regressos

o vulto que vamos sendo na silhueta que nos calha
vai roendo o murmúrio que arde furtivo e lavra por dentro

e quando a poesia não chega
ela escreve-se sozinha
nasce nas catacumbas da alma
medra até se revelar ao espelho que nos devolve o ser

e diante desse pesadelo ou abismo
tudo se sabe
e só se acorda quando nos lançamos
como se na vertigem dessa queda regressássemos a nós
mesmo quando os regressos são obra de toda uma vida

Delírio

Entrou decidido e sentou-se à minha frente. Não o reconheci. Começou a falar enquanto eu bebia a última cerveja. Já antes dele entrar, essa decisão fora por mim tomada. Uma última cerveja, fosse qual fosse o desfecho.

O que dizia eu não percebia bem, mas evocava gente toda vestida de igual que se juntava para escrever.

Sobre isto, sim, eu já ouvira falar e testemunhara da veracidade da coisa. Não era incomum, perto da hora do fecho, gente igual à que ele descrevia, entrar pela porta do bar, afundar-se numa das mesas escondidas num canto e conspirarem umas quantas coisas impercetíveis.

Lá continuou mais algum tempo, ofegante, até se despedir, levantar-se e, tão decidido como chegou, sair.

Terminei a cerveja, quente e murcha. Paguei. 

Cá fora, no caminho de regresso a casa, apercebi-me de que estava a ser seguido. Estas coisas sabem-se, as sombras e os olhares emanam um peso impossível de velar.

Na esquina seguinte, escondi-me, esgueirei-me por detrás de um contentor do lixo, perscrutei e confirmei. Eram três homens, vestidos de igual, farejavam o meu caminho agora oculto. Deixei-os afastarem-se um pouco e arreei caminho. Mas eram quatro, afinal. Esse com o qual não contava, encostou-me à parede, imobilizou-me e chamou os camaradas. Não lutei. Levaram-me até um prédio abandonado do outro lado da cidade.

Lançaram-me numa cadeira velha. Havia uma mesa, um lápis e umas folhas em branco. Os quatro vestiam um fato preto, uma camisa branca coçada do uso e uma gravata negra e fina com um nó mal-amanhado e meio aberto no tiracolo.

Escreve, disseram.

Não questionei, escrevi, horas a fio.

A sala situava-se numa cave, havia uma janela corrida que dava para a rua, uma luz baça de candeeiro noturno era coada pelo vidro fosco. Os quatro olhavam-me, imóveis. O tempo foi passando, a primeira página redigida, virei-a, continuei.

Um deles saiu pela porta de ferro, quando voltou, trazia uma garrafa de água. Bebi e retomei a escrita.

Dei por mim num daqueles momentos de saber e não saber, como quando se falha e se acerta e, ainda assim, se insiste no erro do costume mas esperando um desfecho diferente. Enquanto escrevo, aceito a receita de enlouquecer, que não há outro caminho que não o da loucura, da entrega total a um instante e assim perpetuar um devaneio. Refugio-me na pele do momento, porque enquanto estas coisas sucedem, não sucedem outras e assim vou adiando o futuro e uma inevitabilidade.

Quando me começa a faltar a inspiração, lembro-me de um professor que tive. Recordo o ar tresloucado e os poemas que declamava a cada início de aula. Fazia-o numa língua que ninguém conhecia e onde cada verso rangia por entre os dentes e um rastro de cuspe e quase sangue desenhava-se nos lábios. Dizia que seria bom haver uma guilhotina à entrada da escola, que não funcionasse, obviamente, mas que se erguesse simbolicamente para que cada aluno e cada professor não esquecesse nunca que entre as profundezas da terra e o firmamento, há sempre cabeças prontas a rolar, eram as palavras dele após esses poemas iniciais. Lembro-me também do conselho que nos dava de cada vez que a mudez da vida se abatia em nós. Olhava-nos com o rosto sério e perguntava, quando não tenho nada a dizer, o que digo? E insistia para que colocássemos essa questão até ao infinito, até que as palavras se esgotassem, até que o silêncio tudo cobrisse com a quietude imensa que o sustenta. E rematava, Prometo-vos, meus caros, que após esse silêncio, alguma coisa irão de dizer, seja uma torrente infinita de coisas, seja um soluço tímido. Em ambos os casos, após tudo isso, podem sempre repetir a pergunta.

Agarrei-me a essa sabedoria e quando parecia que nada mais tinha a despejar nas folhas que se acumulavam à minha frente, lá ia escrevendo. Um pouco mais, palavra a palavra.

As horas passavam e do vidro fosco chegava agora uma luz de nascente, subtil ainda, mas com o prenúncio da manhã. Os meus quatro anfitriões mantinham uma postura grave, concentrada. Aos poucos, reparei que esperavam alguma coisa, ou alguém. Dava para notar, que afinal, tal como eu, desempenhavam um papel a mando de alguém.

Arrependo-me não ter questionado o meu primeiro interlocutor, talvez soubesse mais do que disse, talvez, quem sabe, até soubesse como escapar.

A porta de ferro abriu. Entrou uma mulher, também ela vestida com o mesmo fato, a mesma camisa gasta e o mesmo nó de gravata mal feito pendurado no pescoço.
Pode parar de escrever.

Pegou nas folhas, colocou-as dentro de uma pasta velha que trazia. Saiu.

Do outro lado da porta ouvia alguém a ler. Não sei se era o que eu acabar de escrever ou se uma outra coisa. Os quatros saíram também. Fiquei sozinho e talvez nunca tenha ficado tão sozinho como agora. Impossível esgueirar-me pela janela corrida junto ao teto. Havia que esperar.

Quando a porta voltou a abrir, regressou a mulher. Olhou-me, explicou-me que a solidão é uma queda interminável, que se nota na minha escrita um tempo cansado onde há muito navegam as palavras sem rota nem rumo.

Ao dizer-me estas coisas, senti o corpo a escapar-me, a cadeira a dissolver-se sob o peso da minha atenção, toda a sala nesta cave a evaporar-se. Dei comigo a acordar, de regresso ao bar, no meu canto e mesa do costume. A última cerveja multiplicada e o dono a querer fechar.

Perguntei-lhe se alguém se tinha sentado comigo. Respondeu que não, que nunca ninguém se senta comigo, que eu é que, às vezes, incomodo as pessoas. Pedi desculpa, paguei e sai.

Ninguém me seguiu até casa, só a minha sombra, essa sempre fiel. Até ao dia, quem sabe? Poderá haver uma noite que nem ela me acompanhe e que no meu regresso a casa, ao passar pelo prédio devoluto onde na cave se juntam os loucos escribas, nem penumbra eu desenhe no passeio. Talvez eu me deite no chão, junto à janela corrida que dá para a cave soturma e espreite lá para dentro. Pode ser que me veja, sentado, detido e obrigado a escrever. Pode ser que esse eu me olhe de volta, se aperceba da redundância, que olhar um louco nos olhos é inútil, a loucura arde para além da realidade, ela lavra no entretanto da eternidade.

Estas coisas são o que são, pairam no limite do relato e no limite da verdade. Há muito que vivo estes sonhos, que os caminho até à exaustão, até ser dia, até ser hora da medicação.

Ouço os enfermeiros a chegarem, entram pelo meu quarto, dizem que passei a madrugada muito irrequieto, que sendo assim, vão aumentar a dose.

Sorrio, rendido, quando a ponta da agulha desaparece pela veia.

Pergunto-me, ainda antes de desmaiar, que delírio me irá calhar a seguir.

de novo

vamos de novo
meu amor

falar-te do assombro que há mil noites despontou quando te vi pela primeira vez
esse mergulho para lá de mim numa sede que soube desde logo ser insaciável

porque nisto da paixão há uma ânsia feita de fogo que lavra loucamente
como se as chamas ardessem até ao âmago de todas as coisas

e recordo que no labirinto dos teus caracóis vagueei até à orla da madrugada
onde caímos numa cadeira um sobre o outro
e das cinzas dessa noite renasceu a fénix para todo um futuro de incêndios

polaróide

enquanto o meu café inverna definitivamente
os corvos
esses pássaros enlutados
soluçam pela manhã a preto e branco

antologia

sobra pouca coisa da tua poesia
revisitaste os cerca de seiscentos e oitenta poemas dos últimos trinta anos
voltaste a eles com a sede de sempre e saciaste-a como pudeste

estão feitos
organizados
sepultados finalmente em compêndios
já não são teus

(a prosa
essa ainda cavalga selvagem nas planícies adiadas)

o que resta de versos ou se perdeu ou não arde o suficiente para que te queime a alma

mas há o silêncio infinito do futuro por navegar
madrugadas como jangada
e palavras como naufrágio
resta-te embarcar ou fazer de conta


desígnio

meu amor
no silêncio sigo-te quieto
e no escuro sem ver
vejo-te ainda assim
como se o teu desenho se revelasse por entre a penumbra
e a silhueta que és vai saindo da cama em direção à porta

antes do teu regresso
o que é nosso paira sobre o quarto
e dura uma madrugada
ou um sonho febril

quando voltas
e o leito balança como quem entra num bote
desatracamos de novo e rumamos pela noite

sem compasso nem bússola
sem estrelas nem destino

navegar é já de si um desígnio

Gilreu


a pedra à deriva
mas sendo âncora

ao largo
perto e inalcançável
feita de utopia

um horizonte em si mesmo
Camelot oceânica

Chamem-me Ishmael


Pelo menos em Março de 2011, já eu tinha iniciado a leitura de Moby Dick na versão original. Um ato que não pensei durar mais de uma década, mas que quase de imediato soube ser uma loucura.
Na minha vida de leitor, recordo apenas um livro que comecei e não terminei (Ulisses de James Joyce, também na versão original).
Moby Dick, a bem ou a mal, eu decidi, desde cedo, que iria lê-lo de uma ponta à outra, nem que para isso me afogasse. E afoguei-me várias vezes em interrupções sem conta.

A imagem acima foi ontem à noite, regressado de uma ilha, com o livro na mão e finalmente lido. Agosto de 2024. Pelo menos 13 anos de leitura.

Das centenas de capítulos e páginas, ficou-me um infinito de léxico marítimo por decifrar, fiquei-me pela intuição do que podem significar, um périplo de um barco e de uma tripulação, de seres marinhos, de horizontes sem fim e ondas do tamanho de catedrais. Ficou também a sensação de que as noites em mar alto são de um breu extremo, que mesmo alumiadas por lamparinas a óleo, essa luz tem negrume e a humanidade move-se por sombras tão densas que nem uma centelha faísca.

O que me fica também é o sabor a sal e a noção exata do que é uma obsessão.
A obsessão como fatalidade.
Seja a do autor que se agarrou à escrita, nota-se que exigiu uma entrega maníaca, uma teimosia irredutível, seja à minha leitura de náufrago, que engoli a espaços de meses e meses sem vir à tona, seja  até à loucura de um homem, um capitão numa perseguição compulsiva em busca do que ele julgava ser uma vingança mas não era mais que o reconhecimento de uma inevitabilidade.
Foi-se o barco, foi-se a tripulação e um homem amarrado a uma baleia branca, caindo nas profundezas oceânicas. Sepultados todos num fado inexorável.

Sobreviveu Ishmael e o relato.

Chamem-me Ishmael.

intento

quando parecia que as palavras tinham ido de vez
que não havia mais nada a dizer
ou que o que havia a dizer não sabia como ser dito
ao largo surge o navio que é a poesia
de destino traçado em naufrágio certo
perdição e desencontro

mas nesse desterro
ainda assim
nesse fim submerso e silencioso
na vertigem final do derradeiro verso
há um regresso a casa
um lar primordial
o retorno a um lugar onde nunca estivemos
e que no entanto nunca deixámos

e nesse afogamento
a sede de infinitos não se mata nunca
porque a ânsia de vales e montes
de mares e marés
de céus e madrugadas e de cosmos é insaciável

até mesmo para lá do último sopro
para lá do último sonho
reverbera um intento insondável e indomável

o velho com amnésia

não me lembro daquilo que esqueci
e busco por entre o labirinto da amnésia
a memória de uma coisa qualquer que se me escapou

talvez não por completo
mas ainda assim pressinto que uma boa parte se foi

não sei se é irrecuperável ou se pode renascer
se pode de novo atear o grande incêndio que sei ter lavrado antes

quando vou lá atrás e vasculho
quando mergulho as mãos nas gavetas e recolho os cadernos
e os abro e atiro os olhos às leituras
revejo palavras que escrevi
dedicatórias que fiz outras que acolhi
e ainda assim não me lembro daquilo que esqueci
como se já não houvesse chão para esses passos 

eu amei fui amado
eu desamei depois
com afinco e dedicação pelo meu alienamento de ser tudo tão plenamente que acabei por ser outra coisa
e sendo outra coisa não fui mais o que tinha sido

Pico


passaram alguns dias
e de volta à rotina
habita-me ainda o assombro daquele lugar

não é só uma terra dos sonhos
é um universo paralelo
um sítio para lá do aqui

uma embriaguez e um enlevo
uma miragem magnética cuja vertigem é um doce atordoamento

está ali um monte no meio do Atlântico
e todo um derrame de lava petrificada a cair sobre o mar
no céu desenham-se voos de cagarros e outras aves
nas águas vários cetáceos em torna-viagens  
em terra há gente que luz orgulho na voz e nos olhos
e vinha nascida de um milagre contínuo

um paradoxo de irrealidade
e a certeza de que é inevitável o meu regresso
seja em carne e osso no futuro
ou em pensamento para sempre

nunca nada é sempre tudo

nunca nada é sempre tudo
nem tudo tem de ser sempre alguma coisa

e neste aparente nó edifica-se uma forma de se estar
estoica e serena
porque vamos estando em cada momento

e navegando entre vários esquecimentos
à deriva entre olvidos
de pouco servem certezas absolutas cheias de teimosia

não significa isto que não se nade nesse mar
somente se entende que não basta esbracejar
para não se morrer afogado

um poema que é mentira

um poema que é mentira
pois não se agarra o que é autêntico
ele tem coordenadas presas ao tempo
esculpido em cronos
feito pó poeira e bruma no instante seguinte

um poema que é mentira
como o são todos pois vivem na memória etérea
nas ruinas de uma lembrança

versos que não são mais
mesmo que lidos de novo porque a voz faz-se eco
e o eco extingue-se em murmúrio

poesia que é dúbia
que as certezas são feitas de ilusão

um poema que é mentira
num mundo de tanta verdade
resiste no embuste como símbolo solitário de exatidão

um poema que é mentira
e por isso
livre

ainda não acabei

Manuel Cruz

mergulha-se
e no simbolismo navega-se à flor da alma
contra as correntes e os ventos
ou naufraga-se que no fundo vai dar ao mesmo

já se disse antes
um náufrago não deixa de ser marinheiro
e quem sabe se não é o maior dentre eles
como são poesia os silêncios entre as palavras
ou como é saudade o nó que aperta mesmo antes de se saber do que se sente falta
ou são premonições os sonhos febris nas noites de verão

o que sobra

disse-me que desconfiava
que seguramente eu tinha escrito naquele dia derradeiro
que
conhecendo-me
não seria possível que eu não tivesse escrito

pode ser que tivesse razão
mas eu não confirmei

escrever está para lá de mim na verdade

basta uma melodia a pairar e uma madrugada pela frente
e é sabido
que melodias e madrugadas não faltam
nem palavras nem coisas a dizer

o que sobra é a dúvida de uma leitura
porque um verso trinca-se até que sobre somente silêncio e um pouco de saliva nos lábios

um poema estava escrito

e a voz dela desceu como o sol nas tardes intermináveis de outono
feita de veludo e de abraço felino
um afago com acorde de piano

de pé olhava-a deitada no sofá
o mar a entrar pela janela infinita
a banhar-lhe a almofada de caracóis
os barcos ao largo num balanço subtil
voos de gaivotas no alto de um céu malhado aqui e ali de nuvens passageiras

o tempo a passar devagar
e as orquídeas eternas em em flor
os livros nas estantes a sussurrarem
um caderno sobre a mesa à espera de um verso

fiquei
aguardei que viesse

quando chegou
trouxe vários
e à mesa ficámos enquanto ela dormia

já não sei se bebemos ou se escrevemos
mas no fim
quando a noite já chegara
um poema estava escrito


a sede

bebe até a sede voltar
uma e outra vez
como uma obsessão
e onde saciar é o verbo definitivo e também impossível

uma sede que não se mata
e que insiste em não morrer

a solidão

num dos inúmeros inícios
quando os primeiros seres se refugiavam em cavernas
pintavam o universo nas paredes
tatuavam
com lama carvão e sangue céus e horizontes
ardiam em sonho e alucinações todo o real
nasciam e morriam nesses incêndios dentro dessas mesmas grutas
nunca de lá de saiam de verdade

desconheciam que a morte quando chega
chega para todos no mesmo exato momento
que é quando o tempo se esgota e acaba

e eram ignorantes de que a única escolha que todos temos
é a de poder morrer agora ou morrer mais tarde
não existe outra

e de tão solitários serem
tão abandonados nesses incêndios do espírito
tão órfãos de deuses e de esperança e de acasos
descobriam a solidão em todo o seu esplendor
não tinham a quem rezar
pois eram eles os deuses e as esperanças e os acasos

quiromante

o que pareciam ser vales imensos
eram tão só rugas na mão de um gigante

por esses desfiladeiros errou o poeta durante mil ocasos e mil auroras
desbravando madrugadas 
batendo trilhos
cruzando margens e escalando montes
teimando por caminhos encarquilhados
até às falésias derradeiras

no fim
na foz de tudo isso
na praia do cansaço e da rendição
já lhe lera a sina inteira

o acordo tácito da poesia

talvez tenhamos que rever a idade das coisas
recontar cada instante de novo
acautelar instantes que se nos tenham escapado
e fazer as contas uma vez mais

pelos vistos falta tempo ao tempo para explicar a existência de factos consumados

as palavras provavelmente são insuficientes ou limitadas
e as interpretações ganham vida própria

aliás
aviso
que cada leitura se faça por sua própria conta e risco
este é o acordo tácito da poesia

não culpem a voz nem lhe deem graças
os versos ficam órfãos a cada novo silêncio
são lobos solitários que uivam e uivam até a própria lua não caber mais no céu

em que

encerremos
cubramos com um véu ou manto
este horizonte inalcançável

deixemos que se extinga o suspiro do cansaço e do abandono

que o mar se estrele em mil sóis e bambeie num ondular sereno
e que o sono venha aos poucos e de soslaio

e que quando chegue
a memória se esfume no instante exato em que

pelos versos que escrevo desde sempre

é sempre assim
no limite da noite
naquele momento que passa a instante
no lugar ligeiramente ébrio das coisas
é aí que aqui chego

e chego inteiro e nu
despido de tudo e cheio de nadas

atabalhoado no explicar do que sinto
mas sobretudo do que quero dizer

mas não quero dizer nada
sinto somente
comungo

e para ser sincero
tudo isto resume-se a uma coisa

sinto a tua falta hoje
porque estás em Paris

fico-me pelo teu cheiro na almofada
e pelos versos que escrevo

pelos versos que escrevo desde sempre

tu

em tempos demorei-me no teu pronome
resvalei por essa silaba em tua busca
com a sede toda do meu amor por ti

disse-o em voz baixa na sala silenciosa da madrugada
ensaiando uma tua aparição repentina

escrevi-o milhares de vezes
repetindo-o até me doer a mão e o punho

quis tatuá-lo discreto no meu corpo
ele que se me coseu nos lábios e língua e que me incendiou os olhos

esse teu pronome
tão teu que contigo se confunde
como se já fosses também

tu

nos silêncios densos da solidão

então
fazes escala entre palavras
voas nos silêncios densos da solidão
e aí quando não há alma que se aviste
e somente o eco quieto do abandono ecoa
encontras-te de novo
e de mãos caídas sobre a noite
os olhos a vibrar pelo infinito
mordes esta coisa de estar por aqui
sangras-te e salivas com o espasmo a percorrer-te o ser
não podes estar mais vivo nem mais poético do que agora

mesmo quando o agora dura um nada

foi preciso

ao silêncio do qual nunca saíste
chegaste uma noite sem o saberes
foi numa madruga precisa de solidão em que o teu cansaço venceu e desmoronou-se num sofá

dormiste caído e abandonado pelas sombras

o vento louco lá de fora a rasgar a noite
uma manta imensa de nevoeiro a emudecer a janelas

foi preciso uma tempestade e o mar virado do avesso
para que naufragasses uma vez mais
dando à costa da quietude
moribundo
reencontrado e reencarnado

Confrade

Da gratidão.
Ao Douro, essa " beleza absoluta", às suas gentes e ao Vinho, ao do Porto em particular, o melhor de todos.
À família, aos meus.
Ao Amor, a ela e seu sotaque e seu calor.
Mas, também e sobretudo, a algumas pessoas concretamente. À Ana, ao Euan, ao Pedro e à Isabel, primeiros e decisivos mentores no trajeto profissional, que de trabalho passou num instante a paixão.
À Symington, a minha casa.

Por fim, o brinde como Confrade:

Pelo Vinho do Porto, pela Confraria, pelos Confrades.
Obrigado.


Grateful.
To the Douro, that "beleza absoluta", to its people and to the Wine, Port in particular, the best of all.
To my family, to my kin.
To Love, to her and her accent and her warmth.
But, also, to some specific people. To Ana, Euan, Pedro and Isabel, the first and decisive mentors in my professional path. A job turned into passion in an instant.
To Symington, my home.

And finally, the toast as a Confrade:
For Port Wine, for the Confraternity, for the Confrades.
Thank you.

De la reconnaissance.
Au Douro, cette "beleza absoluta", à ses habitants et au Vin, au Porto en particulier, le meilleur de tous.
À la famille, les miens.
À l'Amour, Elle et son accent et sa chaleur.
Mais, aussi et surtout, à certaines personnes. À Ana, Euan, Pedro et Isabel, les premiers et décisifs mentors de mon parcours professionnel.Le boulot viré passion en un instant.
À Symington, ma maison.

Et enfin, le toast en tant queConfrade :
Pour le Vin de Porto, pour la Confrérie, pour les Confrades.
Merci.

reencontro

pela manhã quando faz sol e é feriado ou domingo
noto que as gaivotas gostam de repousar na relva das rotundas pequenas

passo e contorno e elas lá estão
de penas viradas ao centro
alheias aos carros debicando ervas e feixes de luz

até que voam quando regressa o trânsito ou a segunda-feira
desconhecendo que não passou tempo algum entre o último verso e o primeiro
que o que brota nem sempre se manifesta em palavras lidas
que aquilo que não é revelado é tão mais imenso quanto o que acaba por surgir

nem tudo o que escrevo é para aqui chamado
nem sempre é um feriado ou um domingo de manhã
muitas vezes faz noite
e é tão densa que por muito que nela entre
fico à tona
na borda da madrugada
observando de fora
não sei se a espiando se ela me espiando a mim
queimando a insónia mesmo que dentro do sono
porque os sonhos são tão reais que queimam os olhos e a mente

o que aconteceu até agora
desde o último silêncio
foi só uma eternidade que se calou
ou que se declamou numa das muitas gavetas com cadernos que de tão cheios e inúteis mais sentido fariam se estivessem vazios e mudos

enfim
as rotundas pequenas estão vazias de novo
as gaivotas voam longe
e quem sabe
talvez te reencontres por aqui


perguntas

por onde andam os gestos e suas sombras
resvalam eles pelos beirais da rotina
sorvidos pelo tempo e a apatia?

revelam-se numa manhã silenciosa?
já sendo passado e futuro
tendo o presente inexistido?

são ecos imperceptíveis de algo esquecido e nunca lembrado?

serão prescindíveis na eficácia que exige o real?

rumo

caminhar
de esquecimento em esquecimento
até nada lembrar

caminhar sempre
para que a memória desista
para que o passado se esfume
e pela frente restar somente o rumo

geografias

entre cada verso
o silêncio definitivo
vencido uma e outra vez até nos calarmos todos lá longe no infinito

palavra
grito
grunhido
uivo
saliva

são as geografias da poesia

palavra no horizonte calmo da manhã
grito no zénite da canícula
grunhido no arrastar da tarde
uivo no luar quieto da noite
saliva espessa nos pântanos da madrugada

a tua ilha no meu mar


a tua ilha no meu mar
curva num horizonte sem lua
erguida como a encosta de um rochedo
teu sono e meu velar
no silêncio das falésias definitivas
meu mergulho adiado
preso ao deslumbre por um fio tão fino que me despenho já
que me precipito sempre
irremediavelmente pendido
sorvido pela lei da tua gravidade
pelo canto do teu sono de sereia

a tua ilha no meu mar
eu submerso de ti
a dar com a maré baixa da tua praia
teu marinheiro
teu náufrago