dia 152

pensei que estava preso num verso
mas na verdade fiquei foi preso num suspiro
que pendente e em suspenso da evocação de uma lembrança
esperava pelo que as brumas do esquecimento estariam disponíveis para revelar

e assim se perdeu um poema ou pelo menos a ocasião de assassinar um silêncio
a quietude imperou até me recolher vencido
e quando pensei que já nada tinha a dizer
soltei um grito que não era meu
e despi-me num corpo desconhecido
quando voltei a mim
já não restavam palavras
calei-me

dia 151

leram o testamento
e após as partilhas
o que me tocou
foi um mar vazio
e um velho casaco de ganga

vesti-o
era demasiado largo
como o mar vazio que agora era meu

o resto da família não se importou
não queriam casacos nem pedaços de terra seca

eu também não me importei
com certeza iria engordar um dia e então o casaco assentaria perfeito
e um pedaço de mar mesmo se seco e ausente
nunca fez mal a um pretendente a marinheiro

dia 150

agora que voltou o calor
lembro-me daquele quarto onde há mil anos atrás as tardes não tinham fim

o teu corpo enrolado numa toalha e o meu deitado sobre a cama olhando a janela
o sol a arder lá fora e as nossas almas em cinza
sobravam os olhares e as roupas espalhadas pelo chão como nos filmes

os vizinhos discutiam e eu adiava o regresso a casa por preguiça

enquanto não me odiavas eu ficava por perto
e enquanto tudo isto não for desmascarado pelo embuste que é
provavelmente vou escrever até morrer de fome ou de tédio ou de medo

dia 149

não sobram mais despedidas
apenas tempo

o caminho a fazer entre uma mágoa e um alívio
sem nunca esquecer um sorriso envolto de melancolia
porque tudo o que vale a pena exige uma certa postura
um certo porte e estilo

como beber de pé um vinho mais velho que nós
acariciar a capa de um livro que se acaba de ler
fazer uma vénia antes de um duelo

dia 148

aqui jaz um poema
leal a si mesmo enquanto viveu
dispersou os versos pelos olhos das leituras alheias
cumpriu o propósito e descansa agora em paz no derradeiro silêncio
ficam ecos talvez e uma ou outra lembrança do que tentara alcançar

pode
quem quiser
prestar homenagem declamando-o uma vez mais
ou somente murmurando-o
como um suspiro ou confidência

dia 147

hoje o calor despontou como um doido
e ao fim da tarde dezenas de borboletas e traças atarantadas insistiam contra o vidro das janelas com a obstinação de um delírio
e duas ou três que entraram estremecem ainda nos cortinados da sala
possuídas pela ardência do dia e enlouquecendo com as sombras que desenham no tecto e nas paredes

que espírito as arrebata de tal forma
que se lançam agora na fornalha das lâmpadas
qual ícaro nocturno
até de repente estalarem e caírem fumegando

geradas e mortas por uma sede de fogo

dia 146

ontem o sono venceu
e há que aceitar a derrota

dia 145

o poder de nomear as coisas
e assim revelá-las

mas coisas há que não se dizem
e desse modo navegam no grande barco dos segredos
à deriva pelos mal entendidos e equívocos
órfãs da compreensão e da perspicácia

a palavra não alcança tudo
mas carrega em si a mais nobre das artes

a arte de tentar e nunca se render

dia 144

a confusão vem de longe
terá provavelmente começado como tudo o resto: no início

com os primeiros que escreveram
com os primeiros que leram
e com todos os que se seguiram
emaranhando-se no paradoxo das palavras
e começando a fazer exigências:

que a poesia deve descrever o real
que as letras devem demonstrar o autêntico e o factual

mas esqueceram uma subtileza:
a poesia não descreve o real
não demonstra o autêntico nem o factual

a poesia revela a verdade
e a verdade é toda uma outra coisa

dia 143

ainda há silêncios que desconheces e que respiram na noite

por muitas madrugadas que seduzas
há sempre algo de ambíguo no corpo das luas e das estrelas

e enquanto o sono não chega
há sempre algo que te arrebata e que desponta ao de leve o pasmo

seja o que for
o mar ou o abanar dos vidros por um carro passar
ou uma música inesperada ou a pura desinspiração no momento de escrever
ou
no pior dos casos
o copo vazio sobre a mesa

dia 142

perdi-me num lugar exacto
e enquanto procurava a chave perdida
esqueci-me da porta que abriria

e essa obsessão foi-se alimentando como a serpente que devora a própria cauda

dia 141

Ultimamente um melro tem visitado a minha varanda. Chegou até a inspirar um texto algum tempo atrás.
Hoje, quando voltou, pus-me a pensar num poema que o exaltasse. Alguns versos que fizessem justiça a essa pequena ave que mais parece um pedaço de noite com uma estrela no bico.
Fiquei a olhá-lo e a pensar no simbolismo das coisas e de como debicava e saltitava no varão da minha varanda.
Quando, no meu íntimo, começava o esboço de um texto inspirado por este breu de pássaro, o melro, antes de esvoaçar, defecou.
Por isso optei pela prosa.

dia 140

as estradas sem origem nem destino
fazem do caminho o próprio ninho e sepultura

dia 139

as muralhas já só protegem velhos ventos de memórias ténues
as ervas avançaram há muito sobre os muros e os restos das casas
toda a cidade é somente um esboço de um sonho
um resto de uma ideia

e à tarde
quando o sol desce no horizonte
por um instante num jogo de luz fugaz
o burgo renasce e reergue-se imponente aos olhos de quem olha

esse vislumbre dura um segundo
até de novo tudo ser escombros e lembranças baças
rascunho de um conceito ou a voz que dita poesia

dia 138

uma árvore com o corpo de mulher plantada no meio da maior das planícies
a sombra derramada até à orla de um deserto e o cheiro a solstício a pairar

este era o cenário do suposto poema de hoje

dia 137

vais dormir
eu fico um pouco mais
até não ficar mais ninguém
e então a noite terá onde se sentar

dia 136

escrever como se baixa o vidro de um carro
deixando aberta uma pequena frincha num dia de verão

que a metáfora sobreviva como puder

dia 135

um murmúrio seguiu a ordem natural das coisas
e esfumou-se num sopro imperceptível

o que acontece aos rumores inaudíveis?
por onde se esgueiram e que teimosia lhes ferve no âmago?

imagino que tudo ressoe algures
para sempre
que a palavra proferida
como a palavra escrita
tem a sua eternidade forjada numa qualquer fornalha do além

tudo o que alguma vez foi dito
fala num lugar perpétuo
fala sem parar
fala com a mesma insistência de um choro de recém-nascido

dia 134

na verdade
após anos de ausência
reapareceu no meio da multidão e ninguém o reconheceu
nem ele a si mesmo

entregou-se ao anonimato por fora e por dentro
e ao caminhar de volta a casa
a própria sombra foi ficando para trás

desaprendeu a arte de nomear as coisas e rendeu-se ao esquecimento do presente



dia 133

a prece era um ritual antigo escrito nas nuvens
anunciava as chuvas e as colheitas

os curandeiros declamavam-na enquanto ajeitavam suas poções
as mulheres cantavam-na enquanto sonhavam à janela
e os homens ouviam-na com a atenção dos felinos

e o que dizia era simples
sempre que um milagre se revele
desenha com o teu corpo uma vénia
mas nunca deixes que o olhar caia abaixo do horizonte

dia 132

pergunto-me quantos passos deste antes de olhar para trás
e se te detiveste a ver o fogo que ateaste

e de longe
questiono-me
se te apercebes do voo das cinzas incandescentes que trepam pelas labaredas até se evaporarem em poalha e penumbra

se reconheces o meu corpo entre as chamas e se ouves o que eu não grito
se distingues os meus olhos na fogueira e se também dentro deles é possível que arda um outro incêndio e se é plausível que aí crepitem os meus versos

todas estas dúvidas me assaltam enquanto o lume se contorce e dança pela madrugada fora

dia 131

desceu o sol
a luz demorou-se
e antes de o céu se cobrir de noite
passou uma eternidade onde nada aconteceu

esse vazio e silêncio foram tão excessivos
que o próprio mar recolheu as ondas
e a praia fez-se deserto

dia 130

uma palavra teima
insiste em revelar-se
obstina-se como a inevitabilidade do sono
e vence pelo cansaço
pela cisma

essa palavra escreve-se por dentro da pele
tatua-se no silêncio da alma onde empoeirados os traumas dormitam e é sempre um fim de tarde

não a digo nunca
mas ouço-a sempre

dia 129

hoje
a ideia inicial era escrever sobre um grande incêndio
que talvez lavrasse nos teus olhos
ou somente na poesia das coisas
e cujas chamas se avistassem até mesmo de Caronte que é a lua de Plutão

porquê Caronte?
porquê um incêndio?
porque é que não escrevi então sobre isso?

não sei

mas que esse fogo lavra há mil eternidades
e que de Caronte se avistam as labaredas
isso sei que chegou quase a ser um poema

dia 128

sonâmbulos deambulam pela minha insónia
falam coisas que não entendo
entram e saem pela madrugada
alguns vestem casacos
outros de chapéu
todos sem rosto

quando um deles acorda
todos acordam
e desfigurados perdem-se num choro incontrolável

eu suo em febre imaginária
como se estivesse numa casa de ópio
inundado de mim e de convulsões
afinal
o sonâmbulo era eu
e o poema está escrito e anónimo
como deve de ser

dia 127

terias ainda assim muito para dizer sobre as florestas silenciosas dos teus sonhos
os voos invisíveis dos pássaros
o sol peneirado por entre os ramos e as folhas

mas acordas sempre antes de te lembrares
e o esquecimento é um vasto mar de quietude que navegas durante o dia

dia 126

a simetria dos teus caracóis
um a um
molhados do banho
secando e alargando
virando cachos
até me calhar a vindima 

dia 125

dois versos escritos ao mesmo tempo
diferentes à nascença mas ligados entre si
embora cada um em seu caderno

o emaranhado quântico (a célebre acção fantasmagórica à distância que assombrou Einstein)
explica
se não me engano
que no exacto momento em que um dos versos é lido
instantaneamente a ligação que partilhavam deixa de existir

o fantasma reside em vários assombros
quer na ideia de que se a leitura não se fizer a ligação permanece intacta e eterna
quer no paradoxo de que na eventualidade de um deles ser lido a ligação nesse preciso momento se desfaz
quebrando assim a premissa de que nada viaja mais rápido do que a luz

contemplar estes conceitos enleia a mente
e talvez nessa teia de incongruências
a única regra que remanesça seja a poesia silenciosa do que nunca é sequer escrito

dia 124

havia um cachecol com cores de outono
e a espiral lenta da queda das folhas

tinha chovido de manhã e no chão o céu era espelhado a espaços em cada pequeno charco

inevitavelmente
no meio de um bando de corvos enlutados
reparei num melro
como se um pirilampo de repente esvoaçasse pela noite

dia 123

desceram as escadas
na cave as mesas e as cadeiras estavam vazias
há muito que ninguém se sentava a escrever

eram verdade os rumores de que tinham desaparecido aqueles que outrora se escondiam nas madrugadas anotando em cadernos 

talvez se se sentassem eles agora
e retomassem as rimas e os versos
as noites deixariam de ser órfãs

alguém terá de o fazer
não há como conter a palavra
da mesma forma que não se contém um uivo

dia 122

escrevi e apaguei este verso mil vezes
mil vezes o disse em voz baixa
mil vezes ninguém o ouviu
nem eu

dia 121

tenho uma recordação que tem tanto de vago como de preciso
como quando se cerra os olhos para melhor se ver e ao mesmo tempo pior se vê
mas a ideia revela-se e tatua a sua própria dúvida de ser real

trata-se de um homem derrotado e perdido
caído sob o peso do infortúnio
mas que acredita ainda
que alenta a esperança
e a palavra que usa não mais me abandonou

escapatória

como se toda uma existência se resumisse a isso
a escapar
nada mais
nem o amor
nem o desgosto
nem as lágrimas
os filhos
a poesia
o suor ou a fome
não
somente essa coisa que pulsa desde que se nasce e que arde no fundo dos fundos

des - ser-se