perguntas

por onde andam os gestos e suas sombras
resvalam eles pelos beirais da rotina
sorvidos pelo tempo e a apatia?

revelam-se numa manhã silenciosa?
já sendo passado e futuro
tendo o presente inexistido?

são ecos imperceptíveis de algo esquecido e nunca lembrado?

serão prescindíveis na eficácia que exige o real?

rumo

caminhar
de esquecimento em esquecimento
até nada lembrar

caminhar sempre
para que a memória desista
para que o passado se esfume
e pela frente restar somente o rumo

geografias

entre cada verso
o silêncio definitivo
vencido uma e outra vez até nos calarmos todos lá longe no infinito

palavra
grito
grunhido
uivo
saliva

são as geografias da poesia

palavra no horizonte calmo da manhã
grito no zénite da canícula
grunhido no arrastar da tarde
uivo no luar quieto da noite
saliva espessa nos pântanos da madrugada

a tua ilha no meu mar


a tua ilha no meu mar
curva num horizonte sem lua
erguida como a encosta de um rochedo
teu sono e meu velar
no silêncio das falésias definitivas
meu mergulho adiado
preso ao deslumbre por um fio tão fino que me despenho já
que me precipito sempre
irremediavelmente pendido
sorvido pela lei da tua gravidade
pelo canto do teu sono de sereia

a tua ilha no meu mar
eu submerso de ti
a dar com a maré baixa da tua praia
teu marinheiro
teu náufrago
 

cama desfeita

a cama desfeita de hoje
que na realidade é da véspera
e da qual te esqueceste
virou poema

prática

é simples
esperar que um pouco de solidão chegue
(e ela chega sempre)
ouvir o que te dita a noite
(é fácil quando o silêncio impera)
e deixas que se escreva o verso

depois relês
apagas
e voltas de novo

não se apaga um eco
ele desvai até à quietude
e o que sobra
é toda a promessa do futuro
livre
limpo
cheio de ti e do teu sotaque tão teu
que me inunda até ao jamais

surrealismamente

move-te pela noite
até amanhecer o teu cansaço
e na praia o vento chamar-te pelo nome secreto com que te batizaste na véspera

cai no manto da aurora
mesmo que a queda não acabe nunca
e que na vertigem te escapem os sonhos pelos dedos como num quadro de Dali

sua todo o ontem que devoraste no raiar do dia
destila-te além de ti
esgota-te para que nada reste para os necrófagos
nem uma única migalha
nem sequer uma reminiscência

sê menos que um triz
mas que valha a pena

o espaço é tão tanto e o tempo é tão nenhum

do teu cimo ao teu chão
o espaço e o tempo são líquidos

porque o olhar percorre tudo isso num vislumbre
já as minhas mãos demoram-se no caminho
e a minha boca perde-se no trilho
seja no calor do teu pescoço ou nos gomos dos teus lábios
na curva da tua cintura ou no teu ventre de seda e cetim

e o espaço é tão tanto e o tempo é tão nenhum
que não me chegam nem os olhos nem as mãos nem a boca
nem os dias nem as noites e nem as manhãs
pois és a sede que não se sacia e a fome que não se mata
a ânsia perpétua e o desassossego infindo

és a própria rota
o rumo essencial
na sina que me calhou

arde o próprio ar

arde o próprio ar
por dentro do fôlego e do sopro
relembrando a fornalha primordial e os grandes incêndios cósmicos

transpira-se pelos poros da alma
e o suor sem tempo para gotejar evapora-se mal nasce
vaporiza-se no éter ardente

tudo é mais lento
tudo é mais vagaroso
tudo se adia por um momento até resvalar com o peso de um agora mais longo

tudo se arrasta
os versos derretem na linha do horizonte do poema
desmaiando no ocaso do que têm para anunciar
não chegando a extinguir-se
ficando na letargia infinita da canícula

também vou sendo

o que fazer com isto?
com este eco primordial a desfocar levemente as coisas quando o olhar se atira ao longe
como uma interferência no ecrã da vida
um leve estremecer do ser como nas miragens do deserto  
este visco quase invisível a escorrer dos dias e noites e que se cola por dentro e à volta de nós?

moldá-lo com a alma?
domar esse plasma metafísico para que faça sentido saber ao que vem?

e ao que vem mesmo?
dizer-nos que trepida e freme sob a tensão do incomensurável
que há mais do que aquilo que os sentidos descobrem
mais tempo dentro do tempo
mais lugar dentro dos lugares
mais silêncio na quietude absoluta
mais versos e palavras e invariavelmente mais poesia?

ou virá porque é de sua natureza
porque é de seu âmago emanar do invisível como um uivo de libertação
e dizer-nos a nós deste lado
também vou sendo

epílogo

alega o teu silêncio
dá-lhe o lume brando das velas
afaga-lhe o calor e o lento passar do tempo

escreve-lhe versos
argumenta a tua solidão
diz-lhe que são irmãos

faz-lhe a vénia devida
abraça-o nas noites que não acabam
invoca os infinitos

ambos sem verbo
tu e ele
no fim disto tudo juntos na aurora
na manhã definitiva
no mar luminoso do epílogo

entre o fado e a morna

entre o fado e a morna
procuro o acorde do início
bebo sozinho e espio a tua fuga

sou guardador de nadas
de sopros e de sombras
mestre de coisas que se esfumam
de memórias que não chegaram a ser
e de sonhos ainda por sonhar

entre o fado e a morna
sigo um funaná
simulo uma alegria e ao mesmo tempo uma tristeza

sou rei da pose
até cair num canto com a garrafa meia vazia

o fado nem aparece
impõe-se a morna como um bolero da alma

ignoram-me os corpos que dançam
nem sabem que comungo com eles no meu sono ébrio

faltam-me os teus caracóis pousados no pescoço
e a tua curva que balança e me embala

fica a noite inteira pela frente
para que a saudade dance comigo e com a garrafa já vazia

sabores

provei o silêncio
e descobri aí que o suor das noites de verão não sabem ao mesmo que as lágrimas doces do teu rosto

um pouco nossas

para a Ana Filipa e os seus

são sempre também um pouco nossas
as avós dos outros

e quando uma parte
parte de novo um pouco da nossa

porque os sorrisos abertos e bonitos que tinham eram iguais aos que na infância te embalaram
porque há um carinho por dentro destas coisas
como um abraço e um ninho que ficam para sempre

faz parte
sabemos

e o que fazer com tudo isto que não seja guardar num cantinho da alma todo esse amor
e de vez em quando
numa fotografia ou numa lembrança
lá voltar e sentir o calor do dia mais luminoso de sempre


nem delas mesmas

Revisitar antigos sopros, escutá-los com atenção. Reencontrar as ideias gastas de um outro tu. Iguais, imutáveis, paradas no tempo e no momento exato em que primeiramente apareceram. Como se nunca acabassem de nascer e, ainda assim, sem estarem verdadeiramente vivas. Vagueiam no limbo, são sem serem e vão sendo como as sombras da espuma de uma onda. Acabam e reaparecem sempre.
Pergunto-me se é possível calar o que não fala ou esconder o que é líquido e neblina.
Posso sentar-me e escrever tudo isso, de uma vez, de um trago como quando nos lançamos nos abismos. Mas, e depois? Que fazer com o silêncio definitivo? Mas nem é essa a razão, não há nunca silêncio, apenas o ruído atabalhoado do que se sonha. E, é sabido, os sonhos não acabam nunca, apenas o esquecimento os cobre às vezes com o manto da amnésia. Mas eu não esqueço nada do que não escrevo, esse infinito é vasto e incansável. Persiste em revelar-se, teima em resvalar por entre os dias e as noites.
O óbvio impõe-se, não sou eu que decido estas coisas, as palavras não são minhas, não são de ninguém, nem delas mesmas.

Tim Maia

Existem ecos que guardaste nas gavetas, coisas diversas que foste esquecendo. No silêncio dos dias lentos, elas rangem dentro das cómodas do passado. Hesitas em verificar, em abrir essas caixas e cadernos já velhos. Ficas-te a ouvi-las com atenção, receoso do que possam dizer à luz do presente. Fazes de conta que vêm do vizinho ou lá de fora onde o mar se ergue pela janela e inunda a sala.
Pões música esperando que a contradição da inspiração e da alienação casem e se revelem na ponta dos dedos para que te obrigues a sentar e a escrever de novo. O apelo tem a vertigem da atração e da repulsa. A coragem e a covardia da poesia, o impulso e a contenção, o abandono e a disciplina.
Por momentos foste envolvido no balanço de uma canção, de uma guitarra e de uma voz, até que cessou essa vaga num verso definitivo. Diz esse verso, que beleza é sentir a natureza, na voz do Tim Maia.

o outro eu

regresso à solidão
no subtil suspiro do respirar
regresso à quietude definitiva do espírito
o mergulho no corpo e o voo da alma
a queda imparável do ser

reencontrar-me
eu que nunca me conheci de verdade

a escolha

houve um momento em que fizeste uma escolha
entre escrever e não escrever

esse momento foi decisivo e irrecuperável

decidiste não escrever

e a partir daí a vida tomou um rumo em vez de outro

esse outro rumo ainda vagueia no fundo do fundo
como o monstro adormecido de um vulcão
e por vezes
o teu ser estremece de uma ponta à outra
como se o corpo uivasse até ao limite de si mesmo
e os poucos versos que vão saindo de quando em vez
são a sombra ténue de tudo o que ficou por dizer

não é bom nem é mau
foi a escolha que fizeste

nunca

perderam-se palavras
nos silêncios profundos do adiamento
soterradas sob a terra densa da mudez

mas resiste um eco
um uivo
um gemido
uma intenção
algo que nada cala
nunca

revelação

no silêncio absoluto da tua própria ausência
quando a noite é noite e o mar é mar
regressas assim
ao lugar onde pertences
onde tu és tu e não outro
e onde te desconheces
porque nunca saberás quem és de verdade
até que te revele um verso

nunca se sabe

lado a lado caminhávamos pela rua

era tarde e já muito tínhamos bebido

numa esquina uma vitrine de antiguidades
ao passar ele piscou o olho lá para dentro
perguntei-lhe a quem

respondeu

ao buda

qual buda

um buda sorridente junto à janela
não viste
perguntou

não tinha visto não

pisco sempre o olho aos budas
nunca se sabe