nunca leio o que escrevo

faz do gesto algo perfeito
como um acorde de piano exato numa madrugada
ou uma onda de inverno numa daquelas praias infinitas

lentamente no íntimo dos murmúrios noturnos
espera que se revele o verso definitivo do que ouviste lá longe
e deixa que pelos nevoeiros frios
corram desvairados os cometas forjados pelo cosmos
lê-lhes os rabiscos de faúlhas nas fendas do firmamento
conspira para que os milagres se anunciem
e os barcos possam desatracar e partir enfim rumo ao naufrágio inevitável

inspira-te no velho poeta que inventaste e que disse

não posso escrever sobre o medo enquanto o medo se revela

impõe-se um certo decoro durante o bolero das vertigens
e há que ter pudor quando alguém aterrorizado ainda não sabe bem que o está

por isso
antes de cada palavra e de cada verso
fecho os olhos
e nunca leio o que escrevo


 

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