o homem da paragem

já o tinha visto algumas vezes
mas hoje
pela primeira vez
decidiu falar sozinho enquanto o autocarro não chegava

à espera na paragem
estava ele
eu um pouco mais afastado
e uma senhora sentada

o homem vestia um fato preto com uma gravata desalinhada na camisa branca já gasta
tinha uma pasta na mão e uma gabardine sob um dos braços

luto sem outro corpo para destruir que não o meu
e na dor dessa violência enterro a dor verdadeira que nunca é minha por inteiro
diluo o amor pelas coisas simples que a vida me dá
bebo para entregar a alma
e órfão dela levanto num voo solene feito de sombra
deixo para trás a carcaça que eles já não podem explorar

enquanto falava abriu a mala e ia deitando no lixo da paragem
papéis rabiscados de uma letra ilegível

eles obrigam-me a escrever todas as noites
atiram-me para uma sala e forçam-me a versar até que a madrugada se esgote
e no fim quando já não me restam palavras
roubam as que eu despejei e atiram-me de volta para a manhã

sentou-se ao lado da senhora e continuou

mas hoje não
hoje um pouco antes do sol raiar
parei de escrever e saí da sala a correr
atirei-os ao chão e libertei-me
disparei pela rua e só há pouco me apercebi que tinha trazido a mala a gabardine e os versos desta noite

parecia enfim descansar
o autocarro espreitava já ao longe no fundo da estrada

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