o silêncio que se diz

gerados nas estrelas
na combustão silenciosa do cosmos
num oceano de forças incomensuráveis
na origem do próprio tecido do espaço
e do tempo

resultado de um acaso
seguidor das regras imutáveis da ciência
essa religião caótica cujos dogmas se aniquilam entre gerações

chegar a este momento
a este espaço em branco
é um milagre inexplicável

a poesia é tão só
um eco das explosões celestiais do antigamente
um antigamente tão distante
que tornava impossível a leitura inicial
as letras eram do tamanho das galáxias
e os nosso olhos menores que átomos

o livro não tem grandeza perceptível
os versos são como raios estelares
lançados à velocidade da luz rasgando todo universo
de ponta a ponta
sem início
sem fim

já o escrevi antes

a poesia é o silêncio que se diz

O Medo de Al Berto

Já não me recordo quando encontrei Al Berto e as palavras dele. Lembro-me, isso sim, do fascínio que sentia de cada vez que via "O Medo" numa livraria. Um calhamaço com um título aterrador. É certo que se trata da antologia da obra poética do autor, isso explica o calhamaço, mas um título assim só se explica pela ousadia e coragem de quem sabe que escrevia a sério. Qualquer um pode escrever, mas dar títulos assim tão reveladores, tão exatos, tão finais, tão carregados de infinito, não é para todos. No fundo, há que merecer em talento e esforço, para se publicar uma obra com um nome assim.
São centenas de páginas, milhares de palavras, e o que "O Medo" nos oferece é uma imensidão de erros. Al Berto sabia que escrever era errar e errar mil vezes. E no meio desses erros não acertou nunca, e nesse nunca acertar, acertou, aqui e ali, um e outro verso e outro ainda e muitos outros, numa obra que lhe saiu do corpo e da alma.
Foi a Lira que me ofereceu o livro no Natal de 2007, sabendo ela do meu fascínio pelo objeto em si, deu-mo no hábito nosso de trocar sempre um livro no Natal e escreveu uma dedicatória que para mim guardo.
A leitura comecei-a a 30/09/2008 na Bélgica, em Leuven e terminei ontem, a 08/12/2014. 6 anos de leitura, de anotações e sublinhados, de citações passadas aqui no blog ou no twitter. Regressa à estante mais gasto. Com certeza a ele regressarei algumas vezes no futuro.

 
O que posso dizer, é que muitos dos versos que Al Berto escreveu, gostaria eu de os ter escrito. E dizer isto é tão só dizer que, se calhar, os escreverei à minha maneira um dia. Dizer isto é dizer que a poesia é a revelação da ligação silenciosa entre almas.
 
Transcrevo alguns versos que fui sublinhando. Exemplos de rendição da minha parte:
 
"onde estarei a enlouquecer?"
 
"a cidade acorda menstruada pelos seus próprios crimes"
 
"esqueço-me-te"
 
"a noite descansa em teu peito aberto à navalhada"
 
"e a nítida água desta memória vai secando"
 
"a fala de quando os homens não possuíam espelhos para se suicidarem"
 
"mas vai chegar inverno
o corpo afrouxar-se-á como o fazem algumas flores
ao cair da noite dobram-se para o fulcro morno da seiva
e cismam um sonho de ave que só a elas pertence"
 
"quando escrevo mar
o mar entra todo pela janela"
 
"vou partir
como se fosses tu que me abandonasses"
 
.
.
.
 

manhãs limpas de inverno

Sempre houve manhãs de sábado e de domingo limpas de luz, inundando salas e silêncios. Manhãs frias de inverno, mais até do que limpas, eram límpidas, cristalinas, perfeitas num esboço de pureza, cheias de exatidão, de harmonia. As árvores despidas, erguendo-se ao céu num esforço de seiva discreta e oculta, desenhando sob o horizonte o recorte de ramos e galhos frágeis, voos de aves a espaço, quebrando o azul celeste em veios alados, nuvens muito distantes, pálidas e fugitivas, navegando para outros firmamentos, esfumando-se no longe.
Sempre houve manhãs limpas de luz no inverno, ideais para a contemplação, essa raridade da alma, libertando-a na ilusão, no fascínio, na rendição, na paz e quietude.

Memória e amnésia

Poderia ter passado os olhos pelo livro e ser apenas isso o que aqui me traria. Mas não, passou os olhos e os olhos lá ficaram, ancorados nas palavras que lá estavam. E dito isto há que dizer o resto. As palavras diziam coisas, o que por si só não chegaria, mas as coisas que diziam eram da mais profunda beleza, da mais redonda e perfeita poesia. Como não prenderem-se e perderem-se então os olhos por lá? A beleza é isso, o íman, a vertigem, a gravidade com o peso de sua infinita e inquebrável lei.
Mas para ser sincero, no limite do que a sinceridade permite num exercício destes, o que me traz aqui será uma outra coisa que não a perda dos olhos de quem os passou pelo livro. O que me traz aqui é algo que esqueci. É sabido que o olvido ocorre quando se julga estar perante o que se revela ser novo. Mas de novo nada existe, apenas o esquecimento renasce, cada vez mais perfeito, mais intenso nessa força bruta que é a inspiração.
Do livro ficam os ecos e as citações sublinhadas a lápis e uma nova leitura no muito mais futuro que o daqui a pouco. Do solene e reverencial ato de esquecer e julgar-se frente ao que nunca antes existiu, fica, tão só, um equívoco, pois apenas existe memória ou amnésia e o meio termo de ambos.
Chegamos, por isso, facilmente à conclusão de que memória e amnésia são uma e a mesma coisa, tecido do mesmo pensar, firmamento do mesmo cosmos.
Existiram povos cuja literatura foi revelada através do esquecimento, as histórias não chegavam ao fim porque ninguém o conhecia, e em poucas gerações nem o início das histórias sabiam. Outros povos porém, a literatura revelava-se através da memória e do seu crescimento exponencial. Não tinham fim tão pouco essas histórias pois os detalhes eram tantos que jamais se chegava ao final, e em poucas gerações nem o início conseguiam contar porque a memória começava antes do início, no antes.
Quando, num acaso, o equilíbrio entre memória e amnésia for perfeito, imagino alguém passar os olhos por um livro e aí os deixar, para sempre, e um outro escrever sobre isso. Ou pelo menos tentar.

negro dos abismos


quantas noites permanecerão intactas
no fundo do mar
Al Berto
 
Existem silêncios desconhecidos. Propagam-se em territórios por descobrir, vales, desertos e montanhas onde a audição humana não chegou ainda. Corpos existem também ignorados. Curvas e peles e regaços onde as mãos dos homens não se perderam. Sabores velados ao palato, aromas segregados dos olfatos. quantas noites permanecerão intactas no fundo mar?  Um infinito delas, quantas forem possíveis no tecido negro dos abismos.

ao mais profundo infinito

surge a ideia
e esculpes o que podes
através do mármore alvo do silêncio

esperas poder em breve
num gesto final
passar as mãos sobre a obra
sentir-lhe as curvas suaves das imperfeições
as hesitações e as falsas certezas da criação

apercebes-te que o tempo passa e que sobre cada verso
cai um outro mais abaixo
e outro ainda
uma vez e vezes sem conta

temes que com todo o peso acumulado
se desmorone a poesia e te esqueças do início
da tal ideia primeira
cujo silêncio esculpiste em mármore silencioso
 
e esse medo não faz senão crescer
medrar

e a dado momento sentes a tentação de voltar ao cimo
de largar a leitura do agora e recomeçá-la do alto mais pousado
mais pousada a leitura desta vez
 
mas depressa outro temor nasce
brota

se por acaso voltar ao início
se ceder à tentação do recomeço
não perderei então o presente
não me atrasarei irremediavelmente
não haverá sempre um verso mais abaixo
e um outro e um outro ainda
cuja leitura já foi profanada num à frente
num porvir inalcançável para os meus olhos?

chegas por fim
a um daqueles momentos de revelação
concluindo
que os poemas são o tecido do tempo futuro
têm um avanço decisivo sobre nós
são a materialização presente do futuro

talvez a ciência consiga explicar estas coisas
e provavelmente
a explicação virá em fórmulas
cuja a forma
será
necessariamente
versos
uns sobre os outros
sempre
caindo um após outro
numa queda de poesia ao mais profundo infinito

a criação

incendiaram-se as noites num clarão
atirando sobre o mar negro uma sombra ainda mais vasta
desenhando o fogo prometido o fogo já escrito
a combustão derradeira das almas a supernova esculpida pelo pai de cronos
o aniquilar final de toda a dor inquietação e o seu contrário

não são premonições o que se escreve
não são certezas ou sequer possibilidades
não são ideias não são versos
não são nada

o clarão queimou a noite
semeando cinza por todo o firmamento
derramando as labaredas já faladas as chamas já gravadas
o lume último dos espíritos a explosão estelar atiçada por urano
o funeral de toda a pena angústia e o seu oposto

o ato primeiro
o gesto inicial
o acaso de uma palavra se seguir a outra e assim em diante
até à exaustão das infinitas possibilidades e no meio delas
no tal clarão
surgir poesia
como surgiu a vida nesta terra

rosetta

Pensar na imensidão de tudo isto, no vazio quase infinito entre tudo o que existe, imaginar que algo por nós criado foi pousar lá longe no silêncio, no gelo, na maior das solidões, num cometa. Imaginar que, devido à distância, apenas 28 minutos depois chegou-nos a confirmação, via rádio, cujas ondas viajam à velocidade da luz. 28 minutos luz de distância, um número cheio de zeros que somente nos faz mingar em humildade perante o espaço do espaço. Se tudo isto não nos emociona, nos não remete para dentro, não nos silencia em comunhão com o mais profundo da alma, então o que o fará? Saber isso, tão só, que lá longe, no gelo, na imensidão da noite cósmica, na maior das solidões, algo nosso pousou, e que isso, faz com que fossemos nós todos a lá pousar.

a noite mais escura

era uma noite tão negra que até os cegos se perdiam, tão escura que as minhas próprias mãos não se encontravam se se buscavam, nem a elas nem ao resto do corpo imagine-se,
até o mar se desregulava entre as ondas e o momento do som do rebentamento,
a chuva caía antes de ao chão chegar, o vento tinha o atraso da luz e do movimento dos ramos,
era uma noite tão escura que as próprias palavras do pensamento confundiam o caminho, desapareciam antes de formularem uma ideia,
era uma noite tão feita de breu que o amor, sim, o amor, ficava-se pela semente e a poesia não chegava a ser,
era uma noite tão obscura que a música soava ao contrário, o tempo, ele próprio, trocava horas minutos e segundos,
noite tão noite que as estrelas luziam negrume e o silêncio encolhia-se como pássaro medroso,
nem tu brilhavas da noite ser tão negra, nem tu, nem nada

Eterno retorno

Se é verdade que tudo o que parece ser novo é apenas esquecimento, a nossa história terá sido vivida por outros no passado. O que sentimos hoje alguém o sentiu antes, as lágrimas que choramos outros tê-las-ão chorado também, os sorrisos que se desenham terão sido esculpidos no pretérito noutros rostos que não os nossos. Talvez o que vivemos hoje é o que no futuro outros viverão e, seguramente, o que escrevemos hoje, outros escreverão no porvir.

A ideia de um paraíso

A ideia de um paraíso algures. Uma praça ajardinada com pombas a debicar por entre a relva, uma súbita chuva de madrugada, uma onda mais longa na praia deserta do Outono. Relembrar as montanhas esculpidas pelo Homem e o seu louco sonho de semear sol e colhê-lo mais tarde em forma de uva ou de um outro fruto prometedor. O silêncio imenso do teu sono quando o velo ou ainda, o sentimento avassalador de te amar sem saber como ou porquê. A paz da solidão de certos momentos ou de uma partilha fraterna de sorrisos. A calmaria de um livro já lido mil vezes face ao turbilhão encarcerado de outros por ler. A ideia de um paraíso logo após as palavras e o ponto final ou a chuva miúda das reticências...

Conclusão

Passaste hoje de madruga perto de um cemitério. Viste-lhe as velas luzindo nos intervalos de negrume, campa sim, campa não. A lua no alto desenhava-se por entre as nuvens despejando brilho fosco sobre os paralelos. Pensaste nas almas repousando lado a lado no maior dos silêncios. Um silêncio que será também teu um dia.

Nadas

Curioso como do silêncio podem brotar outros silêncios. Imaginar-se-ia que da quietude poderiam nascer ruídos, rasgos de um qualquer rumor ou murmúrio, sopros leves, brisas ténues, tímidas. Mas do silêncio, por vezes, em noites mais escuras, mais densas, geram-se outros silêncios, sossegos, omissões, nadas.

A casa

A casa era velha. A velhice revelava-se no musgo crescente que invadia as dobras da pedra e da madeira. Mas sobretudo no rumor de abandono que circulava entre os corredores escuros e os quartos desertos. A cozinha era apenas uma banca de caruncho e uma mesa manca a meio. O salão quieto e silencioso dormia ao sabor das cortinas rasgadas. Todo o mobiliário coberto de pó e de uma ocasional teia de aranha já gasta. O peso do tempo vinha abater-se sobre o chão nu de carpetes, escorrendo do teto e dos quadros tortos nas paredes. Lá fora o jardim eram silvas e folhas acumuladas de muitos outonos. Um dia toda o jardim engolirá a casa, e de velha que é tornar-se-á húmus e orgânica, comida de bichos, vaso de plantas, ténue desenho do que foi outrora. Noutro dia ainda, mais há frente no desenrolar das eras, o mar inundá-la-á. E se ousarmos imaginar épocas ainda mais futuras, o cosmos encarregar-se-á de tudo engolir num tufão celestial de estrelas e galáxias em movimento até ao aniquilar final. Nem as palavras sobreviverão a esse cataclismo. No fundo, o silêncio derradeiro da casa velha já há muito foi pronunciado.

O porvir

A rua desenha-se em frente como se o asfalto se revelasse aos soluços por entre o nevoeiro. A cada dez passos novo tapete negro malhado de traços brancos sinalizando as regras de trânsito, relembrando-nos a civilização que vamos sendo. Os romanos optaram por pedras, rios petrificados, serpenteando o mundo da altura, brotando de Roma qual nascente parideira e desaguando noutras cidades. Sobram ruinas e cicatrizes, os novos caminhos de alcatrão, como este que se veste de neblina, imitam a função, são ecos desse propósito ancestral do viajante: avançar. Como as palavras que dizemos hoje são palavras que outros já disseram antes de nós.
O nevoeiro há-de esfumar-se e a estrada estender-se-á na plenitude, revelando não apenas distância mas igualmente o futuro. O porvir é o destino ao qual tão somente ainda não chegámos.

Escrever

Escreves. A partir de hoje escreves todos os dias. Nascerá na alma essa vontade, mas para além disso, pedirá também uma vontade do corpo. É certo que tudo começa antes, talvez num sonho divino ou na escuridão do cosmos, porventura inicia-se em algo predeterminado ou fruto do acaso, mas depois do antes desagua-se inevitavelmente no corpo, por isso, para escrever é necessário que algo de físico aconteça, que no cérebro ocorram coisas que a neurologia explique e a bioquímica exemplifique, que daí resulte algo mais tátil, que os músculos, cartilagens, tendões e ossos façam o seu trabalho. Para escrever será então necessário que se puxe uma cadeira, que haja papel, seja ele de pasta de madeira ou digital, que haja tinta ou teclas e dedos a desenhar ou dedilhar. Que se coloquem letras umas à frente das outras, e uma letra é sabido vem de longe, vem dos inícios de sermos gente antes ainda de se escrever, de quando deixámos de ser macacos e passámos a ser estes macacos específicos, que uma letra representa uma convenção e que uma convenção representa outra coisa qualquer que se calhar os idos formalistas russos explicavam. Mas que se fodam os formalistas russos, apesar de lhes reconhecer o mérito de terem sido formalistas russos, mas bom. Escreves e isso nota-se, e depois dessa vontade ter nascido na alma, nos infinitos do espaço ou no tédio de um deus qualquer, passou pelo corpo que teve finalmente de traduzir alguma coisa em palavras. Escrever dá um trabalho de milénios, escrever é ser-se todo o silêncio de uma vez e todo o ruído que nunca se ouviu.
Escreves e a partir de hoje fá-lo-ás todos os dias.

Dos quartos do passado

O passado será um país distante repleto de neblinas.
Houve quartos povoados apenas por uma cama, uma secretária, papéis com versos e, por breves horas, por um corpo de mulher. Quartos cujas manhãs se esvaziavam de ti e as rugas dos lençóis desenhavam estranhas formas sobre o colchão. Janelas por onde a claridade era fatiada por persianas meias fechadas, criando contornos de sombra e luz sobre as paredes. O silêncio era imenso mas leve e o aroma do calor da noite prolongava-se até tardias horas. Por vezes regressavas e fazia-se noite de novo e tudo recomeçava renovado, como se nunca nos tivéssemos tocado, beijado e amado. Amávamo-nos como estranhos de cada vez, sem preconceitos, sem antes, sem antecedentes, como uma página em branco, novos rabiscos, novas tentativas, novo ensaio.
E no fim uma vez mais o quarto e a quietude familiar das manhãs vazias, vazias de ontem e cheias de brilho, de promessa de mar para lá do vidro, da janela e da estrada. Cafés do lado de fora esperando uma bebida.
O passado será um país distante repleto de neblinas, ficam os textos antigos aqueles que se salvaram. Os outros que se calaram descansam então nesse país distante entre nevoeiros e amnésias. Certeza é que um quarto vazio de nós existe algures, nenhures, em zero absoluto.

hoje não houve céu

hoje não houve céu
e ainda agora, com o breu da noite caído sobre as ruas
nada alumia de cima
as nuvens cobrem tudo com uma cor de chumbo
desse manto negro há tons de penumbra que desenham ténues traços de alguma coisa no firmamento
mas sem céu tudo se resume ao chão
como se se erguesse de repente e inundasse tudo o resto
sem referências que não o solo sem horizonte sem teto sem paredes sem estrada pois tudo é raso tudo é uma dimensão
se fosse poesia
seria um verso só
só e apenas
hoje não houve céu

onde tudo se repete

Escondo-me nas sombras de uma esquina. Espio-te cá de baixo olhando tua janela iluminada. Metido dentro da neblina fina da noite, aguardo que venhas espreitar a rua silenciosa. Teu vulto deve passear no quarto, adivinho-o nos contornos das penumbras breves. Acabas por apagar a luz e fechar as cortinas, mergulhas de vez em escuridão. Aventuro-me uns passos fora, esticando o pescoço em vã esperança. Não será esta noite que te visitarei enfim. Talvez amanhã, talvez. Faço-me à rua, passo ante passo em direção ao amanhã onde tudo se repete.

O vício

Nisto das palavras o vício funciona ao contrário: é a ausência delas que faz mal, que vicia, que prende. Escrever é o difícil, é a recuperação, a limpeza. Há demasiado tempo que o silêncio me deita abaixo, me adia, me envelhece, me emudece.
Hoje recomeço, gravo mais uma promessa que espero definitivamente não ser vã, recuso a quietude e a inércia do papel em branco. Hoje escrevo uma palavra de cada vez. Amanhã, se não recair, voltarei e depois uma vez mais e assim até ao sempre, um dia de cada vez, letra a letra.

Cosmos


A vertigem que sinto ao escrever sobre isto é difícil de explicar. A série Cosmos de Carl Sagan, vi-a há muitos anos. Revejo agora a nova versão que tem passado na National Geographic e a mesma emoção me percorre a alma.
Tenho para mim que devia ser obrigatório nas escolas passá-la aos alunos entre os 14 e 18 anos. A aventura que é narrada só poderá deixar indiferente aqueles que já esqueceram, ou nunca souberam, de onde vimos, onde estamos e para onde vamos.
Trata-se muito mais do que falar sobre Ciência, trata-se de revelar o caminho de se ser humano, de encontrar finalmente a harmonia misteriosa de tudo o que nos rodeia.
 


libertação de silêncios

sabias dos silêncios escondidos nas esquinas
por lá se encolhem
se contorcem
insinuando sombras
soprando palavras velhas promessas gastas
sonhando o velho amor esquecido
desenhando de madrugada o vulto dela
criando a golpe de crença o perfume de um beijo nunca dado
nunca partilhado nunca escrito

os silêncios escondidos nas esquinas
tricotando a pedra dos passeios
olhando os céus chuvosos
imaginando as constelações todas
uma a uma
cassiopeando
conspirando em versos invisíveis
num poema cuja leitura derradeira
os libertará finalmente
em rima serena certa perfeita
deixando esquinas desertas e solitárias

rumorologia

não será bem um eco
os ecos esfarelam-se na distância
tornam-se nadas no silêncio

será antes um rumor
os rumores roem discretos
no subtil correr do tempo

sim um rumor
um sopro permanente na cave da alma
a brisa teimosa da praia que sempre foi nossa
um murmurar pela noite do nosso abandono
um suspiro na manhã definitiva

última manhã
derradeira

como está escrito nos horizontes
no firmamento
nos livros de rumorologia

Disciplina, solidão, silêncio e prisão

Cito de cor mas foi mais ao menos isto que disse Lobo Antunes sobre escrever:
 
É necessário disciplina, solidão e silêncio.
 
Acrescento que é igualmente necessário estar-se encurralado. Entre a espada e o papel em branco, aprisionado, ameaçado, eventualmente aborrecido. Na contradição destas coisas todas está o caminho que tenho finalmente de encontrar.
 
Das inúmeras promessas adiadas, dos falsos regressos, dos inícios abortados, dos silêncios cabisbaixos, dos desertos ausentes de mim, este será mais um, e, tal como os anteriores, vem vestido de renovada esperança que em breve encontrarei a disciplina, a solidão, o silêncio e a prisão que me farão escrever de vez.

Relembrar

Agora que já amontoaste silêncios suficientes, que escavaste espaços de nada no teu viver, que resvalou tempo, muito tempo desde as últimas palavras, podes, finalmente, regressar.
Tratas-te por tu, pois estás em ti mesmo, perto, íntimo. Não quer dizer que te conheças, mas pelo menos, reconheces-te.
Será uma boa altura para relembrá-la, a última que partiu. É certo que sorriso ecoa ainda à janela da casa. Que a rua onde atirava o olhar lá permanece. Que o quarto, no alto, mantém a mesma quietude e os mesmos jogos de sombra. Talvez o vinho se gaste um pouco menos. Os terços já não ajudam a tantas rezas. O passar o tempo sabe agora a saudade, carrega mais silêncio e menos avó. Mas é assim, já o sabias, é assim. Resta-te ser neto a cada momento e não esquecer que o és.

conclusão

dos inúmeros silêncios que vais semeando, uns vão criando raiz, outros
vão criando caruncho, uns vão roendo o tempo por dentro, outros secam de vez.
do mesmo número de regressos se fizeram esses silêncios.
regressas agora devido a uma feliz coincidência que envolve futebol, teatro e claro, a mesma velhíssima ideia sobre o amor
o amor por ela e com ela, o amor teu e o amor dela
e nessa coincidência reencontraste a velha certeza de que o amor é eterno, mas que a escrita o é ainda mais,
ou não tivessem sido as palavras o que primeiro vos juntou,
antes de tudo,
disto
daquilo
daqueloutro
e, como não,
do caralho do silêncio.