Era uma avenida larga e a noite cobria a estrada, os prédios altos que a ladeavam e todo o céu por cima. Somente nas esquinas os lampiões derramavam uma luz baça e poeirenta que esmorecia assim que chegava ao chão. Metido na gabardina e no chapéu, um homem caminhava junto aos prédios.
Recordo-me dele e das suas teorias. Tínhamos falado uma vez numa madrugada de cigarros, cervejas e música aos berros num café perto da praia. Segundo ele, neste tipo de avenidas nocturnas e desertas, estavam nas caves de todos estes edifícios, uma infinidade de homens e mulheres sentados cada um numa mesa a bater à máquina horas e horas a fio. Contou-me que eram empregados por um louco cujo sonho era alcançar o texto mais belo de sempre. Apostava no acaso, sabia que a chave de tal texto existia na incomensurabilidade de combinações existentes no teclado das máquinas de escrever, que a matemática e a probabilidade eram algo real, algo possível. Não se sabe ao certo quantos escribas teria já ao dispor na sua demanda, mas o homem da gabardina jurava-me que o numero ascendia aos milhares e que o recrutamento não terminava nunca. Dizia também que o louco revia todos os textos ao amanhecer, que os olhos de tanta leitura tinham-se afundado por dentro do rosto numa miopia astronómica. Via já tão mal que o olhar tinha dado a volta do imaginável e que por isso, agora, via tudo.
A avenida continuou silenciosa e o homem atravessou-a, ficaram apenas os lampiões a diluir a luz leve no breu denso da madrugada. A mim, pareceu-me ouvir o rumor continuo do bater das maquinas de escrever vindo dessas caves profundas, mas poderia estar enganado.
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