L'échappatoire

Já escrevi isto algures, mas é uma ideia que me assalta de quando em vez. Trata-se de um documentário que vi na minha infância sobre um doente com SIDA. O homem falou da sua experiência com a doença, do seu mundo arruinado pelas drogas e pela miséria. Dos poucos amigos e sorrisos que ainda tinha. Falava de tudo com uma certa raiva e desalento. Mas proferiu uma última frase antes do fim do filme: je crois à l'échappatoire. A escapatória. Dizia que apesar da sua vida atribulada, das experiências violentas com o crime e a pobreza, tinha, até então, encontrado sempre uma escapatória. E perante a fatalidade da doença, apesar de já não crer em grande salvação, teve forças ainda para afirmar esse pedaço de esperança. A escapatória, essa ideia que dava para romances, ensaios e tratados.
Não sei que é feito do homem.
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Ponto

Para breve palavras de Garrett. Regressei às leituras. Tenho também o Al Berto em atraso. Muitos sublinhados, tiradas que ficam, gestos literários. Tudo para me acalentar corpo e espírito neste frio que vai roendo por aí.
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tudo e nada

entende que tudo é tudo
que tudo é nada e em nada se firma
no silêncio da tua existência
porque isto tudo é tudo
e não há mais nada
não que seja pouco
pois tudo é já muito
no nada que tudo é
e no tudo que o nada vai sendo

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Não chega

Escrevo-te poesia mas não te chega pois não? Sei que não. Tu própria disseste tudo: claro que a poesia não chega, é por isso que ela se escreve, não é?
Pois é. Por não chegar.
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O tempo em que era mais fácil

Houve um tempo em que era mais fácil. Escrevia em folhas soltas ou em cadernos que dormem em gavetas nem sei bem onde. Digamos que a alma se me brotava em melancolias de hora marcada. Normalmente era ao fim da tarde ou antes de adormecer de madrugada. Raramente acontecia de manhã. Hoje já nem escrevo, tirando estes esquissos que se me nascem de lés a lés.
Ouço o vento em rajadas lá fora, vindo do mar, assustado, a fugir. Estou abrigado aqui, mas desabrigado por dentro. Houve um tempo em que era mais fácil. Foi-se.
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O tédio

Duas pessoas que me são queridas (muito), falaram-me do tédio que lhes provoca a rotina. Julgo que ninguém está imune a esse torpor. O que fazer dele? O problema da rotina é que sentimo-nos tentados a arranjar "culpados" para ela. No fundo, apercebermo-nos de que a "culpa" é, em último caso, nossa, e que o arrependimento custa a carregar. A rotina não é um bicho. O bicho somos nós.
Também eu a sinto. E ao bicho que vou sendo, atiro-lhe pedaços de sonho e imaginação, pois não sou dado a "depressões". Tudo para enganar o torpor, mesmo se ele vai crescendo silenciosamente por dentro.
Mas pergunto-me às vezes como reagiria (eu e os outros) se experimentasse o mesmo tédio, se o aceitasse plenamente e o gritasse ao mundo. Existimos nós, existe a imagem que temos de nós e existe a imagem que pensamos que os outros têm de nós.
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Coveiro

Explicar-vos o meu atraso para comigo, ou pelo menos, para com a ideia de mim próprio. As leituras e as escritas. Personagens e histórias deixadas a meio.
No último Auster que li, uma das histórias dentro da história relatava precisamente isso: uma personagem encurralada para sempre numa cave, pois a porta fechara-se e era impossível abri-la por dentro. O personagem que escrevia essa história, ficara sem ideia de como salvar o protagonista que colocara nessa cave sem saída. Ali ficou.
No fundo, no fundo, sou um coveiro. Coveiro das minhas histórias. Não um assassino, pois elas já nascem mortas de dentro de mim, limito-me a enterrá-las no olvido, no tal atraso.
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Da culpa

Os inocentes. Quem são eles? Somos obviamente culpados de tudo. De tudo e MENOS alguma coisa. Isto de andar por aqui carrega, desde logo, um quê de culpa. Falo de culpa, não de responsabilidade que é uma outra coisa. A culpa, vem na Bíblia, brotou logo a seguir ao "início". Mas "logo a seguir" implica um "antes", que apesar de ser virgem em culpa, tinha no seu corpo a iminência da culpa. Ter-me-ei embrulhado? Paciência, é que a palavra inocente é muito próxima de cianeto. Inocente cianeto. Cianeto inocente. Não deveriam existir dúvidas.
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Anedotas

Em tempos inventei uma anedota e adaptei humoristicamente um provérbio. Há que vangolariarmo-nos dos grandes feitos e conquistas da humanidade.

Anedota:

Um homem caminha pela rua com ar sério. No fim da rua existe uma ponte. Ao atravessar a ponte o homem começa-se a rir. Ri durante toda a travessia da ponte. Terminada a travessia da ponte, regressa ao seu ar sério. Ao chegar a outra ponte, o homem volta a rir às gargalhadas enquanto a atravessa, regressando de novo ao ar sério após a travessia.
Sabem porque é que isso acontece?
Porque era um homem que achava piada atravessar pontes.

Provérbio adaptado:

Mais vale uma na mão, do que duas no soutiã.
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Os clássicos

Regressar aos clássicos. A expressão não pode passar incólume, ela é plena e una, deverá transmitir aquilo a que os crentes chamam de fé e que os hereges como eu apelidam de insondável: arrepios na alma. Os crentes dirão: vês? é Deus! Eu respondo, pois é, chama-se Elvis (Eça de Queirós, Pelé, Miguel Ângelo, Pessoa, Sophie Marceau, o Gilreu, ela a dormir, etc, etc).
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Léxico

Na gráfica, palavras para se dizerem por dentro com todo o aparelho fonador em funcionamento:

montar, passar à chapa, pose, imposição, deitado, fotolito, offset, imprimir, caderno, tira-retira, frente e verso, gramagem, tinta, papel, medida, molha, revelar, rolamento, tinteiro, cilindro, resma, palete, conta-fios, ponto, ganhar ponto, ponto estocástico, dobrar, alcear, coser, colar e reforçar lombo, guardas, vincar, cortante, estampar, película, guilhotina, trilateral, lombada, mono, cartão, contracolado, cartolina, couché, cola de bancada, cabeceado, transfil, telagarça, fitilho, revestimento, bolear, armar capa, meter à capa, friso, retráctil, a apara, prensa, cola gelatina animal, livro, revista, encadernação, barbante, fio de norte...
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As palavras

Restarão as palavras. Mesmo depois de não haver olhos que as leiam, restarão as palavras. O mesmo seria dizer o silêncio. Palavras não lidas são silêncio, carregam a mesma ensurcedora quietude do que é definitivo. Os gestos, esses, já não padecem do mesmo infinito, desvanecem, nem que para isso demorem anos a apagarem-se dentro de nós. Mas uma palavra não. Uma palavra é tatuada e não sai mais.
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Para memória futura 9

Era aos domingos. Íamos buscá-las à Ribeira, num pequeno andar bem alto debruçado sobre o rio. A Titi e a Teté. Lembro-me do chão de madeira a ranger e das pequenas louças dentro de armários envidraçados. Lembro-me de uma televisão a preto e branco com uns botões digitais assinalados a vermelho. A Titi, madrinha de minha avó (cujo nome nunca soube, era Titi e pronto) e a Teté (Celeste), irma de minha avó. Íamos buscá-las ao domingo para almoçar. Tinha eu 4 anos, não mais, e ainda assim lembro-me. A minha Tia Celeste tinha um dedo permanentemente dobrado para dentro, algo que sempre me fascinou. Tinha os mesmos olhos que a minha avó Beatriz, os mesmos que a minha mãe tem hoje e que a minha irmã vai ter com certeza. Terá sido das tias que mais pijamas e lenços me ofereceu no Natal.
Celeste no céu, desde ontem. E dentro de mim, é mais um rosto numa constelação que se vai adensando e enevoando com o tempo. Por vezes, isto é tudo demasiado triste. Por isso vale tanto a pena.
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Ar, água, fogo e terra

Um a um. Afinal não fecho portas. Deixo-a entre-aberta com um artigo de cada vez. Está sempre ali o arquivo para quem nada tem que fazer e gostar de vasculhar.
O Outono veio e invernou-se. Lembra-me a Bélgica, embora por cá o vento seja mais temperamental. Nas canções de Brel, mesmo quando ele fala do vento, a melancolia é algo de natural, por cá não existe tanto, é mais monotonia. Mas entendam-me, quando uso os substantivos (melancolia, monotonia) não penso em adjectivá-los (bons ou maus), as palavras não têm sentimento, somos nós que os metemos lá dentro. Por isso, se digo melancolia ou monotonia, leiam essas palavras sem juízos de valor nem procurem adjectivá-las. São o que são no vazio do seu próprio dizer. E se por acaso no fim restar um certo sabor cabisbaixo neste texto de outono invernal, desenganem-se, tudo é ar, água, fogo e terra, já diziam os alquimistas.

PJ

Werchter 2007
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Fecho

Fecho a porta. Este blogue não resistirá às medidas de austeridade... da minha economia criativa. Obrigado a todos, os credores que me perdoem.
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Na teia

Vais caminhando com o teu silêncio que se adensa. A rotina é uma teia subtil de hábitos vazios. Vais-te enredando, enredando, enredando. E quando, devido a súbito espasmo de introspecção, te dás conta do emaranhado, verificas que a teia é bem mais resistente do que julgavas. Resta-te o múrmurio dos sonhos que vais queimando dentro de ti, mas é pouco. Dizes para ti, "acorda", mas estás naquele limbo em que sabes que só acordas se te lançares em queda livre.
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Lendo

Depois de terminar Promessa do VF e antes de remegulhar em O Medo do Al Berto, li um pequeno livro que me ofereceram nos anos em Março. No café da minha juventude perdida de
Patrick Mondiano. Esta versão portuguesa perderá um pouco daquele toque parisiense que dever-se-á sentir no original, mas não deixa de ser uma leitura valorosa.

Vários personagens vagueam pela Paris dos anos 60, onde os cafés serviam de refúgio e de fuga. E todos torneam em volta de Loki, uma rapariga com um passado misterioso que parece encantar todos aqueles que a cruzam.

Estar tudo escrito, preto no branco, significava que tudo chegara ao fim, como nas campas em que estão gravados nomes e datas.

Pelo menos, não corríamos o risco de deparar com fantasmas. Os próprios fantasmas tinham morrido.
ps- ao lado do Al Berto, sobre o qual já muito tenho sublinhado e a seu tempo virá cá parar, decidi revisitar as Viagens na Minha Terra (custou-me um euro e meio no Jumbo)..

Prateleira

Compra, compra, compra, compra, oferta, oferta, compra, compra, compra, compra, oferta, compra.
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Cohen

A letra, a música, e claro, aquela voz e aquela presença. Uma monumental e extraordinária música. Para ouvir de alma despida.

Encadear palavras

Encadeava palavras em blocos de notas. Não escrevia, que isso é uma outra coisa. Mas lá encadeava palavras. Umas atrás das outras. Fazia-o como quem joga numa lotaria, com a secreta esperança de que por sorte matemática, do encadeamento saísse poesia. Fê-lo durante anos a fio. Não teve sorte, o melhor que fez foi acertar um ponto final.
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Inception

Fui ver o Inception. Interesou-me, claro, o desvendar do mistério, de saber no fim (e no início e a meio) se os personagens estavam "na" realidade ou "no" onírico. Mas o que mexeu comigo foi uma outra coisa. O sonho como refúgio. Refúgio real, passe o paradoxo. A simulação de um mundo, a fuga do que existe. Os loucos que falam sozinhos estão lá, no limbo. E nós, os "sanos", não nos enganemos, vamos a caminho. Quantos de nós simulam em frente ao espelho uma outra vida? Ou antes de adormecer, ou no autocarro, ou? As simples projecções do que poderemos vir a ser, ou do que gostaríamos de vir a ser.
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Avó


Os mais belos 90 anos, a Senhora Dona Elvira, o monumento que é a minha avó. O segredo: pão e vinho, corpo e sangue de Cristo..

O atraso

O atraso começa seriamente a ser um tema recorrente. Vai ganhando forma, vida própria. Torna-se, por isso, inalcansável. No entanto, ao nomeá-lo, ao ficcioná-lo, posso, ao menos, expurgá-lo de mim. A responsabilidade deixa de ser minha. O atraso que me siga a mim, e não o contrário. Mas é mais fácil dizê-lo do que escrevê-lo.
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Regresso

Regresso. E os regressos sabem a nada, que é como quem diz: a tudo. O sal e o sol ainda na pele dissolvem-se aos poucos na rotina. Mas partir também é rotineiro, tal como regressar. Afinal, reconheci-me lá no sul, onde tive tempo, que é igual a não ter tempo algum e a desligar-me um pouco de tudo, a adiar-me. O sorriso dela comigo foi a única âncora à realidade (isso e um livro de Mia Couto comprado em Lagos, o Al Berto só saiu da mala para enfeitar a mesinha de cabeceira), mas a realidade com ela é feita de sonho. Vou sonhando, portanto.
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Rumo ao Sul

Rumo ao Sul. Reencontro com a praia e o mar. Já lá vão dois anos. No ano passado fui para outro tipo de mar, aquele que queima em luz e que ondeia em estalos o interior do Alentejo, outras marés portanto. Agora regresso ao sal e à areia, ao horizonte no seu devido lugar, rasteiro, inalcansável na dobra do firmamento. Sei bem que vou reconhecer o cheiro, o tacto e a luz, mas desconheço se me reconhecerei a mim. É sempre assim quando revisitamos lugares ou pousios do passado, reconhecemos tudo, mas muitas vezes desconhecemo-nos a nós..

Ela


Há algum tempo que não escrevo sobre ela aqui. Mas não escrever é também uma forma de poesia e, portanto, de amar. Amo lá fora, muitas vezes distraído na rotina, apático na certeza subtil de a ter comigo. Mas, ainda assim, há momentos de iluminação. Certas pausas numa conversa onde mergulho nos olhos enormes que ela me atira, no sorriso aberto, no brilho do rosto. Como no início. Sim, é isso. Amá-la é estar sempre no início, no princípio. E é sabido que já foi dito algo do género: no início era o verbo e o verbo era amar.
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Lendo

Adormeço com o calhamaço. Al Berto é uma vertigem e sua consequente queda. Por vezes (muitas vezes), vou atrasado. O mundo do poeta é demasiado alucinado, demasiado denso nas imagens e na sua engrenagem. A beleza que daí sai, exige-me um tempo (tempo dentro do tempo) que não tenho. Mas agarro-me como posso e dou comigo a sublinhá-lo em certos rasgos que alcanço. Chego por vezes à ousadia de lhe completar versos. Para breve um apanhado desse vertigo.
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Serralves

Em Serralves, domingo de manhã, fui ver a exposição de Marlene Dumas. Os muros e alguns rostos. Os muros e os rostos da (des)humanidade. É impossível olharmos os quadros sem que a narrativa da realidade nos assalte. E esse assalto leva-nos rapidamente ao absurdo. Dumas não queria propriamente uma leitura política da sua obra, entendo-a, essa leitura daria para todos os gostos, mas a leitura humana é impossível evitá-la. Um muro é uma absurdidade.


Vi também as imagens de luz de Grazia Toderi. Envolvidas naquilo que parecem ser sons abafados de bombardeamentos longínquos, os quadros luminosos remetem-nos mais para um cenário cósmico, de supernovas e bombas celestiais.

Pelé

Pelé não fez golo nesta jogada. Mas fez arte. É difícil explicar-me sem cair numa pseudo-lamechice mas vou tentar. Como disse anteriormente, o futebol tem um poder narrativo, literário portanto, e nesta jogada, em que o talento e a inteligência fazem um gesto poético, tudo é perfeito. O facto de não ter sido golo (por centímetros) é irrelevante. Pelé não tocou na bola para desenhar este gesto, como os grandes autores, pintores e compositores não precisam de dizer, pintar ou embalar o óbvio para encontrar a harmonia.
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A morte dos outros

Faleceu António Feio. Penso em José Pedro Gomes. Quem morre vai, e claro que o mal é de quem vai, mas outro mal fica por cá, e os amigos são os que o carregam. Imagino que José Pedro Gomes carregue muito do mal que por cá ficou com a partida de António Feio. No fundo, a morte dos outros é isso, um rasganço para lá de nós e apesar de nós.

Francis


Já lhe agradeci em tempos. Hoje faço o mesmo. Francis Obikwelu ficou em 4o lugar nos Europeus por diferenças de milésimo. Teve, aliás, o mesmo centésimo que o 2o classificado. Foi pena, aquele sorriso merecia uma medalha. De mim leva a admiração. Nunca ninguém foi mais rápido com a nossa bandeira, está no Olimpo Luso, para sempre.
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Lendo

Terminei Promessa. Com A Curva de uma Vida, cumpri duas leituras de inéditos de VF. Promessa é um romance no início de um autor maduro, enquanto que a novela é de um VF muito jovem com rasgos de ingenuidade. Mas em ambos já se descobrem ecos do tom futuro do autor. A Quetzal continuará a reeditar a obra de VF, eu farei o meu papel de (re)leitor. Em mim, VF actua em duas formas: na minha entrega total enquanto leitor e numa amargura (quase total) do adiar da minha escrita, é que VF escreveu no ritmo certo do meu próprio espírito.

Era quase bela e talvez por isso mais atraente, como maillot que quase despe a mulher a enriquece de desejo, ou como um livro que quase diz tudo se torna mais interessante.

Detesta o cepticismo porque leva à tolerância. O homem virtuoso é implacável.

- Qual matar a sede, qual cabaça! O homem não quer matar a sede. O homem quer é a sede. Por isso é que come tremoços quando bebe cerveja.

- Extraordinária coisa: o homem tem centenas de milhares de anos. Mas cada homem vive apenas vinte, mesmo quando dura oitenta: nos primeiros trinta aprende a falar, nos vinte seguintes fala e depois resmunga. Pois nos vinte anos que vive, procede como se vivesse milhares. Num ponto da evolução da humanidade, ergue-se um homem e chama a si, a sério, a responsabilidade dos milhares de anos passados e futuros. É lamentavelmente cómico.

Senti-me dobrado por uma raiva potente. Cerrei os olhos. Apertei os dentes. Disse depois a frio:
- Você o que é é um corbade.
A pancada atordoou-o. Levou tempo a recompor-se. Como um sonâmbulo, ergueu-se e veio descansar um braço no meu ombro:
- Isso de cobarde deve ser o mais certo de tudo o que disseste, meu jovem.
E saiu sem mais palavra.

Olhei-o assombrado e entendemo-nos profundamente. Entendi eu que o ver-se deposto dava a Sérgio umprazer derrancado. Era a espora de um desejo que precisava de regressar-se a uma violência desconhecida. Segurei Sérgio pela lapela, enterre, pelos seus olhos dentro, os meus olhos iluminados e pus-lhe no fundo da consciência uma pergunta a que ele veio a dar uma resposta quando morreu:
- Como não compra um revólver?

- Tem. Mas veja. Uma vez edmundo disse que não há gota de filosofia que não se esprema com acção. Penso que isso é exacto. Mas incompleto. Falta dizer: e que não esprema acção, própria ou alheia. O senhor julga que pode viver no mundo impunemente. Julga que pode brincar às palavras. Pensa que dizendo o que lhe apetece, isso morre no instante em que o diz, ainda mesmo que o fundo disso que diz seja a negação da acção. Como se engana, Sérgio! Uma palavra que seja, largada de nós, é o que alguém dizia, creio que a outro propósito, "uma espingarda carregada". Se você não dispara, outros podem tomar a espingarda e apertar o gatilho. Foi o que aconteceu.

Desarmado, não terei palavras mais rápidas do que as balas
que vão sempre dizer adiante o sítio das palavras.

No entanto, meu amigo, foi pena que não vivesses. Porque aconteceram, meu sérgio, coisas bem extraordinárias desde o dia em que morreste. Mas a terra chamava-te, apressada, para que subisse da tua podridão a prometida flor que havia nela, e que tu sempre negaste. Porque em todo o teu desvario como no dos teus amigos vivia justamante a promessa do mundo que veio nascendo; como em tudo o que apodrece se promete a verdade de um fruto novo. Por isso, sem mais uma palavra, aqui te deixo, em sossego, com a terra que te cobre.
Dorme em paz
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... a giant leap...

Há 41 anos o Homem esteve na Lua. Pensar tal paisagem enleva-me para lá do dizível. A aventura da humanidade é grandiosa quedando-se neste nosso mundo, mas idear, por um segundo apenas, a imensidão do que se curva lá no infinito, arrebate-me por completo. Passear na Lua, flutuar no espaço, ser cósmico, mergulhar no silêncio dos silêncios.
Ia já.
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A leitura das coisas

Escrevi em tempos sobre o tempo dentro do tempo. Aquele segundo que dura um pouco mais que um segundo. Pude comprová-lo. Olhando um relógio e os três ponteiros que o torneiam, cada um ao seu ritmo. Pois calhou que a dada altura, o ponteiro dos segundos, no preciso momento em que lhe pousei os olhos, ele se demorou um pouco mais. Imperceptível quase, mas real. Uma pausa na engrenagem disto tudo. Poderá ter sido impressão, ilusão de óptica. Mas pouco importa. A percepção ainda é a medida correcta de avaliarmos a realidade. Ou melhor, a realidade é o que nos dita a percepção. No fundo, somos escravos da nossa leitura das coisas.
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vulto

o vulto que vamos sendo na silhueta que nos calha
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Das ideias

Encontrar o tom certo para alcançar o pensamento daquilo que nos navega nas ideias. Porque expor uma ideia é um processo de transformação do mental para o discurso, e nessa transformação, na soldificação da ideia em palavras, nada se cria, nada se perde e tudo se transforma, logo, a ideia é já outra quando a vomitamos.
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o silêncio

estaremos em silêncio certo tempo
depois o silêncio estará em nós
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Da beleza

Sobre a imagem que encabeça o blogue: os amantes da beleza nem sempre estão de acordo. Para alguns o futebol não faz parte desse mundo. Mas já Álvaro de Campos via beleza em engrenagens industriais e mecânicas. O futebol nem sempre é belo, mas lá está, a poesia nem sempre é bela também. A beleza é a manifestação visível de algo imperceptível, e nessa contradição, o futebol serve, por vezes, de veículo a essa manifestação (harmonias, sincronias, gestos). O diálogo das metáforas e dos símbolos resulta, em certos momentos, naquele sentir cujo o arrebatamento nos derriba. A beleza exige um contexto, uma narrativa, se não é apenas estética parda. O futebol é belo quando se envolve de narrativa e nos conta uma história. A imagem ali em cima é exactamente isso que faz.
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Lendo



Sérgio disse que não lhe interessava o caso. Aprenderia a pensar mais tarde, quando velho. Na hora das arrumações.

- Sim amigo, eu não sinto, porque entendo; com você, tudo se passa ao contrário. Compreender é ser claramente tolerante com o que em nós não é o o que de momento somos.

- O senhor doutor não está? - perguntou-me a criada, mostrando o papel. - Talvez seja de importância.
Para Sérgio. Provavelmente, de Churrasco. E como em Churrasco um telegrama é coisa grave, fui ao liceu. Sérgio vinha justamente ao portão com um sujeito baixo, magro e acabrunhado. Pela nula importância.dada ao homem, ou ao encontro, ou a mim, não nos apresentou. Tomou o telegrama e continuou embrulhado na conversa que trazia de dentro. O outro sentia-se decerto em justiça, na sua humildade, porque mal ergueu a cabeça.

- José Pereira! Mas é um nome monstruoso! Como é que um José Pereira é professor? E raciocina?

- Se não ficas outro, descobrindo-te, enquanto lês, não há explicação possível. Não há poema. Há caracteres impressos. Não se ensina a entender poesia como não se ensina a ser poeta. Ninguém ensina ninguém a ter olhos pretos ou azuis.
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Sophie

Bom fim-de-semana. Vou descer até Lisboa. Vou em paz (desta vez). Só regresso segunda-feira, entretanto fica mais uma manifestação do difuso.

Para memória futura 8

Debato-me entre conceitos, dos quais a nostalgia e as saudades se envolvem, cedendo um pouco cada uma das suas nuances. Entre o aperto ligeiramente doloroso de uma e a doce melancolia de outra. Não especifico qual pertence a qual, ou melhor, nenhuma delas deixa espaço para a identificação. Não se trata de um grande tormento, aliás os grandes tormentos pertencem a tragédias reais. Mas uma pessoa anda nisto e cada um sente o que sente com o seu próprio sentir e não nos cabe escolher o que à alma e ao corpo cabe revelar. No fundo, os sentimentos é que nos escolhem, a nós cabe apenas o papel de as representar. Certas músicas de Springsteen atiram-me sem piedade para um estado de arrebatamento que me espanta sempre, nada de muito transcendente mas ainda assim digno de registo. Terá sido de as ter ouvido ainda muito novo em viagens longas entre Bruxelas e o Porto. O silêncio da noite nas autoestradas cortadas por aquelas canções que contam a história de uma América entre o sonho e uma realidade feita de alcatrão, fábricas, carros e sentimentos de amizade, amor, laços de sangue e infinito. Não me sei explicar melhor. Talvez seja do domínio do insondável. É que existir não nos dá outra escolha senão cumprirmo-nos atabalhoadamente no caminho que nos é dado percorrer.
Esta versão do The River tem lá tudo. É digna de se ouvir, da introdução que contém um diálogo com o público absolutamente fantástico, ao rebentamento da canção na voz do The Boss, na harmónica e nas palavras.
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(para o facebook, careguem ali em baixo em "view original post" para chegarem à música")

Para memória futura 7

Era Julho. Ano da graça de 1993 ou 1994. Fazia muito calor em Moorsel, arredores de Bruxelas, terra de flamengos (mas bruxelenses ainda assim). Estava de férias e sozinho em casa. Durante duas semanas segui pela televisão o Tour de France. Brilhava Miguel Indurain, o homem que diziam ter um coração maior que a maior parte dos mortais, o que fazia que cada batimento bombeava mais sangue, tornando a resistência do espanhol um tratado da medicina desportiva (isso e doping talvez, não sei, esse desalento com as dúvidas sobre o ciclismo foi desgosto que veio mais tarde). Vendo as emissões das televisões francesas que transmitiam a prova (FR3 de manhã, FR2 de tarde, ou vice-versa) fui aos poucos apaixonando-me pelo ciclismo. Mais do que isso, pelo Tour em si. Os sprints, as fugas, as subidas de montanha, as histórias antigas da modalidade, os mitos. Tudo me envolvia, os nomes dos corredores, as cores das camisolas. Foi então que me deu a vergonha de ter 13 ou 14 anos e não saber andar de bicicleta. É verdade. Não sabia. E, no entanto, lá em baixo na garagem, dormia uma bicicleta que me deram para os meus 10 anos, acho. Decidi aprender. Nessa quinzena em que Indurain, sem vencer muitas etapas, dava lições de pedalada, em que Abdujaparov reinava nos sprints das chegadas, em que Virenque era rei da montanha, aprendi sozinho a andar de bicileta. Tinha 13 ou 14 anos. Nada de especial eu sei, mas terá sido a primeira vitória pessoal baseada na paixão. Abriram-se-me várias portas então sobre o reconhecimento do poder da paixão. Poderei tê-lo esquecido em alguns momentos da vida, mas nunca mais o subestimei.
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Calor do caralho

Estala o calor na evidência do sol a cair-nos em cima. Abrem-se os telejornais com perguntas de rua, está calor não está?, está sim, dizem as senhoras e os homens que apanham um microfone à frente. A evidência das coisas têm a força da idiotice das perguntas. Está calor pois, sua-se, bebe-se mais, veste-se menos. Andamos nisto há séculos, milénios até, mas ainda assim decidimos agora, neste estado de civilização, perguntarmos uns aos outros se de facto está calor e que suamos e que bebemos mais e que vestimos menos quando assim é, como papagaios entorpecidos. Perguntem-me a mim, apanhem-me a mim na rua que eu digo como deve de ser: está calor sim, um calor do caralho.
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Lendo

Começa assim:

Agora que Sérgio morreu, contarei como tudo se passou.


Reencontrar a voz de Vergílio Ferreira. Trata-se de um romance inédito da segunda metade da década de 40. Um jovem VF portanto. Reconheço-lhe a voz, e descubro os primeiros esboços daquele arrebatamento de existir, da estupefação perante o absurdo da vida. A evidência que é estar perante outro e a força das suas ideias e actos. Flávio fala do seu antigo professor Sérgio e da violência de ideias e pensamentos que travou com ele dentro de si mesmo.

Penso, porém, que um morto é um nome.

Isso: juventude prolongada por deformação profissional. Já tinha reparado, efectivamente, que os professores não são bem homens. Lidando com jovens, dissolvem a personalidade, ficam em geleia de jovens e de adultos.

Como sempre, tive a impressão que Sérgio não ouvia. De uma vez declarou-me que o ruído das palavras o intrigava, chegava a irritá-lo. Quando queria entender bem, de tal modo se enterrava no que ouvia, que as palavras lhe ficavam apenas sons, um ruído tonto borbulhando de uma língua, de um queixo e de outros instrumentos que não se viam. Afastando o barulho, esforçava-se por filar a ideia. Mordê-la. Impossível. Achava por isso admirável que os homens se pudessem entender mesmo assim.

- Bragança fica longe do Ministério e da Direcção-Geral. As ordens devem perder força pelo caminho...

No entanto, para a lembrança da minha juventude, sempre me vi trepado acima de Sérgio e Edmundo, com um pé plantado no erro de cada um.

O que mais me estonteava era sentir subjacente a tudo aquilo a torpeza de um erro deslumbrado pelo lúcido fulgor de uma razão aparente.

- Que está a fazer? - perguntei, com estupidez.
- Nada. Estou a sofrer.
Sentei-me, puxei de um cigarro. Reparei que me chocava menos aquele desvario.
- Aconteceu alguma coisa?
- Que coisa?
- Alguma coisa que o magoasse, evidentemente.
- Não.
- Então porque sofre?
- Isso é uma pergunta idiota, meu filho. Alguém pergunta porque é que a noite é triste e o sol alegre? Sofrer é tão natural e espontâneo como existir. Só os insuficientes é que procuram uma causa para serem felizes ou infelizes.

- As razões de um homem valem tanto como as de mil. A igualdade achata. Cinco dias iguais são mais curtos que dois diferentes. Mil homens iguais seriam somente um homem, apenas mais prolongado.
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Espelhos

a pausa e o silêncio encontrou um leitor anónimo pela primeira vez. Normalmente quem me lê ou comenta acaba por ser meu conhecido. Sendo certo que o anónimo leitor chegou através de um amigo (um daqueles que antes de ir para o Brasil me diz "se me raptarem vens-me buscar que eu não morro ouviste? fico vivo até me ires buscar", e eu a imaginar-me já pela Amazónia em busca dele, preocupado com o seu problema renal em condições desumanas). Tudo isto para agradecer os elogios do anónimo (que deixou de ser) e prometer a sempre despreocupada forma de escrever aqui, ali e assim, coisas deste tipo, que isto de andarmos neste mundo vale a pena é para desenharmos sorrisos no rosto dos outros. É que funcionam como espelhos.
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Sophie, merci

A Sophie, sempre ela ou a ideia dela, que é a única que interessa nestas coisas. Como estátua tatuada num sentimento contemplativo. Há coisas que se forjam naquela idade em que tudo é novo. E sendo tudo novo, a cicatriz que deixam são para sempre, mesmo se o tempo as molda consoante os ventos das emoções e das experiências. A loucura é acreditar nisto tudo pela força das palavras e na crença do poder revelador que transportam. É saber que se amo como amo, é porque aprendi com a revelação da ideia de Sophie naquele tempo.
Merci.

24 Horas

O jornal 24horas acabou. Não será por razões de perseguição mas o fim de um jornal, por fraco que seja o cardápio, é mau sinal.

Deixo as palavras do Pastor Luetrano Martin Niemöller:

"THEY CAME FIRST for the Communists,
and I didn't speak up because I wasn't a Communist.

THEN THEY CAME for the trade unionists,
and I didn't speak up because I wasn't a trade unionist.

THEN THEY CAME for the Jews,
and I didn't speak up because I wasn't a Jew.

THEN THEY CAME for me
and by that time no one was left to speak up."

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São João

O São João já vai. Os dias regressam a um dissimulado lento encolher. Da festa ficam os restos dos braseiros, do cheiro a pão, carne, vinho, pimento e sardinha. Fica também o silêncio de uma cidade que se atira à rua em martelos e alhos porros. O São João é um exorcismo, uma purificação através de vícios. É uma comunhão colectiva e individual, quase como o futebol. Nem todos gostam, outros não podem viver sem ele.

Não havia vento

Provavelmente não quererá dizer nada, mas hoje reparei por duas vezes que não havia vento. Uma foi ao ver televisão. Chovia lá na África do Sul mas a bandeirola de canto não se mexia, conclusão: não fazia vento no Uruguai-Coreia do Sul.
Há pouco, ao regressar a casa, atravessando a ponte de betão armado que liga Gaia ao Porto e vice-versa, notei que também não havia vento (aquelas meias laranjas e brancas estavam murchas, coladas ao mastros que as ostentam).
Se eu fosse supersticioso, talvez visse nisto motivo para uma descodificação: alguma força me estará a querer dizer algo. Mas não, que faço eu? Escrevo. As conclusões tirem-nas os outros, se os houver.
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Vaidades e birras

Noto que o sol dura mais. É uma teimosia milenar por esta altura de solstício. Os caprichos astronómicos são a prova provada que a teologia clássica era certeira, só deuses humanos para tamanhas vaidades e birras.
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Lendo

Enquanto não cumpro as minhas, lerei a de Vergílio Ferreira.
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Saramago

Faleceu Saramago. Com Vergílio Ferreira é capaz de ser o autor que mais li até hoje. O "Ano da Morte Ricardo Reis" é o meu favorito numa série de livros que me ficam para sempre (Ensaio sobre a Cegueira, Evangelho Segundo Jesus Cristo, Todos os Nomes e Memorial do Convento) e de outros que nem por isso (Ensaio sobre a lucidez, Intermitências da Morte, Homem Duplicado e A Caverna). Se o que me liga a V.F. é um amor pelo amor que ele escrevia, o que me ligou às palavras de Saramago eram as histórias em si, o poder de as contar. Se em VF me ficavam os sentimentos (ternos ou/e crus) em Saramago ficava-me a voz do narrador, como a de um ancião.
De Saramago ficam-me os livros. O resto à volta nunca me convenceu mas isso não importa.
Hoje, o silêncio levou um dos grandes do mundo das letras e um homem mais do mundo dos mortais.
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Lendo

Das leituras dos últimos tempos.



esqueço-me-te

- Tenho medo. Medo.
noite que descansa em teu peito aberto à navalhada
e a nítida água desta memória vai secando
os pulmões estafados pelo tabaco das esperas
as pedras acendem-se e têm vida por dentro
- Meu doce amigo, levar-te-ei aos países do sol onde o vento nos reconhece a voz no sussurro dos bosques. Mostrar-te-ei as nascentes de luminosos musgos. Levaremos na bagagem somente objectos inúteis, que poderemos trocar, dar, ou esquecer.

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Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes


Pedro Mexia, "As gavetas"

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Li Oracle Night de Paul Auster. Foi uma das prendas de aniversário. Auster, já o sabia, cria sempre várias realidades nos seus livros. Em Oracle Night temos um escritor em convalescença após uma doença complicada que regressa à escrita. A história que ele começa a escrever num pequeno caderno azul feito em Portugal e vendido em Nova York numa loja chinesa, conta as façanhas de um editor com um novo livro em mão, livro esse que lhe muda a vida. Com estas várias realidades a “acontecerem” notamos que elas se vão influenciando umas às outras, e contra as expectativas, é a mais "interior" delas que influência a mais superficial. No fundo, Oracle Night, é a revelação do poder das palavras e do processo da escrita. Os dramas e episódios que vão sucedendo não causam/criam a história, o facto de existirem histórias dentro da história é que faz com que sucedam os dramas e os episódios.

The Portuguese notebooks were specially attractive to me, and with their hard covers, quadrille lines, and stiched-in signatures of sturdy, unblottable paper, I knew I was going to buy one the moment I picked up and held it in my hands.


Nick is a litterary man, after all, and therefore someone susceptible to the power of books.


"Just keep on loving me". Those were simple instructions, and unless she decided to cancel them at some future date, I intended to obey her wishes ntil the very end.
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C'est la vie

Está tudo bem obrigado. O blogue tem estado em pousio devido a falta de substância. Claro que a vida continua e eu nela, com os semáforos na estrada, a antena1 com notícias, o Mundial em vuvuzelas, leituras intensas de Paul Auster, a aquisição oficial do inédito de Vergílio Ferreira, de um convite para jogar no Godim para o ano que declino dado ao facto do Hugo Almeida existir, a necessidade de comprar roupa nova que adio por doença de dar dinheiro por roupa, a Lira que me namora e eu a ela, a comida que vou comendo às refeições e outras coisas que se vão passando por aí e no silêncio profundo do inabitado deserto marciano do qual a NASA tem publicado imagens que me apertam o coração que vai batendo como pode. Como dizem os franceses: c'est la vie.
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A última carta

Um romance inacabado. "A última carta".


I

Lara,

Esta é a última vez que te escrevo.
Sinto o cheiro da terra e do silêncio a chegar. Sinto-o daqui desta janela por onde espreito o mar. O nosso mar que se estende no horizonte tal como se estende na memória que dele tenho, tal como te banha nessa mesma lembrança. Recordar é para mim uma necessidade. Sei, por isso, que estou a morrer, porque quando um homem só recorda e esquece o tempo que ainda não passou, desmaia da vida e desperta para a morte.
É para ti que escrevo agora que o fim se aproxima. Sim, o fim, pelos vistos estou doente. Disseram-me que tinha um problema no coração. Uns meses ainda, talvez um ano mas não mais. É difícil conceber a morte, sobretudo a nossa.
Mas não é disso que quero falar, quero falar de nós, de ti. Já lá vão muitos anos desde a última vez. Beijei-te e parti. Depois perdi-me. Escrevi-te muito, cartas e cartas, centenas de cartas, milhares de cartas nestes últimos anos, talvez procurando reencontrar-me na ausência de nós que criei ao partir. Mas nada, nenhuma resposta. Fizeste bem, fui eu que parti, que te beijei e parti, tu não me devias nada. Ao princípio ficava zangado, triste. Mas depois habituei-me ao teu silêncio, entendi-o. Admito até que com o tempo comecei a apreciá-lo, e essas cartas que não escrevias, essas respostas que não enviavas, faziam já parte de mim e da nossa história. Se tivesses escrito, se tivesses respondido não estaria aqui hoje certamente a escrever-te a última carta. Sim porque esta é a última carta Lara. Não vale a pena continuar a escrever-te. Estes próximos tempos serão os do meu silêncio também. Estarei contigo dentro de mim, lembrarei toda a nossa vida, queimarei em sonhos o que me resta de esperança. As poucas lágrimas que ainda posso ter secarão nos meus remorsos, nos meus fantasmas e na minha culpa. E desta vez, não te vou pedir perdão, fi-lo em todas as cartas do passado. Parti naquele dia. Não há desculpa, não há razão, apenas parti. Beijei-te e parti.
Lara, está na hora. Vou calar-me, cumprir o tal silêncio de nós por estas palavras escritas, juntar a minha mudez à tua de todos estes anos, seremos perfeitos uma última vez. Esta voz que foi até ti durante estes anos todos termina. Esta mão que treme ao escrever-te vai cessar. Estes olhos que choram ao ver o nosso mar vão fechar. Tudo em mim acaba aqui, nesta carta, contigo. A minha alma, o meu amor, tudo olhando para ti na contemplação que sempre me foste. Vou encostar-me ao que fomos e relembrar o que para sempre seremos...

Adeus.

Amo-te.

Pedro
II


A carta deslizou rápida pelo buraco escuro. Está ali, no negro, no silêncio, juntamente com outras vozes e outros gritos trancados em envelopes. Está ali naquele marco do outro lado da rua mas é como se já lá não estivesse. Uma carta que entra no marco do correio está já em viagem rumo ao seu destino. Lara será que já me ouves? Estou a caminho, uma última vez a caminho.
Vendi tudo depois de ter partido. Sim, tudo. A casa, o carro, a mobília, os livros. Tudo. Vim para aqui, para perto do nosso mar. Vejo-o da minha janela. Vivo neste pequeno quarto que dá para a marginal, fica perto do hotel onde ficámos uma vez, lembras-te? Tenho o suficiente para comer e dormir, sobreviver portanto. Só saio para levar as cartas ao correio ou para tomar banho na praia quando o tempo está bom, durante o resto do dia fico cá dentro a escrever, a ler, a gastar tempo. Vou preparar um chá, queres? Eu lembro-me que gostavas muito de chá, dizias que te aconchegava a alma e te aquecia o corpo. Importas-te que fume? Sim, voltei a fumar, mas pouco, três cigarros por dia, não mais. Fumo para matar o tempo. Conto os segundos. Um por um. Perco-me em momentos de ausência total do mundo, como se estivesse num coma profundo, apático e deslumbrado a olhar o nada e o infinito. Mas também penso em ti, penso muito em ti. Aliás, apenas penso em ti porque tudo me leva a ti. E mesmo nesses momentos de ausência devo certamente pensar em ti algures num canto do meu pensamento, algures no escuro e no silêncio do meu mundo.
A primeira vez que te vi foi na casa do Guilherme, lembras-te? Trabalhavas com ele, na mesma empresa de não sei quê, também não importa. Eu conhecia-o dos tempos da faculdade, era um bom amigo, talvez mesmo o único, um verdadeiro irmão, depois conto-te algumas histórias nossas. Eu sei que já tas contei muitas vezes mas como te disse na carta, recordar é para mim uma necessidade, acreditar ainda que alguma coisa aconteceu no meu passado para que ele não seja apenas ilusão, para que o vazio dos meus dias do presente não seja a única coisa que eu leve na lembrança. E é também uma forma de matar o tempo, antes que ele me mate a mim, um escape ao lento passar das horas e das nuvens no céu. Mas voltemos a ti, ao Guilherme, à primeira vez que te vi. Foi num jantar, convidou meio mundo, entre amigos e colegas de trabalho éramos uns cinquenta. Celebrava-se o seu aniversário

Pedro, esta é a Lara

Lara este é o Pedro, um amigo dos tempo da faculdade

foi assim, através de uma frase de circunstância, através de uma apresentação insossa e morna que te vi pela primeira vez. Sorriste ao cumprimentar-me, foi mágico, foi terrível. Conversámos um tempo, abordando as banalidades do costume mas pouco depois já me contavas uma das tuas aventuras simples sobre a beleza e a verdade das coisas. Contaste-me que quando eras pequena gostavas de ficar à chuva a correr e a saltar. Falavas muito alegremente e como se já me conhecesses há muito tempo, com pequenas pausas como que a saboreares as lembranças, levando o copo aos lábios, saboreando também a bebida. Eu ouvia-te, surpreendido pela agradável surpresa de te descobrir. Ouvia e imaginava-te nessa chuva e nessas correrias de criança. Imaginava-te encharcada, com os olhos a brilhar e esse teu sorriso enorme. Essa história nunca mais me abandonou, tatuou-se-me na memória para sempre. Uma noite, já depois de ter partido, depois de te ter beijado e partido, choveu imenso também. Sim, lembro-me bem, foi aí que percebi que te amava de verdade. Chovia, e só aí depois de te ter deixado é que entendi. Amava-te já antes disso, eu sei, e cheguei mesmo a dizer-to mas foi nessa chuva que tudo ficou claro. Há momentos assim, em que aquilo que sentimos dentro de nós se incendeia violentamente, se nos arde no espírito e nos queima até à superfície consumindo-nos a alma inteira. Porque nessa molha, no meio dessa água toda, eu relembrei essa tua história de menina e fiquei triste, fiquei triste por não te ter a meu lado para que ma contasses uma vez mais, assaltou-me a saudade do teu corpo e do teu olhar. Nessa noite de chuva eu queria-te tanto, desejava-te como nunca te tinha desejado. Cada passo que dava na tempestade era um pensamento em ti. Cada gota que me tocava o rosto era a ausência de um beijo teu. Foi então, que no meu desespero, caí de joelhos na praia agarrando a areia entre os dedos e as palmas das mãos, esmagando cada grão com toda a minha força. De costas para o mar, chorei. Chorei como nunca o tinha feito antes, despejei a alma nessa noite, nessa chuva, nesse mar. Dos meus olhos outro mar brotou, um mar de recordações, como se cada lágrima tivesse uma imagem tua, uma imagem nossa que aos poucos se me escapava e se escoava pela noite invernosa. Depois, vazio por dentro fui para um bar encher esse meu buraco. Essa cova profunda enchi-a de cerveja e vinho. Cheguei a casa bêbado e encharcado quando o sol já começava a nascer. Adormeci vestido e sujo sobre o sofá, agarrando numa mão a única fotografia que trouxe depois de partir e te ter deixado. Mais tarde dir-te-ei qual é. Quando acordei escrevi-te uma das muitas cartas que te enviei, uma carta cheia de dor de cabeça, de ressaca e de fantasmas ainda acordados pelo álcool. Escrevi

Lara, onde estás?

mas regresso agora ao dia em que nos conhecemos, aos anos do Guilherme. Entretanto terminei o cigarro e vou bebendo o chá com um cheirinho de whisky, não te importas pois não? O whisky acalma-me, adormece alguns fantasmas que teimam em assombrar-me o espírito. Não sei se te recordas mas tinhas um namorado na altura. Terminaste de me contar a história da chuva e foste ter com ele. Mais tarde na festa apresentaste-mo. Era um tipo sério, demasiado sério. Mal me apertou a mão para me cumprimentar percebi logo que não era homem para ti. Deambulava pela casa sem interesse em nada, o oposto de ti. Deixaste-o tempos depois. Eu também andava com alguém nessa altura, a Patrícia. Soube que casou há pouco. Estivemos uns meses juntos mas depois ela cansou-se e disse que sem um amor verdadeiro não podia viver. Disse-me que não sentia da minha parte os sentimentos necessários para continuar comigo, mas eu julgo que ela decidiu deixar-me quando percebeu que eu tinha mergulhado em ti. Falava-me insistentemente de um amor verdadeiro. Perguntei-lhe então o que era um amor falso. Não respondeu, disse-me que eu era muito criança e foi-se embora a chorar batendo a porta com força. É estranho, mas não é a quantidade de tempo que se passa com uma pessoa que faz com que a conheçamos melhor ou pior mas sim pequenos momentos que revelam a sua alma em alguns segundos eternos. Estava enganado a respeito da Patrícia. Senti que tinha perdido tempo com ela. Não era totalmente verdade porque nunca se perde tempo quando se está com alguém mas, vendo bem as coisas, nada ganhei durante aqueles meses. Os bons momentos desapareceram e apagaram-se depois daquela cena insólita de choro e da porta a bater com um estrondo. Das vezes que a vi depois disso, um certo mal-estar instalava-se entre nós. Olhar para ela era como olhar para algo absurdo, algo que não pode ser real. Mas deixemos a Patrícia por agora, ela há-de voltar a incomodar-nos outra vez. Passada a festa foi preciso esperar uns tempos até nos encontrarmos novamente.

III
Sirvo-me mais um pouco de chá e de whisky e fumo outro cigarro. Sim tens razão, fumo mais que os três cigarros que disse. Estou um pouco cansado hoje. Ter escrito aquela carta, a última, ter recordado um pouco da nossa história, desgastou este meu coração de velho. Sou um trintão com um coração octogenário disse-mo o médico. Foi o amor Lara, o amor que sinto por ti que me consumiu o órgão, que me saturou os sentimentos. E também a culpa, os remorsos. Sempre me disseste que eu carregava peso a mais na alma. Dizias que era o talento, as mentiras e ainda um pouco de mesquinhez que me pesava na vida.
O talento. Escrevi poemas desde pequeno e a única verdadeira leitora que tive foste tu, sim disse verdadeira, não por gostares ou não gostares deles mas porque os lias inteiros com honestidade, não creio que tenha talento, saem-me, é um respirar diferente. Adoravas os meus poemas ocos. Eras tu própria que os descrevias assim, ocos e vazios como conchas abandonadas no fundo do oceano, mas que gostavas deles assim. Porquê procurar profundidade à força, perguntavas. Dizias que cavar não era próprio dos poetas, que os poetas não precisavam de pás para descer ao mais fundo que o fundo.
Mentiras. Dizias que eu carregava mentiras antigas e que por isso eu era agora incapaz de mentir. Nunca percebi bem o que querias dizer com isso. Ou talvez sim.
Um pouco de mesquinhez. Tinhas razão nisso. Ao teu lado eu era um tipo preocupado com coisas sem importância. Andava sempre tenso enquanto que tu deslizavas calmamente no tempo que passava, eras como a brisa. Depois com o passar dos anos fui acalmando graças a ti.
Como vês, Lara, estou um pouco cansado hoje. Vou descansar um bocado, vou acabar de tomar este chá morno com whisky e olhar pela janela o nosso mar que está ali, como sempre, na sua condição inexplicável de lançar e recolher as ondas. A primeira vez que o vimos juntos o céu estava azul, limpo, perfeito. Chegámos a esta praia e descalços corremos para a água. Gelada, era Inverno mas estava um dia perfeito, perfeito de sol, perfeito de azul, de limpeza, de luz. Um dia puro. Deste-me um beijo, daqueles que só tu sabias dar, beijavas-me a alma inteira com a alma inteira, o meu espírito com o teu espírito e beijavas o meu passado, o meu presente e como vês agora, também o meu futuro. Era simplesmente mágico. Eras simplesmente mágica. Mas estou cansado, vou dormir um pouco. Vou-me deitar aqui no sofá mas primeiro deixa-me terminar o whisky morno, depois lavo a caneca. Deixa-me deitar, tirar esta papelada aqui de cima e estender-me. Olho o tecto com a lâmpada pendurada por um fio velho, as cortinas estão a ficar sujas e a janela está ligeiramente aberta. Ouvem-se as ondas e o vento num concerto suave de fim de tarde. Essa música entra e desliza por entre os poemas que se espalham no chão, pelos jornais que se amontoam num canto e pelos livros que descansam sobre a mesa. Os olhos pesam-me, estou cansado Lara, estou cansado


...que fazes aqui tão perto de mim? Queres saber por que parti? Por que te beijei e parti? Nem eu sei bem. A Patrícia? Que interessa a Patrícia? A Patrícia não teve nada a ver com isto, sempre foi um vulto, uma alma sem interesse… lá está ela a bater a porta e aos berros, histérica. Porque não me respondeste às cartas Lara? Não podias? E o Guilherme? Que é feito dele? Ainda ontem éramos uns putos de férias à procura de aventura. Sim, sempre fui um tipo triste com culpas antigas e mentiras ainda mais antigas... sim, mentiras. Não, não quero falar disso agora. Que fazes aqui tão perto, como um fantasma, Lara? Que me queres dizer? Perdoas-me? Como te amo, eu...

terei sonhado? Sabe bem acordar ao som do mar. Não me adianta sonhar porque mal acordo esqueço o que criei na imaginação, não resta nada a não ser imagens trémulas e indecifráveis. Quando era miúdo não era assim. Passava-se exactamente o contrário, sonhava e relembrava tudo durante o dia, chegava mesmo a acontecer sonhar o mesmo sonho durante semanas, e ele ia avançando, como um livro que se lê. Às vezes até estava ansioso por adormecer e ir ter com as minhas histórias. Aliás, da minha infância só me recordo dos sonhos que tinha. Agora nada, nada de nada, o sono é escuro e apenas um salto no tempo. É um pouco de morte, sim é isso, um pouco de morte. Embora às vezes sinta que tenha sonhado, que algo se passou nesse momento de trevas.
Lara. O teu nome é bonito. Duas sílabas, sendo a primeira tónica, dá-lhe brilho. É leve, desliza na boca como um sopro, um suspiro. Murmuro… Lara. Um pouco como o teu olhar, brilhante e leve. Lara. Escrevo-o num dos muitos papéis que semeei neste chão, desenhando cada letra devagar e com ternura, Lara. Digo-o em voz alta, Lara.
Depois da festa do Guilherme reencontrámo-nos em tua casa numa feliz coincidência. Querias vender o teu apartamento e eu por acaso procurava um na altura. Acabei por arranjar outro mas foi assim que deu para trocarmos os números de telefone. Agora lembrei-me, por falar em telefone, que nunca mais ouvi a tua voz, desde que te beijei e parti. A tua imagem tenho-a na fotografia, o teu cheiro dentro de mim, a tua pele na minha loucura mas a tua voz era impossível guardá-la porque não se guardam milagres. Sim milagres, a tua voz era um milagre. Pelo menos durante umas semanas foi um milagre. Lembras-te? Aquele tempo em que eu fiquei cego? Depois de um acidente de carro, bati com a cabeça no volante e perdi a visão. Se não fosse a tua voz teria morrido ou enlouquecido. Mas isto está muito confuso, regressemos à segunda vez que nos encontrámos, à feliz coincidência. Foi uns tempos após a festa do Guilherme. Passeava pelo centro da cidade, junto ao rio que tanto gostavas, quando vi um letreiro “Vende-se” na janela de um apartamento. Apontei o número e acertei dias depois uma visita com a voz anónima do outro lado da linha, uma mulher. Fui vê-lo numa tarde de Verão, estava um calor abrasador. Cheguei ao prédio e a porta da rua estava aberta. Entrei e subi as escadas. Depois de bater tu abriste. És linda, relembro agora, vejo-te na minha lembrança como se estivesses aqui à minha frente, viva, linda. Tinhas aquela beleza que dói, que deixa um homem de rastos. São traços simples, suaves, infinitos. Olhei-te e apaixonei-me, ali, naquele abrir de porta, naquele teu sorriso, na surpresa indescritível que foi encontrar-te. Na festa do meu amigo não tinha reparado bem em ti, na tua beleza. Tinha-me já, é certo, perdido dentro de ti na história da chuva, mas o teu brilho não me tinha então ofuscado como o fez nessa tarde. Tinhas o cabelo solto, levemente ondulado sobre os ombros. Estavas com uma saia curta vermelha que assentava sobre as tuas pernas morenas e brilhantes e vestias uma camisa branca que desenhava a curva do teu peito. Estavas linda. Disseste

Pedro, que tal? Já sabia que eras tu, reconheci logo a tua voz ao telefone!

és assim, imprevisível, alegre. Já não me recordo o que respondi mas deve ter sido uma palermice qualquer para não variar, ao pé de ti ficava sem jeito, desastrado. Lá entrei, o apartamento já estava vazio, tinhas feito a mudança há pouco. Ao guiares-me pela casa contavas um pequeno episódio sobre cada divisão, sobre cada cantinho do teu lar, e de como tinhas um dia escorregado no corredor, como uma vez viste o vizinho a saltar da janela por ser sonâmbulo, como perdeste uns brincos na banca da cozinha... E eu lá ia ouvindo mergulhado em ti e na tua voz e no teu olhar e no teu corpo. Acabei por não querer o apartamento, era pequeno para mim, eu nesse tempo precisava de espaço. Agora não, como sabes vivo neste pequeno estúdio mesmo em frente ao nosso mar, estou agora na cozinha a lavar a chávena do chá. Mas isso não interessa. O que sei é que foi a partir desse dia que nunca mais me abandonaste a alma. Iniciámos uma relação de amizade, com alguns almoços, que depois aprofundámos com alguns jantares e idas ao cinema e conversas até de madrugada em cafés escuros da cidade. Falávamos de tudo, desde poesia às nossas profissões. Numa dessas noites intermináveis convidaste-me para ir a tua casa. Saboreávamos uma cerveja e conversávamos sobre música, quando sentada no chão da tua sala, olhaste-me nos olhos e perguntaste-me se eu me sentia atraído por ti. Endireitei-me no sofá e respondi que não. Levantaste-te e voltaste a perguntar. E eu respondi mais uma vez que não. Chegaste mais perto de mim e repetiste a pergunta novamente. Neguei pela terceira vez. Beijaste-me e eu disse sim. Regressaste ao teu lugar em silêncio fixando os teus olhos enormes em mim. Sentado no sofá disse sim mais três vezes. Sorriste a cada vez que o disse com esse teu sorriso mágico. Nessa noite não se passou mais nada, retomámos a conversa e a cerveja e mais tarde acabei por dormir no teu sofá. Na manhã seguinte quando acordei já tu tinhas saído. Sobre a mesa deixaste um papel que dizia

eu também
escrevi muito nesse dia, muitos poemas ocos. Tenho-os aqui comigo agora, reescrevi-os numa madrugada solitária e fria, reencontrei-os bem no meu fundo, no poço da minha memória, pois eles tinham-se perdido quando te beijei e parti, abandonados por mim. Tenho-os aqui escritos em papéis soltos, espalhados pelo chão. Queres que os leia? Não vale a pena, pois não? A primeira vez que te li um poema meu estávamos os dois um pouco bêbados. Foi numa passagem de ano, era também de madrugada. Lembro-me bem, estavas com aquele vestido preto que eu tanto gosto. Não sei porquê mas nós homens ficamos doidos quando vocês usam vestidos pretos, talvez seja a ideia inconsciente do luto, da morte, da provocação, sei lá... Somos todos um pouco pervertidos. Mas tu Lara com aquele vestido, meu Deus!... com aquele vestido ainda mais terrível se tornava a tua beleza. Beijava-te já no elevador do hotel quando me pediste um poema, agarrava-te os seios sob a seda negra do vestido quando insististe para que te lesse um dos poemas escritos nesse dia do teu papel do
eu também
entrávamos abraçados no quarto quando me obrigaste a parar para ler, e eu li, vasculhei nos meus bolsos e saquei os rascunhos amachucados e li ofegante e desorientado por momentos

sabes bem que um dia destes
o amor há-de ser
uma tarde quente no deserto dos meus versos

sabes bem que uma noite destas
o carinho há-de ser
a sombra do vulto que te abraça

sabes bem que na eternidade
a ternura se mistura
com as cinzas do que sonhaste

e li, e reli mil vezes como me pediste enquanto te despias, olhando o teu corpo nu coberto de penumbra, com o vestido a cair no chão, com o leve brilho do teu peito firme a revelar-se lentamente, com a luz ténue da tua pele morena a deslizar pelo ar tranquilo, e continuei a ler Sabes bem enquanto te aproximavas e me tiravas a gravata que já estava solta que um dia destes O amor e me desabotoavas a camisa há-de ser Uma tarde e me beijavas o pescoço e o peito quente no deserto dos meus e me abraçavas e arranhavas levemente as costas versos Sabes bem que uma noite destas O carinho há-de e me desprendias as calças e o resto e me deitavas sobre a cama ser A sombra do vulto que te abraça e me fazias amor com os olhos fechados de prazer e dizias para que eu lesse, que não parasse de ler mesmo se o papel já se tinha perdido nos lençóis, para que eu lesse no teu corpo o resto do poema oco Sabes bem que na eternidade A ternura se mistura e quase que imploravas para que eu lesse sempre e para sempre Com as cinzas do que sonhaste e eu li, li até cerrares ainda mais os olhos de prazer, e reli até não poderes mais cerrar os olhos, li até adormeceres sobre mim, alagada em suor e em beleza e li enquanto dormias. Foi a única vez que adormeceste logo após o amor.

Importas-te que vá despejar o cinzeiro? Aliás, daqui a pouco vou ter de sair para comprar um maço ou dois, mas não te preocupes, levar-te-ei comigo, é da maneira que olharás também o nosso mar. Mas para já ainda não vamos sair, para já estou aqui contigo, connosco. Estou bem aqui. Deixa-me voltar ao dia em que escrevi muitos poemas ocos, o dia em que me deixaste o papelinho a dizer

eu também

foi uma manhã estranha essa. Ali estava eu, sozinho em tua casa, sentado no sofá com o papel do eu também na mão, olhava para a janela por onde entrava uma luz imensa, vagueando na lembrança do beijo da noite anterior, ainda em dúvida sobre se tinha sido um sonho ou realidade, recordando o teu sorriso e os teus olhos sobre mim. Procurei papel e caneta, fiz um pouco de café e sentei-me à mesa de vidro que dava para a varanda. Escrevi

o desejo não é mais que um beijo
mergulhado num sorriso e num olhar nocturno
relembrado depois na luz duma manhã
nos reflexos e nas sombras de um poema
nas curvas estreitas de um verso
nos abismos e covas de uma palavra
na imensidão de uma letra

e na solidão tranquila
reveste-se de esperança e
é eterno

depois fui ao teu quarto, onde vi o lençol branco desfeito em ondas e remoinhos de linho, sobre a almofada uma camisa de dormir despreocupadamente pousada, no ar um leve perfume a noite fresca, o da tua pele que viria a descobrir mais tarde, à cabeceira um livro aberto pousado ao contrário e um candeeiro antigo e a tudo isto se juntava a simplicidade e nada mais. Eu olhava deslumbrado como quem olha o oceano pela primeira vez ou como quem escuta o vento numa tarde de Outono. Regressei à sala, à mesa e aos poemas ocos que escrevi, uns atrás dos outros até à hora de almoço.

IV
Vamos então sair Lara? Vou buscar os tais maços de tabaco, espera um pouco, é só pegar no casaco e num cachecol, sim, porque conheces bem a nortada que rasga aqui a costa, como pequenas lâminas que arranham levemente a face e lacrimejam os olhos com o frio. Mas ao mesmo tempo obriga a aconchegarmo-nos por debaixo da roupa, a concentrar o calor em lembranças, faz-nos sentir vivos. E tu Lara? Estás viva? É estranho mas aquele sono de há pouco deixou-me uma sensação esquisita na alma. Devo ter sonhado mas não me recordo. Mas vamos lá fora comprar os cigarros e espreitar o nosso mar. Lá está ele, ali do outro lado da rua, estendido até ao horizonte onde se erguem aquelas montanhas gigantes de nuvens. Recordo agora as tardes que passámos nestas praias, e claro, fere-me mais uma vez como uma faca na alma a imagem da tua beleza terrível, o teu corpo moreno e brilhante desenhado ao sol, o teu rosto e cabelo, os teus braços e o teu peito, a tua cintura e pernas. Mas não era propriamente o teu corpo que me entrava pelos olhos como relâmpagos, era antes o teu deslizar pela areia, o teu olhar imenso que engolia o oceano inteiro e sobretudo aquele teu sorriso, inundado em sal, cintilante, infinito e que tu soltavas alegremente a cada mergulho nas ondas. Deixa-me sentar aqui neste banco a olhar, deixa-me então misturar isto tudo com as lembranças e recordações do passado, com a esperança de te sentir viva, de nos sentir vivos outra vez. Beijei-te e parti numa noite de chuva Lara, e apesar das milhares de cartas que te enviei depois, nunca te cheguei a explicar porquê. Talvez esteja na hora de o fazer. É certo que será por pensamento, mas que local existe nesta vida mais honesto e verdadeiro que os abismos da nossa alma e as escarpas do nosso espírito? O difícil nisto Lara, é dizer-te a verdadeira razão pela qual parti. É que nem eu a sei verdadeiramente. Na véspera, se te recordas, passámos a noite juntos em tua casa. Lembro-me de te ver a olhar a noite pela janela como fazias sempre depois do amor. Tirando aquela vez no hotel nunca adormecias logo. Levantavas-te nua e leve e procuravas uma janela. Nunca te perguntei porquê, simplesmente ficava a olhar-te ou então adormecia. Talvez não haja explicação, tal como agora. Tal como tu te levantavas, eu decidi partir nessa noite de chuva. Juntei algumas coisas num saco, fui ter contigo, beijei-te e parti. Depois mais tarde já aqui junto ao nosso mar, vendi tudo o que tinha lá, a casa, o carro, os livros, foi o Guilherme que tratou de tudo. É um irmão para mim, pedi-lhe e ele fez, sem perguntas, sem hesitar. Fê-lo porque sabe que eu faria o mesmo por ele se mo pedisse. Cumplicidade Lara, só contigo e com ele pude sentir isso. Eu sei que não te estou a contar tudo. Talvez nem nos tais abismos da alma nem nas escarpas do espírito te possa contar tudo, pelo menos por agora. Talvez haja um lugar onde o possa fazer, sem medos, sem remorsos, sem culpa nem mentiras. Nos versos quem sabe?

Sim, talvez nos versos. Ou nem mesmo aí, porque se calhar nem eu sei bem porque te beijei e parti. Fazemos coisas por vezes porque nos é ditado por dentro sem sabermos por que voz. E há tantas vozes por dentro, como saber quais seguir? Mesmo agora que recebo o troco do tabaco, o que faz com que a minha mão se abra e receba estas moedas e as leve ao bolso? O que faz com que cada trago do cigarro aconteça e o que faz com que eu veja a brasa a recuar para mim, até à beata presa por entre estes dedos? Estes dedos que te desenharam mil vezes no escuro das nossas noites. Lara, meu amor, que história é esta a nossa que não se cumpre? Ainda tenho tanto para nos recordar antes de me calar de vez, e tantas coisas também para te contar desta minha solidão. Tenho encontrado algumas pessoas nas minhas saídas por aqui. Sim, vou saio de vez em quando, passeio ao lado do mar ou entro num café não mais que isso. Mas encontro gente e converso com alguns. Gente que me povoa as noites sem ti, que contam coisas. Tanta gente que tem coisas para contar. Muitas delas também partiram de um outro lugar e muitas delas como eu recordam. O presente tornou-se a visita da memória para eles, mesmo se a semeiam de uma qualquer imaginação que vai moldando novas memórias de coisas que afinal nem aconteceram. Mas o que é isso "de facto"? Ao tornarem-se lembrança é como se tivessem mesmo acontecido. Será a nossa história assim? Alguém nos escreve para que possa ser verdade? Lara, minha Lara, estou de novo um pouco cansado hoje.

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