dia 303

eu nunca o tinha visto
mas parece que era um cliente habitual
e estava sentado na minha cadeira

não gostei e fiz questão de o dizer

passado algum tempo
o homem do bar veio ter comigo
disse-me que eu estava a falar sozinho

calei-me
sei bem que não é boa ideia meter-me comigo mesmo


dia 302

o templo em ruínas
e a ausência de qualquer prece

um silêncio com o peso do mundo
e no fim
um poema inteiro sem um único verbo

dia 301

os versos de ontem
hoje
os versos de hoje
mais logo

e assim simulo uma armadilha a cronos

dia 300

uma vez mais um quarto vazio de hotel
desarrumado
não muito
o suficiente para se perceber que lá dormiu alguém

curiosamente o único pertence presente
era um véu abandonado sobre a cadeira
uma das pontas a tocar o chão

a luz acesa e a janela aberta

quem lá dormiu
ou saiu ou saltou pela janela

tudo isto pensou o ladrão sem nada para roubar
de um véu não precisava ele

saiu

dia 299

procurei os versos onde os tinha deixado
já lá não estavam

até hoje não voltaram

imagino que um dia batam à porta
talvez
talvez não

se voltarem não sei se lhes perdoo
mas não sei se os vou culpar também

compreendo que quando se é poema
a fuga é um apelo tentador
como aquelas traças nocturnas que se lançam num candeeiro 

dia 298

lembro-me de ter tentado criar uma lembrança
de agarrar um momento qualquer e tatuá-lo na memória
de dizer para mim mesmo
aqui agora

fi-lo algumas vezes no passado na esperança de poder lá voltar
de saber
onde e quando

mas desses exercícios o que ficou foi apenas a ideia

sei que os fiz
mas nada mais
a recordação esfumou-se
caiu no poço de tudo o resto que não lembramos

a memória é líquida
não se agarra
escoa

dia 297

este poema não tem pais

o verso de cima não é meu
mas pareceu-me correcto adoptá-lo

dia 296

não posso deixar escapar
esta miragem

não sei bem de onde regressou
mas tenho sido inundado pelo céu e pelas danças de nuvens
e é-me difícil descrever esse deslumbramento

porque há tanto espaço entre a vertigem e olhar
que tudo é uma queda da alma
um pasmo sideral ver sob o horizonte longínquo essas montanhas de névoas
como imensas fumaças brancas cobrindo a abóboda celeste
imitando as nebulosas afastadas e silenciosas do cosmos

não sei
não cabe aqui o arrepio do espírito
ele é um relâmpago fulminante
temos que se por um qualquer acaso o conseguisse dizer
todo o poema implodiria

dia 295

as asas arderam pela noite
deixando um rasto de faísca e fumo mais negro que o próprio céu
a fénix renascida e incandescente
regressada de um lugar oculto
de uma catacumba qualquer

desenhou um largo voo sobre o horizonte até desaparecer

quando olhei à minha volta
reparei que ninguém se apercebera do milagre
hesitei em contar
percebi que mais valia guardar o segredo
enterrá-lo bem fundo em mim

quem sabe se um dia
uma outra garça mítica irromperia de mim em chamas iluminando um outro olhar igual ao meu

dia 294

o sangue coagulara entre as linhas da sina
e era agora areia negra que esfarelava entre os dedos

mas parecia que uma sombra se lhe agarrava às mãos
uma película invisível do crime
um tom
um timbre
um eco

jamais se livraria disso

compreendeu ali mesmo que num duelo até à morte
ambos morrem
um de vez
o outro de vez em quando

dia 293

lambia os versos que escrevia
era um ritual
como os felinos fazem às feridas e às crias

depois
lia-os à janela aberta para a madrugada
aos gritos

e tudo isto ela me contava enquanto olhava para o chão

a ser verdade
provavelmente acordava os vizinhos

dia 292

tinha um rosto de quem engoliu muito sol muito sal e muito mar
os olhos perdiam-se no fundo das rugas e tremiam levemente quando falava
reluziam como aquelas pequenas estrelas longínquas nas noites sem nuvens

o que dizia era sempre muito profundo e definitivo
monólogos de quem já tudo viu tudo fez e tudo sabe
ou quase

todos o ouvíamos com a atenção possível do momento
o sono pesava o álcool acabara faz muito e a chuva não ajudava

mas lá o ouvíamos

e o homem falava
dizia coisas incontestáveis que carregavam o peso das grandes verdades

quando se calou alguém perguntou

já está?

esperou algum tempo antes de responder
até que disse antes de se calar de vez nessa noite

vai-se estando

dia 291

fugiu o poema
como uma sombra no inverno
sugada pelo frio da noite e do sono

revela-se depois
espreguiçando na manhã de outono

a história do que não se escreveu dava para encher uma mesinha de cabeceira
mas por vezes somente os óculos de leitura lá moram
e se calhar um despertador a pilhas 
que nunca se gastam
como se agarrassem a existência a cada segundo silencioso

não
já não me lembro dos relógios a corda nem das botijas de água quente
nem das camadas de mil cobertores sobre o corpo nocturno
o passado já não suspira
já só jaz 

dia 290

mais uma vez
no meu canto e a insistir numa bebida já quente
o velho de sempre queixava-se da mulher

porque ela isto
porque ela aquilo

sempre à mesma hora
os mesmos lamentos

quando finalmente se calava
o homem do bar dizia-lhe em voz baixa

homem
tu nem tens mulher 

mas talvez fosse isso mesmo
não tendo mulher
o velho queixava-se dela com toda a razão 



dia 289

um verso ou dois
à deriva

e como todo o poema
por muito que se escreva e exista
por muito que se amontoe e apinhe
haverá sempre mais mar de folhas em branco do que poesia

por isso mesmo
todo o texto é jangada
e todo o poeta náufrago

dia 288

show a little faith, there's magic in the night - Bruce Springsteen

estes textos que estão para aqui
são o que são

alguns mais velhos e retocados
outros espontâneos
outros sem nada a ver com isto
como aquele que ainda não escrevi
e que falava de eu ler o teu corpo em braile mas que os meus dedos deslizavam para sempre na tua pele
e que o cetim da tua língua me saciava a sede que me atormenta
e que os ritmos do teu sono revelam um qualquer enigma impossível de resolver

não escrevi esse texto e ainda assim apaguei-o numa noite em que bebi até adormecer ao som do Boss

dia 287

tudo pronto
disse ele
tratei de tudo
concluiu

e então o que falta
perguntei meio interessado meio distraído no resto da bebida que custava terminar

então
falto eu
suspirou

percebi
às vezes
a única coisa que falta
a única coisa que se escapa pelos dedos do tempo
somos nós

dia 286

fez o luto dele mesmo
enterrou simbolicamente o corpo num grande prado irreal
vieram os amigos imaginários despedirem-se

encurralado na falsa morte que inventou
escolheu mudar de aparência
mas o espelho devolvia-lhe o mesmo espírito de sempre

conformou-se
não valia a pena morrer

deixou-se ficar
vivo até para lá do esquecimento

dia 285

os suspiros lentos da madrugadas
as neblinas do sono
os arrepios da preguiça
o cheiro de um pijama lavado
o fim de um filme que se arrasta
esta rotina de roer versos
o que resta de luz da vela que ela deixou sobre a mesa
o mar a respirar do outro lado das janelas
um carro a rasgar o silêncio
o livro que desistiu de ser lido
a guitarra silenciosa e ainda assim desafinada
o último verso
ou antepenúltimo
isso

dia 284

tatuou-se a imagem na caverna dos olhos
de tão nítida e intensa
de tão viva e tão real

anos mais tarde
quando tudo o resto que lhe entrava pelo olhar já se perdia
essa paisagem reluzia como no primeiro dia

o que era nunca chegou a dizê-lo
mas um sorriso sereno sustinha-lhe o rosto quando lhe perguntava


dia 283

a lua nasce e as sombras recolhem-se junto às esquinas e às bordas dos passeios

é a hora de esvaziar os copos
de saciar a sede antiga do verão e encher a alma com o outono

em breve tudo será coberto pelo silêncio da melancolia
e o perfume doce das esperas pairará no ar

o recolhimento das almas
mesmo daquelas que querem ferver para fora dos corpos

há torpores que têm o peso do mundo
a rendição momentânea do espírito
o abandono dos seres a um momento feito de nada

dia 282

deste espelho de mar e de céu
por entre estas miragens de ilhas
passam uma onda e uma nuvem

geminadas à nascença e à deriva no atlântico 
de onde surgiram não sei
mas talvez
agora que parto
as possa reencontrar em casa

a onda a rebentar no gilreu 
e a nuvem a derreter-se pelo Douro dentro

e como eu
ambas de olhar líquido e repleto de luz açoreana
ambas a duvidar se foi sonho se foi a sério



dia 281

o mar e o vento
e no meio labirintos de basalto
intermináveis e indecifráveis 
com poeira e areia negras
e o prodígio da vinha
que sorve o sal e o iodo e a luz
que mais tarde se cheira e se bebe
que mais tarde se recorda e se esquece
que mais tarde se traga e se trinca

dia 280

aqui há mais céu
cabem mais nuvens e cabe mais luz
e com isso se perde o olhar
naufraga porque se perde
e à deriva se reencontra até se despenhar num azul mais profundo ou num verde mais intenso

aqui sobra ar
porque nem o mais amplo dos suspiros esgota esta imensidão
sobram silêncios e estradas vastas que entram pela montanha
sobram orvalho e pedras negras que de terem passado pelo inferno repousam agora junto ao mar como se nada fosse

aqui sobra tempo
que se demora como quando um assombro se revela
e não mais pára de se revelar

dia 279

amanhece ao largo
longe da janela e dos olhos
a luz tem de percorrer o próprio mar até encontrar um pedaço da ilha
vai chegando e entrando pelo quarto 
até se emaranhar nos teus caracóis

e então sim
é dia
a noite e o sono dão a vaga
é o meu turno que se inicia

dia 278

lá em cima o maior dos silêncios
uma paisagem lunar mas com a gravidade bem presente e a lembrar-nos que há um preço a pagar pela subida

mas os infinitos valem a pena 
sobretudo eles valem a pena 

se nos puseram aqui
se nos ensinaram a andar
se nos disseram que esta vida são dois dias

como não subir
como não chegar lá em cima
calar e ao mesmo tempo uivar como os lobos nas noites de febre e de luar?

dia 277

no meio
onde o infinito se estende para todos os lados
e a solidão se encontra até nas rugas das pedras

as aves de passagem como as nuvens que se agarram aos montes até se derreterem no mar outra vez 

isto nasceu de espirros monstruosos vindos das entranhas do inferno

e o que sobra
é um milagre e um absurdo

aqui era suposto apenas passarem ondas e ventos
seguindo suas rotas

mas agora
não passam
ziguezagueiam por estas ilhas
atordoadas as ondas e confusos os ventos

aqui não era suposto haver nada
mas há

dia 276

uma janela aberta sobre o mar e a outra ilha ao largo
uma cauda de baleia e uma gaivota em mármore que ondula
o silêncio de um vulcão velho escondido para lá das nuvens 

falta-me o engenho de dizer isto como deve de ser
mas não faz mal
tenho os olhos cheios e a transbordar
o deslumbramento é sempre fruto de uma emboscada da emoção 

dia 275

à Isabel e ao António

aguardo em resguardo seguro
antes de iniciar o périplo

a amizade abre todas as portas
colhe todas as ceifas e cuida de todas as ânsias

sem estar em casa
estou em casa
e grato estou

dia 274

à deriva na véspera que insiste em durar
nadas como podes no mar branco do silêncio
tentas-lhe um eco um sopro um murmúrio um segredo

e a resposta é sempre igual
só uiva quem tem a alma a transbordar
por vezes ela aninha-se junto às sombras e penumbras

há que deixá-la em paz