e esconder-me ao mesmo tempo que me dispo e de falar de solidão e de estar com o mundo inteiro

de lutar sem outro corpo para destruir que não seja o meu e na dor dessa violência enterrar a dor a sério que nunca é minha e diluir esse amor pelas coisas simples que uma vida pode dar como um beijo partilhado pela boca toda sem pudor nem vergonha e um verso perfeito no poema que quase se escreve

de entregar a alma a uma bebida e com ela desligar de tudo num vôo solene transcendente até ao âmago de uma sombra que não pára de nascer num recanto de estrada

ah esta coisa de saber e não saber e saber tudo
de falhar e acertar e continuar e insistir no mesmo erro esperando que algo de novo brote
no fundo tudo isto é a receita de enlouquecer e entender que não há outro caminho que não este
o da loucura
da entrega total a um momento e ele se perpetuar num devaneio perfeito de mim

a constante obsessão de tatuar na pele do silêncio um qualquer suspiro um qualquer sussurro uma brisa que nasceu antes de nós e nos levou por mil universos até nos despenhar aqui agora já

premonições póstumas e outras alquimias


soube depois mas já o sabia num limbo do antes
como se o tempo fosse atirado ao esquecimento momentâneo do que corre silenciosa e inexoravelmente

escrevi-o num repente que brotou já o sono me vencera
e qual náufrago a este caderno me agarrei e escrevi

premonições póstumas e outras alquimias 

sem outro sentido que não fosse o instinto definitivo de sobrevivência:

que se não me salvasse eu ao menos se salvassem os versos
e que pudesse o rosto dela estilhaçar-se noutros olhos e neles sugar a paz de alma de um coração que nunca amou e para sempre o assombrar de vertigens e rendições inúteis como o garimpeiro que nunca se satisfaz com a pepita de ouro que eventualmente encontra

dos extremos



fossem antes nevoeiros ou tons cinzentos de penumbra difusa e indefinida

fossem dúvidas e incertezas definitivas

mas não

são o breu mais denso imaginável
ou são o total encadeamento de luz

é a mais desoladora desilusão
ou o encantamento final da tua beleza

não há meio termo nem há consensos ou compromissos

no fundo, o que há é tudo e nada

o silêncio ou a poesia toda do mundo

o teu rosto ou o derradeiro esquecimento

traço imperfeito


o traço imperfeito de tão imperfeito ser
certeiro se revela
de como se emaranhando em redes e labirintos se vai desatar depois
em silhueta para nos falar em silêncio
sendo o silêncio cor e contorno e desenho

uma vida numa noite

uma vida numa noite e nem o nevoeiro da memória nem o roer do tempo encobriram ou desfiaram essas loucuras

coisas há que ecoam para sempre, pois puras e livres foram, flutuam e planam para lá disto tudo e são elas que nos fazem especiais e íntimos
e semeam a certeza de que nunca estaremos sozinhos
porque um outro a teu lado estendeu sua sombra e olhar

novos vícios


vais arranjando novos vícios para queimares o pouco que resta deste mutilado caderno
agora pões-te a escrever já na antecâmara do sono ao som de canções que já tinhas esquecido 
a ideia de esgotares o que te tormenta, de ires à volta de tudo o que nunca chegaste a cumprir, de enganares tudo aquilo que nunca chegaste a dizer, como se o que dissesses agora pudesse ocupar um silêncio passado.
não pode.
e para além de não poder, este semear de palavras deixa um novo infindável campo de vazios e nele corre uma permanente brisa cujos versos são ilegíveis.
resta-te a cisma que bem conheces, a de escrever o que te dita a voz muda da madrugada.
estranhamente, isso te consola o bastante para aqui regressares.
há uma beleza nisto, e tudo o que é belo brilha para além de nós

e todas as declarações de amor



enquanto não chega a história alongas o caderno e escreves horizontalmente, espraiando as palavras ao largo. foi preciso cair uma noite de nevoeiro e reencontrares os Simon and Garfunkel para também tu seres outono. disfarças esse adiamento do grande romance com jogos de escrita como este. soubesses tu desenhar ou esculpir. a fuga que é a tua só tem casa nestes nadas. talvez também pudesses dormir e encontrar um sono recorrente e nele tudo farias para reviver sempre o mesmo sonho, noite após noite, queimando madrugadas na teimosia de uma mesma narrativa. chegaste a amar a dada altura e esse incêndio ninguém to apaga nem ninguém to rouba, essa ferida da entrega incondicional da alma, por muito etérea que seja agora, ecoa pelo universo. ah, que se foda a solidão, no silêncio estão os ruídos todos do mundo e todas as declarações de amor.

gesto perfeito

o gesto perfeito que teima em adiar-se num perpétuo esquecimento de si mesmo
e não será num entretanto vazio que se poderá revelar

ainda assim insistes em escrever a cada momento perdido do dia como se enchendo de palavras o silêncio ele fosse menos arrebatador e as noites menos solitárias

já não tens mais promessas a quebrar pois esgotaste os estilhaços de todas as outras que fizeste e a loucura que brota de uma promessa quebrada é tão grande como a que nasce de uma que se cumpre e no teu mar não há mais lugar a novas ondas porque todo ele é somente ondas revoltas e revoltadas

o gesto perfeito aguarda quieto num canto qualquer da sua própria impossibilidade e nada o alcança
ele é halo de sombra e de cinza luminosa
é fumo
espuma fina
é um segredo que ninguém sabe
e saber é o conforto que a evolução nos nidificou nos genes
por isso nos contorcemos quando não sabemos
e nada sabemos de verdade e o desconforto é o estado permanente da nossa alma
por isso desejamos os gestos perfeitos
ansiamos esse afago divino como o colo de uma mãe ou um beijo de quem se ama ou o calor morno de uma cama

gárgulas

procuras o local exato onde semear a palavra para que faça sentido

nas esquinas altas de uma catedral, arrancada ao granito e ao calcário
cortando o céu em contraluz
seria o sítio natural da aparição

mas as gárgulas que queres escrever são silhuetas perdidas em profundos mares da alma
esgares petrificados em proas de barcos naufragados mil noites atrás
são ramos de uma árvore, que morta de pé, em vez de folhas, brota cimalhas por onde corre a água de chuvas impossíveis

gárgulas
dizes por dentro
e toda a língua estremece num calafrio perfeito

o silêncio tem o seu alfabeto e o seu dizer
nós é que o não conseguimos ouvir
pois surdos somos caminhado sobre o vibrar do tecido da poesia nas madrugadas que não acabam
como se a insónia durasse eternidades

não era

adivinhei vésperas num olhar teu
como se o tempo por lá tivesse ancorado
e aí nos perdíamos num mar de afagos

faltam tardes lentas no meu corpo
e semeia-se um esquecimento por dentro
não do que acontecia mas dos sentimentos que sustinham o que acontecia
e assim a lembrança paira vazia como fantasma de um nevoeiro sem paisagem a encobrir

amnésia à parte
é o futuro que pretendo saber de cor
se o tempo desatracará
se ainda há correntes
e se por acaso
em marés longínquas um entardecer dura para sempre
como um abraço
se a paz de espírito reencontra o seu paradoxo uma vez mais
de se perder num outro rosto
de estremecer em vertigem tal
que todas as promessas somos capazes de cumprir em nome de um sorriso
que todas as loucuras nos parecem sensatas apenas para poder mergulhar num beijo
de acreditar que a entrega
a rendição
são a única forma digna de se viver

adivinhei madrugadas num poema que quase escrevi
fazia noite a cada verso
e o caminho fazia-se letra a letra
passo a passo no infinito de mim

pareceu possível por momentos
que o sol pudesse nascer
mas era cedo
era tarde
não era

pontos de não retorno

nas cartas ou poemas de amor
escrever o que se sente ou sentir o que se escreve

dessa escolha dois caminhos se revelam e ambos levam ao despenhar da alma num poço sem fundo

dessa queda imensa o ponto de não retorno chega célere
tal como a luz de um vitral que nos chega ao olhar, que é essa luz mais a soma do vitral que a coou,
o amor é o sentimento mais a alma que o irmanou

encontrei este verso num canto

talvez possamos deixar as sombras para trás e caminhar em luz translúcidos

e poderia agora escrever o seu contrário

talvez possamos deixar a luz para trás e caminhar em penumbra ensombrados

nas vagas da escrita muitos são os náufragos e muitos são os estilhaços de sol no espelho das suas águas
e infinitos silêncios cobrem imensidões sem praias e sem terra à vista

talvez possamos deixar luz e sombra para trás e caminhar sem nunca termos existido

dessa forma

cartas

poemas

de amor

seriam o ponto de não retorno
a cicatriz tatuada e cravada para sempre
como aquele pequeno corte que temos no céu da boca e que não sara nunca pois não saram as feridas assim
quais umbigos

e divago pois há muito navegam-me as palavras sem rota nem rumo pelos dedos
como os ventos que se enlaçam primeiro por entre ramos altos de árvores caducas e depois se emaranham em folhas que se soltam em suaves e longas e pesarosas quedas

cedo
por fim
à desordem natural das coisas

e deixo de escrever

cartas, cadernos e fotografias

E a vasculhar velhas caixas reencontrei coisas velhas. Com pó e tempo e abandono. Fotografias, cadernos e cartas. Cartas que não cheguei a escrever, cadernos com versos envergonhados e fotografias com silhuetas aladas de gente que já não é o que é.

Das cartas o que não foi dito eram sobretudo coisas do amor, da ideia pura e dura de uma rendição total para com um outro ser, do estremecimento que é vermos um rosto da mais profunda beleza e de saber no corpo que um abraço não chega para carregar o peso de um carinho desses, que as palavras não sustêm tamanha vertigem e que somente, quem sabe, um derradeiro mergulho no olhar de quem se ama acalmasse o arrebatamento que nos rebenta na alma. Estas coisas são assim e não de outra forma, são cruas e inocentes e da verdade mais singela, como um dia de chuva após meses de sol ou como o último comboio da noite a partir da estação onde já ninguém espera ou, até, como um gato a esgueirar-se na esquina mais longínqua da rua mais deserta de sempre. Estas coisas são, portanto, mesmo assim.

Dos cadernos, os tais versos envergonhados, despem-se ainda mais e revelam a ingenuidade que os fez nascer, são somente carcaça da centelha que os desenhou, pois já toda a chama se consumiu na língua que os nãchegou a dizer. Ainda assim, foram o que foram e, de alguma forma, cravaram um eco no tecido do mundo e, porventura, tocaram um ou outro coração no seu tempo de gloriosa verve.

Das fotografias, pouco há a dizer sobre o que ainda possa viver dentro dos contornos dos espectros revelados. Mas sem duvida, que todos estes perfis e sombras e sorrisos e esgares e cenários, se petrificaram em água luminosa. Nessa aparente contradição reluz o testemunho de um passado finito mas ainda a reverberar pelo presente até se esfumar aos nossos olhos, como assombrações. Disto tudo fica um sabor a penumbra e a outono, não sei dizer de outra maneira.

frente e verso

A frente do verso e o verso de frente como um muro.

Inevitável.

De sua derme, escamas secam e caem como pele de serpente envelhecida
e por trás das palavras o verso do verso, o outro lado do que é dito, sem silêncio nem verbo.

a voz que dita por dentro

um retiro sobre cinzas
qual exílio de mim próprio

a fuga do chão já pisado para um outro caminho

dos sedimentos acumulados na gruta da alma, existem poeiras de uma cumplicidade e sombras de gestos desenhados por um carinho que se cumpriu

talvez sol e sal possam cobrir tudo isso e dos meus olhos outra foma de ver nasça

talvez lutando contra o adiamento dos versos consiga encontrar-me definitivamente

certo é que o silêncio habita cada palavra que não escrevo
e das que escrevo o ruído é levado pelo mar
pois sou filho dessa voz que dita por dentro

código genético póstumo

às portas do deserto, perante mais um infinito que me calhou em sorte, duas sílabas inundaram-me a alma

brotaram com a força das inevitabilidades e ressoaram por dentro
ecoando num aperto que já conheço do passado mas que é sempre novo

a paisagem arenosa e o sol a cair no longe do horizonte, o silêncio profundo

tudo isso incompleto

fazias falta

não nós, mas tu
a ideia de ti e do teu pronome vazio a resvalar-me pelos olhos e pelos dedos como os incontáveis grãos desta praia sem mar

depois o sol pôs-se e foi como se mil anos passassem desde essa fugaz solidão da partilha

será tudo isto normal e inocente

das duas sílabas fica a tatuagem invisível
como cicatriz por baixo da pele e da língua
qual código genético póstumo 

falhanços

A tua escrita (para além de quase inexistente) é incapaz de descrever. Dirão os modernos que é minimalista. Mas sabes bem que é somente pobre. Poderá ter algum mérito no rasgo intuitivo que brota de um rasgo ocasional, mas, no fundo, é deserta.
Deve-se isso à tua falta de disciplina, de entrega e de coragem.
Descrever alguma coisa dá trabalho.
Preferes o conforto da inspiração fortuita. E, mesmo essa, surge cada vez mais espaçada.
Talvez te agarres à crença de que a poesia escolhe quem quer, e a que te calhou em sorte e em palavra é essa coisa indizível na verdade. Escreves os teus pequenos falhanços.

sorrisos adiados e outras considerações

os sorrisos adiados
desperdícios de rugas que teriam razão de ser
assim são somente ondas sem praia onde resvalar

talvez possamos deixar as nossas sombras para trás e caminhar em luz
translúcidos
puramente brilho
sem rastro nem pegada
como penas ou borboletas leves de tudo
desenhos de voos e sono
pedaços de preguiça morna numa tarde de sol
o corpo coberto de sal e suor e lágrimas não choradas

a areia como rosto infinito e espuma de vaga como língua a lamber toda a orla
sem nunca saciar a sede nem a alma
o espelho do céu quebrado sobre o mar num estremecimento sem fim de mil sóis sobre outros mil

leves pregas de penumbra e sombra

Era um velho e era em noites como esta, onde os ventos quentes subiam até à solidão, que mais falta lhe faziam certas coisas que já tivera: uma janela sobre o mar e sonhos de sobra a rondar o espírito.

Tentava lembrar-se do momento exacto do seu esquecimento mas a pele ardia por fora e por dentro e desse incêndio restava apenas cinza.

Tempos houve em que a sala espraiava-se por entre rascunhos de versos, melodias de piano e copos vazios. No quarto talvez dormisse uma mulher ou ninguém, o que na maior parte das vezes ia dar ao mesmo. Nada somos se não houver testemunhas da nossa existência (há sempre uma testemunha).

O ar treme no bafo escuro da madrugada, baloiça ao sabor dos carros que rasgam a quietude no seu passar efémero. Estremecem os tragos amargos de uma bebida demasiado forte e o velho hesita em desejar o impossível.

Para além dos carros, alguns cães ladram à vez, assustados com certeza pelo adormecimento súbito de todas as coisas. O velho senta-se numa cadeira e recorda antigas cicatrizes da alma. Os lutos, os remorsos e as promessas que não cumpriu.

De todos os arrependimentos, um volta constantemente às lágrimas dos olhos: o velho jamais tinha sido novo. Não é fácil de explicar, mas, desde sempre, lhe pesou o tempo nos gestos, e cada um dos que desenhou, deixava um rasto arcaico, como se alguém já o realizara antes. Sendo que esse alguém podia muito bem ser ele próprio. No fundo, vivia a vida como se já a vivera anteriormente.

Era um eco, uma repetição cada vez mais subtil, cada vez mais ténue, mais curta.

Um dia deixou de se ouvir.

O calor subia ainda, vinha dos desertos mais longínquos onde se formara por teimosia. O velho que já não se fazia ouvir enrugava-se até ser apenas quebras no lençol da noite, leves pregas de penumbra e sombra.

Disse-me ele falando dela

Ele escrevia para de alguma forma poder, numa poalha de luz, senti-la mais perto. Talvez, na realidade palpável das coisas, ela se lhe escapasse cada vez mais, e o vazio entre as mãos, o colo e os lábios crescesse com a expansão do universo, e num futuro milenar a distância entre eles seria tanta que o próprio esquecimento deixaria de existir, tal como o cosmos adormecido, inerte, pasmado, pantanoso.
Sem ela não amanheceria nunca, mas com ela a noite jamais teria o seu lugar.
As palavras não significam nada. A verdade dos sentimentos dura um instante, e é sabido que um instante não se agarra, é nevoeiro e penumbra e areia fina molhada de sal.
Ele não terá escrito tudo o que podia nem tudo o que devia, mas escreveu o que lhe calhou, e no fim de todas as contas, o silêncio venceu o sopro dos atabalhoados versos.
Resta a certeza de que no correr do tempo jaz a oportunidade de voltar às palavras, e mesmo sendo elas vazias e insignificantes, carregam a promessa de todo o possível, uma ilusão utópica de que há lugar para voltar a um preâmbulo de novas mãos, colos e lábios.

Isto tudo disse-me ele falando dela. E ela, ao meu lado, ouvindo-o, não concordou, apenas aceitou. Diante deles, a mim restou-me ficar em silêncio, testemunhar a serenidade dos copos vazios sobre a mesa. Não soube o que dizer, a subtil e delicada forma com que os dois me olhavam deixou-me ainda mais mudo. Claramente, ali, entre eles, eu estava a mais, sem culpa, sem papel a desenrolar, o voyeur de ocasião, espectador inopinado de um desabafo verdadeiro ou falso ou somente apócrifo.
Deixei-os. Desconheço o que disseram depois. Quando voltei já não estavam e dos copos sobre a mesa nem o vinco sobre a toalha restava. Do que eu ouvira dele sobrava um rumor esmorecido, e dela uma réstia de silhueta imprecisa que tanto era sombra como perfume.
Adormeci mais tarde e dos sonhos que tive, um terá sido com o que ela não disse, e no discurso que proferiu eram mencionadas outras razões para o mesmo desfecho. Havia isso em comum, o desfecho: 

eu a regressar e eles já lá não estarem; sobrar uma brisa do que ela dissera e dele um perfil de penumbra; sobre a mesa o deserto imaculado que dois copos vazios não chegaram a povoar.

Não sei dizer estas coisas de outra forma.

tempo

tempo
o que sobra e o que não chega
expiar
excomungar
exorcizar

a desobediência civil da alma
na noite demasiado quente de febre que te acometeu

porque o passado esquecido dá lugar a futuros alternativos que nunca acontecerão
e todos os momentos petrificados nas roldanas do relógio cósmico
como coisas a ignorar totalmente ou a desvendar definitivamente

a depressão da melancolia que tanto te faz falta
mas que tanto te transtorna monotonamente

as esperas nas paragens de autocarro e os acordes de guitarra
os livros em silêncio e as garrafas por abrir
as palavras por escrever e as roupas por vestir
as futilidades necessárias ao funcionamento da rotina
e as loucuras prometidas a cada gesto vazio ou beijo roubado

o lento correr da noite na profunda solidão
e as manhãs a rebentarem de sol ou de chuva na janela que esqueceste de fechar

o texto definitivo como um tiro certeiro
um golpe fatal e simbólico como os samurais e seu seppuku
ou o abrolhar de uma flor em fruto
uma pedra no canto de um passeio por onde ninguém passa

tempo
o que sobra e o que não sobra nem chega nem passa nem nada

futebol

o Céu é verde
e poderá ter ou não ter duas balizas
poderão ser onze de cada lado ou não
mas terá de certeza uma bola

A última carta - o romance inexistente

A ideia tem 20 anos mais ao menos. E foi evoluindo. Obedeceu às leis da metamorfose. Tendo nascido na minha adolescência, obviamente que o princípio é romântico e ingénuo. Seria um romance mas a verdade é que se ficou por três capítulos até agora, reescritos várias vezes ao longo destas duas décadas.
Uma historia de amor pois claro.
Um homem e uma mulher e a ideia do amor. Esta é a estrutura.
A preguiça, o adiamento, a falta de jeito e talvez um medo profundo de me entregar à escrita, remeteu a história para os calabouços da alma.
Os nomes não mudaram desde a nascença, ele Pedro, ela Lara. Sem razões óbvias a não ser que para ele escolhi um nome banal, para ela um nome menos usual e que soa bem.
O ponto de vista é dele, ela sempre ausente, apenas lembrada. Toda a história é um relembrar e paira um segredo que nem eu conheço, uma ruptura brusca por explicar.
Recuso biografias de qualquer leitura, até porque tudo isto tem 20 anos e há 20 anos eu não tinha vivido nada ainda e o que me movia era uma imaginação romanticamente lamechas como convinha.
Mas mesmo já nessa altuta havia uma preocupação (atabalhoada) com a escrita e a palavra, um exercício estético.
Deixo aqui a ligação do que já tinha publicado há uns anos no blogue. 
Para se perceber bem a coisa e a tal lei da metamorfose, sobre isto, mentalmente, já escrevi tudo e a coisa já é uma trilogia de romances. Um desperdício portanto, uma pena.


manhãs tardias

houve um tempo de manhãs tardias
de um lento acordar onde o corpo despertava antes de tudo o resto

sobre a cama já esmorecidos os rumores da noite anterior
e a ausência de qualquer corpo a impôr-se com o silencio da solidão reencontrada

porque povoaste-te de beijos roubados de carícias e atrevimentos apenas possíveis num desespero de sentires alguma coisa
qualquer coisa

mas as manhãs tinham o peso de um arrependimento

arrependimento não passado mas futuro
como se o remorso viesse do porvir
qual anunciação de que mais cedo ou mais tarde começarias a acordar e já o sol se teria posto
e a tua vida seria sempre noite ou madrugada
alucinações e poesias adiadas

as manhãs ainda te assustam hoje
e talvez esse medo não se apague nunca
porque a manhã é um mundo perdido e longe
afastado do que os vícios te tentam
as manhãs são proibidas aos teus olhos

a seres esquivo de ti mesmo a noite e as penumbras oferecem tudo o que procuras

porventura não te julgas digno de amanhecer

trilogia do início - antes


trilogia do início

II

antes

quase no início

no antes
que é lugar igualmente desconhecido
povoado ainda de silêncios cujo rumor mói subtilmente entre as camadas da alma
deslizando no magma incandescente do que sou
e aos poucos petrificando
mas ainda sem raiz

isso:

o prelúdio é
um rio e árvores inteiras a navegar pela corrente fora
sem destino a não ser o provável oceano ainda mais incerto
é o sonho  - muito enevoado ainda - de naufragar
de fundear e empoeirar-me da solidão necessária antes de voltar a mim
seja eu qual for quando a mim voltar

e já não é apenas de tempo que o tempo precisa
é de quietude e de estagnação
e precisa desesperadamente desse exacto momento caótico que antecede o que acontece
a orla de todo o possível
o limite

o antes.

dos espaços vazios

Foi dito, e é sabido, que existe no universo mais espaço vazio do que preenchido. Entre os átomos, as moléculas, os elementos e em todo o infinitamente pequeno existe o limbo da matéria, o mar de pequenos nadas. Explicam, aqueles que sabem, que nada verdadeiramente se toca. Mas ainda assim, a nossa humanidade sabe bem que algumas coisas se tocam, têm forçosamente de se tocar. Se não como se explicam os estremecimentos da alma, os assombros do espírito, as vertigens profundas dos seres? E não, o campo electromagnético não explica tudo. Tem de haver uma onda invisível e indizível que percorre o tecido do mundo e da existência. Tem de haver poesia nos olhares que nos arrebatam e apenas as palavras certas a podem nomear. Tem de viver algo nos gestos de carinho ou na promessa dos mesmos, até mesmo no adiamento do afago que quase desenhamos. A certeza inabalável de que nesse espaço vazio onde nada vagueia haverá um rumor feito de outra voz, um eco cuja vibração não se mede com nenhum aparelho que não seja a rendição do corpo perante a promessa da beleza momentânea de cedermos, de sermos mais que nós mesmos, ou talvez de deixarmos de ser o que quer que sejamos para passarmos a ser uma outra coisa.

cumplicidade


rostos e almas penadas
sem rumo nem porto seguro à espera
faces apagadas sem expressão que denuncie uma réstia de normalidade
todo um tratado sobre a loucura de quem se perdeu

mas apesar de tudo isto
lado a lado
a cumplicidade é tecido feito de eternidade
e por muito que se estique que se esfarrape que se canse
não se desune nunca

quadro numa galeria em Aix-en-Provence

deixar umas palavras antes de ir

deixar umas palavras antes de ir

definitivamente o privilégio de semear partidas e voos para longe
de mergulhar na ausência da rotina para a ela poder voltar de olhar cheio
comungar com outras sombras e cheiros
com outros silêncios distintos
de abraçar o infinito de mundos que nos calhou descobrir

e no fim reencontrarmo-nos diferentes e iguais
regressando ao mesmo lugar sendo ele então um outro lugar
porque no fundo seremos nós uma outra pessoa

e se aqui andamos é para isso
para sermos tudo o que pudermos ser

nada teu exagera ou exclui

dos solos

os velhos hábitos são teimosias disfarçadamente inatas
são o erro recorrente de se fazer uma mesma coisa esperando um resultado diferente

mas fazem parte do que somos
e quando o chão se torna estéril a culpa não é da semente nem do lavrador

sim, o lavrador poderia ter tido mais cuidado
e sim, a semente poderia ter tido um outro vigor
mas quando o solo se esgota não há cuidado nem vigor que dêem fruto

mas nem a semente perdeu a promessa que carrega
nem o lavrador perdeu o sonho de colher

apenas precisam de outros solos

e outros solos buscarão nesse velho hábito de errarem
de inequivocamente serem eles próprios

e a fruta terá outro sabor e portanto outra fruta será
e o lavrador outra colheita fará portanto outra pessoa tornar-se-á

e do solo brota sempre a verdade
mesmo feia quando o é
mesmo triste
mesmo nada quando dele nada nasce mais

resta a única certeza absoluta
mais cedo ou mais tarde
ao solo, semente e lavrador voltarão


a perspectiva cósmica

a perspectiva cósmica
tê-la presente nos desencantos que nos calham
saber que tudo isto foi forjado há uma imensidão de ciclos atrás, num mar inicial de indescritível cenário
uma fornalha densa sob a força inquebrável das regras elementares, agregando átomo a átomo, fissurando-os, disparando-os em alucinantes trajectórias onde o caos era a linguagem divina e onde todos os elementos se geraram
para daí iniciarem uma viagem improvável até à ínfima possibilidade de semearem aquilo a que chamamos vida

essa perspectiva poderá não calar uma dor, sarar uma ferida ou lamber uma lágrima
mas pelo menos, no fundo da alma, iluminará a esperança de regenerarmos
pois também nas catacumbas dos genes, no silêncio microscópico do ADN nada se perde, nada se cria e tudo se transforma
e o gume da dor se suavizará, a cicatriz das feridas se esbaterá e as lágrimas evaporar-se-ão em nevoeiros feitos penumbra


a teoria

Era uma avenida larga e a noite cobria a estrada, os prédios altos que a ladeavam e todo o céu por cima. Somente nas esquinas os lampiões derramavam uma luz baça e poeirenta que esmorecia assim que chegava ao chão. Metido na gabardina e no chapéu, um homem caminhava junto aos prédios.
Recordo-me dele e das suas teorias. Tínhamos falado uma vez numa madrugada de cigarros, cervejas e música aos berros num café perto da praia. Segundo ele, neste tipo de avenidas nocturnas e desertas, estavam nas caves de todos estes edifícios, uma infinidade de homens e mulheres sentados cada um numa mesa a bater à máquina horas e horas a fio. Contou-me que eram empregados por um louco cujo sonho era alcançar o texto mais belo de sempre. Apostava no acaso, sabia que a chave de tal texto existia na incomensurabilidade de combinações existentes no teclado das máquinas de escrever, que a matemática e a probabilidade eram algo real, algo possível. Não se sabe ao certo quantos escribas teria já ao dispor na sua demanda, mas o homem da gabardina jurava-me que o numero ascendia aos milhares e que o recrutamento não terminava nunca. Dizia também que o louco revia todos os textos ao amanhecer, que os olhos de tanta leitura tinham-se afundado por dentro do rosto numa miopia astronómica. Via já tão mal que o olhar tinha dado a volta do imaginável e que por isso, agora, via tudo.
A avenida continuou silenciosa e o homem atravessou-a, ficaram apenas os lampiões a diluir a luz leve no breu denso da madrugada. A mim, pareceu-me ouvir o rumor continuo do bater das maquinas de escrever vindo dessas caves profundas, mas poderia estar enganado. 

biblioteca

Disse-me o meu pai uma vez que a melhor escola para um escritor é a biblioteca. O sentido de tal afirmação entende-se facilmente: ler e ler muito para poder tentar escrever depois.
Mas a dita frase é aqui colocada apenas por uma razão (de toda as almas vivas no mundo, somente a presente e mais uma poderão alcançar. Imaginemos a vertigem de tal coisa). Razão essa que é a palavra biblioteca. E à razão e à palavra voltarei em breve, mas, primeiramente, convém dizer que, ao fazê-lo, quebro a regra sagrada que me impus na minha relação com a escrita. Regra essa que fica muda e secreta.
Porquê então a palavra biblioteca? Porque amanhã, ou hoje (ou daqui a mil eternidades, dependendo do momento da leitura), gostava muito de poder estar num jardim cuja entrada tem 4 esculturas representando as estações do ano, onde pavões se esgueiram entre flora caleidoscópica e, sobretudo, onde se ergue um templo de livros.
E escrevo por impulso, o medo, a vergonha ou o arrependimento que venham depois, se vierem.
A ridícula verdade é que amanhã gostava muito de poder ir a uma biblioteca mas não posso.

E isto deu um texto.

assim

assim
na absoluta quietude do que já foi
daquilo do que definitivamente já não é
na tempestade silenciosa da escuridão
no tecido do mais profundo breu
(onde a noite é tão espessa que nem a luz da infinidade de estrelas existentes penetra)
jazes na solidão de tudo

e a paz é isso, a ilusão de que o que sentes paira como um rumor leve sob as águas do teu próprio lago

então um verbo nasce-te na língua e nas mãos

alcançar

é um verbo que não o é
uma intenção abstracta
uma possibilidade
uma hipótese
um se
um gesto por desenhar
um sonho portanto

e nas palavras cumpre-se, ficando ainda assim aquém, como é de sua natureza
de outra forma não poderia ser

e já nem de ti depende porque neste pasmo derradeiro reside a verdade final de tudo
o verso preciso que remata a tua alma
e mesmo que não o saibas ler ou dizer
em ti se pronuncia como um tremor vindo de uma esquina por descobrir e dobrar
percorrendo todo o teu corpo
um estremecimento tal que mesmo estando tu quieto
a silhueta da tua sombra estremece no contraste das paredes nuas da sala
e aí ecoa vibrando e desvanecendo muito devagar como um peão que rodopia até se calar

assim.

dia limpo de sol


hoje foi um dia limpo de sol
todo o azul possível derramado no firmamento
e sobre o mar uma manta de luz estilhaçada até ao horizonte a vibrar como quando olhos se inundam de lágrimas 

na praia um leve sono esquecido a salgar sobre as pedras
e de algas e areias se ergueram castelos irreais onde gaivotas descansaram logo após um esquisso de voo infinito
daqueles voos que mesmo depois de cessarem se prolongam num outro desenho e num outro céu por dentro de nós
quais tatuagens de alma
cicatrizes de uma outra pele ou lembranças do que nunca chegou a ser

trilogia do início - antes do antes

trilogia do início

I

antes do antes

agora sim, o silêncio mais profundo, aquele cujo rumor é feito dos ecos do que fomos, tudo polvilhado por aí entre as sombras invisíveis dos gatos ausentes, sem gestos felinos que se vejam nem olhares que se cruzem

há a possibilidade de todas as coisas e a impossibilidade de coisa nenhuma
escorre das paredes um musgo primordial, um magma do tudo por vir, como lá no infinito do longe nas fornalhas das estrelas e galáxias onde os elementos se moldam sob a pressão das regras elementares, agregando átomo a átomo, criando aquilo que precede os sonhos, as desilusões, os sorrisos, as paixões, as tardes de sol, as esperas nas paragens de autocarro

agora ainda não é agora
é quase
porque o caminho dos elementos forjados no cosmos até ao cintilar da vida na Terra, levou eternidades
precisas também tu das tuas eternidades
do lento correr dos dias, dos silêncios, da solidão e sua penumbra envolvente

por isso, o tempo de tempo precisa para se revelar novo, de novo, inocente.

antes do antes.

escrever, a loucura inevitável


a escrita ausente da tua rotina por força de uma preguiça que te povoa desde que te conheces
 
escudas-te na inspiração que te visita a espaços
que se molda numa falsa perfeição, numa aparente verdade que julgas alcançar
 
e isso te satisfaz fugazmente, como um arrepio, um orgasmo, um papel atirado de longe para um caixote
 
na verdade para escreveres precisas de duas coisas: ler (e isso cumpres) e insistir no erro permanente de tentar (isso já não cumpres)
 
errar sempre, errar melhor, teimar, marrar, sentares-te todos os dias e estatelares-te no branco silêncio das folhas, fazê-lo com casmurrice irredutível, com uma fé no absoluto desalento de escreveres nada e nada
e muito nada e ainda mais nada de jeito
 
recorda-te de um professor que tiveste ainda na escola
um homem que entrava a declamar poemas em alemão numa aula de francês
um homem com cara de cientista louco
e que perguntava com uma certeza inabalável lá no meio:
"quando nada tens a dizer, o que dizes?"
 
e leva isso contigo, a partir de agora, todos os dias para o que tens a dizer
 
e escreve, pouco, muito, muito pouco, muito mal
 
constrói uma disciplina férrea e dedica-te a ela como um culto
fá-lo secretamente, nas sombras, na quietude
ou à luz do dia, no corpo por tatuar dos teus cadernos silenciosos
regressa aos cafés onde mergulhaste no passado, semeia-te na tua nova sala e colhe o que as esquinas te ditam
compõe prosas e versos mutilados pelo teu atabalhoamento
faz da palavra o escape de uma voz por descobrir como dizia o Cohen
encontra-te com todos os vultos ainda por moldar
sê o que nunca imaginaste
e quem sabe talvez possas, como sempre, deixar mais esta promessa por cumprir
e é sabido que enlouquecem os homens que não cumprem as promessas
mas tu sabes também, que muitos enlouqueceram
por promessas terem cumprido
 
escrever, a loucura inevitável.

dos falsos cometas


dos falsos cometas
 
diziam, no início dos tempos, que a palavra, quando nasceu, trouxe nela todo o possível
toda a verdade e, claro, toda a mentira
no infinito total da lotaria que o léxico nos oferece estão as mais belas declarações de amor bem como todas as incompreensões e ilegíveis afirmações
 
o poeta opta perante este céu imaculado de fim da tarde usar a expressão de falso cometa para descrever o rastro que lá no alto ecoa
 
eco esse que fica para sempre, pois tatuado em verbo nada o apaga mais
pois suas ondas de ressonância dispararam em direção aos confins de tudo isto
 
talvez esmoreçam no profundo cosmos, ou se consumam nas fornalhas distantes criadoras de elementos e galáxias
 
mas não morre mais a sua lembrança
 
um céu, um traço, um amontoado de palavras
haverá poder maior?

outra coisa


aguardam o momento certo para se elevarem também na galeria nua da tua sala, pois já na tela se elevaram quando o artista as alcançou
o silêncio profundo de uma pintura por pendurar
qual rumor do mar nas madrugadas solitárias
 
existe um lugar especial entre o momento presente e o momento futuro, um entretanto impossível de perceber, de afagar, os quadros por expor aí se encontram, num limbo incerto de cronos
a planície imensa de uma ideia ou de um sonho estende-se nos gestos adiados das nossas vidas
 
se por um lado tenho de pendurar quadros, por outro lado gostava de fazer uma outra coisa
 
e se escrevo sobre telas encostadas ao solo não é sobre telas encostadas ao solo que quero escrever, é sobre a outra coisa

trovões silenciosos

 
 
é em certas esquinas de espuma e chumbo que se formam os trovões silenciosos
ondas profundas da alma onde cardumes de peixes por inventar nadam em uníssono
como vagas de harpas em mãos de sereias sem rosto
ah como sonho em ser um desses lobos do mar que o sol queima
e cuja pele é esculpida camada a camada até serem estátuas de sal negro onde no lugar dos olhos está somente
o oceano inteiro
relâmpagos cegos que desenham a noite num breu tão denso que nos chega apenas o rumor do possível 

ao dia mundial da poesia


o tempo que não se deixa enganar, que nos leva inevitavelmente à derradeira igualdade que é o silêncio

por isso aquilo que nos distingue não será a quietude a que estamos destinados
mas antes o assombro que possamos criar nos entretantos
as ondas de impacto que gerarmos com a alma, com um sorriso ou com um gesto
as sombras que consigamos deixar para trás
os vôos que alcancemos em desenho para lá de nós
a entrega sem medos ou com todos eles que façamos ressoar nas noites profundas da cumplicidade
a poesia, esse silêncio que se diz que interrompe a pequenez que nos eleva e nos coloca no berço da pertença

pertencer a alguma coisa
nem que seja a nós próprios

a mais absoluta das belezas

Na verdade, nunca sabemos o que queremos e ainda menos sabemos do que precisamos. As necessidades do espírito movem-se por caminhos dúbios, revelam-se de formas inesperadas. Mas se de incertezas é a vida feita, ela acaba também por ser feita de algumas certezas. Tudo isto para dizer que precisava de cá voltar. Ao Douro. E é certo, igualmente, que terei sempre de cá voltar, de cá perder o olhar para poder, no fim, reencontrá-lo renovado e inocente uma vez mais. A alma tem curiosas formas de se revelar, de se render, e nada como um banho de xisto e de silêncio, de esforço de seiva e de sangue para renascer no mesmo deslumbramento de sempre.
Não há nada igual a isto, não há mesmo. Este rio, estes montes, estas vinhas. Porque o Douro é o impossível, o inimaginável. E de todas as vezes é sempre uma primeira vez, um permanente reencontro com o início e com a inocência. Porque não há habituação à mais absoluta das belezas como disse o Torga.