Lendo

Terminei Promessa. Com A Curva de uma Vida, cumpri duas leituras de inéditos de VF. Promessa é um romance no início de um autor maduro, enquanto que a novela é de um VF muito jovem com rasgos de ingenuidade. Mas em ambos já se descobrem ecos do tom futuro do autor. A Quetzal continuará a reeditar a obra de VF, eu farei o meu papel de (re)leitor. Em mim, VF actua em duas formas: na minha entrega total enquanto leitor e numa amargura (quase total) do adiar da minha escrita, é que VF escreveu no ritmo certo do meu próprio espírito.

Era quase bela e talvez por isso mais atraente, como maillot que quase despe a mulher a enriquece de desejo, ou como um livro que quase diz tudo se torna mais interessante.

Detesta o cepticismo porque leva à tolerância. O homem virtuoso é implacável.

- Qual matar a sede, qual cabaça! O homem não quer matar a sede. O homem quer é a sede. Por isso é que come tremoços quando bebe cerveja.

- Extraordinária coisa: o homem tem centenas de milhares de anos. Mas cada homem vive apenas vinte, mesmo quando dura oitenta: nos primeiros trinta aprende a falar, nos vinte seguintes fala e depois resmunga. Pois nos vinte anos que vive, procede como se vivesse milhares. Num ponto da evolução da humanidade, ergue-se um homem e chama a si, a sério, a responsabilidade dos milhares de anos passados e futuros. É lamentavelmente cómico.

Senti-me dobrado por uma raiva potente. Cerrei os olhos. Apertei os dentes. Disse depois a frio:
- Você o que é é um corbade.
A pancada atordoou-o. Levou tempo a recompor-se. Como um sonâmbulo, ergueu-se e veio descansar um braço no meu ombro:
- Isso de cobarde deve ser o mais certo de tudo o que disseste, meu jovem.
E saiu sem mais palavra.

Olhei-o assombrado e entendemo-nos profundamente. Entendi eu que o ver-se deposto dava a Sérgio umprazer derrancado. Era a espora de um desejo que precisava de regressar-se a uma violência desconhecida. Segurei Sérgio pela lapela, enterre, pelos seus olhos dentro, os meus olhos iluminados e pus-lhe no fundo da consciência uma pergunta a que ele veio a dar uma resposta quando morreu:
- Como não compra um revólver?

- Tem. Mas veja. Uma vez edmundo disse que não há gota de filosofia que não se esprema com acção. Penso que isso é exacto. Mas incompleto. Falta dizer: e que não esprema acção, própria ou alheia. O senhor julga que pode viver no mundo impunemente. Julga que pode brincar às palavras. Pensa que dizendo o que lhe apetece, isso morre no instante em que o diz, ainda mesmo que o fundo disso que diz seja a negação da acção. Como se engana, Sérgio! Uma palavra que seja, largada de nós, é o que alguém dizia, creio que a outro propósito, "uma espingarda carregada". Se você não dispara, outros podem tomar a espingarda e apertar o gatilho. Foi o que aconteceu.

Desarmado, não terei palavras mais rápidas do que as balas
que vão sempre dizer adiante o sítio das palavras.

No entanto, meu amigo, foi pena que não vivesses. Porque aconteceram, meu sérgio, coisas bem extraordinárias desde o dia em que morreste. Mas a terra chamava-te, apressada, para que subisse da tua podridão a prometida flor que havia nela, e que tu sempre negaste. Porque em todo o teu desvario como no dos teus amigos vivia justamante a promessa do mundo que veio nascendo; como em tudo o que apodrece se promete a verdade de um fruto novo. Por isso, sem mais uma palavra, aqui te deixo, em sossego, com a terra que te cobre.
Dorme em paz
.

1 comentário:

Telmo disse...

Filipe, depois do episódio Laginha + Saramago, durante o Alemanha-Espanha, decidi começar a ler o "Caim". Nunca tinha lido Saramago, e se o resto da sua obra for assim, como estou a lê-la, ou melhor, a devorá-la, vou ter de gastar dinheiro! Fica uma amostra, ao jeito daquelas que deixaste aqui sobre VF...

"Que queres, perguntou outra vez o querubim, que pareceu não perceber que a reiteração iria ser interpretada como um sinal de fraqueza, Repito, tenho fome, Pensei que já estaríeis longe, E aonde iríamos nós, perguntou eva, estamos no meio de um deserto que não conhecemos e onde não se vê um caminho, um deserto onde durante estes dias não passou uma alma viva, dormimos num buraco, comemos ervas, como o senhor prometeu, e temos diarreias, Diarreias, que é isso, perguntou o querubim, Também se lhes pode chamar caganeiras, o vocabulário que o senhor nos ensinou dá para tudo, ter diarreia, ou caganeira, se gostares mais desta palavra, significa que não consegues reter a merda que levas dentro de ti, Não sei o que isso é, Vantagem de ser anjo, disse eva, e sorriu."