Era um velho e era em noites como esta, onde os ventos quentes subiam até à solidão, que mais falta lhe faziam certas coisas que já tivera: uma janela sobre o mar e sonhos de sobra a rondar o espírito.
Tentava lembrar-se do momento exacto do seu esquecimento mas a pele ardia por fora e por dentro e desse incêndio restava apenas cinza.
Tempos houve em que a sala espraiava-se por entre rascunhos de versos, melodias de piano e copos vazios. No quarto talvez dormisse uma mulher ou ninguém, o que na maior parte das vezes ia dar ao mesmo. Nada somos se não houver testemunhas da nossa existência (há sempre uma testemunha).
O ar treme no bafo escuro da madrugada, baloiça ao sabor dos carros que rasgam a quietude no seu passar efémero. Estremecem os tragos amargos de uma bebida demasiado forte e o velho hesita em desejar o impossível.
Para além dos carros, alguns cães ladram à vez, assustados com certeza pelo adormecimento súbito de todas as coisas. O velho senta-se numa cadeira e recorda antigas cicatrizes da alma. Os lutos, os remorsos e as promessas que não cumpriu.
De todos os arrependimentos, um volta constantemente às lágrimas dos olhos: o velho jamais tinha sido novo. Não é fácil de explicar, mas, desde sempre, lhe pesou o tempo nos gestos, e cada um dos que desenhou, deixava um rasto arcaico, como se alguém já o realizara antes. Sendo que esse alguém podia muito bem ser ele próprio. No fundo, vivia a vida como se já a vivera anteriormente.
Era um eco, uma repetição cada vez mais subtil, cada vez mais ténue, mais curta.
Um dia deixou de se ouvir.
O calor subia ainda, vinha dos desertos mais longínquos onde se formara por teimosia. O velho que já não se fazia ouvir enrugava-se até ser apenas quebras no lençol da noite, leves pregas de penumbra e sombra.
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