dia 366

aqui estamos
na noite mais profunda

juntos
como no início desse longínquo primeiro dia

este caminho bissexto
como pretexto de um diário poético
chega agora ao fim

amanhã regressa um outro silêncio
um suspiro ou um eco

mas para haver poesia não são precisos poetas
nem versos nem poemas
para haver poesia
só é preciso leitores

a eles a minha gratidão 

noutra vida haverá mais

dia 365

o livro era velho
e lá dentro as coisas que dizia estavam gastas
comidas pelos olhos de muito leitor que por lá passou

ele já não lia
folheava as páginas apenas por instinto
e demorava-se horas nesse embalo

quando o chamavam para tomar a medicação
pousava o livro e suspirava
o verdadeiro romance era ele no asilo
e as horas intermináveis de uma loucura silenciosa

no fundo
ele era o livro velho e gasto que já ninguém lia

dia 364

talvez a minha língua embeleze a tua língua
e entre os lábios se elimine a distância para que se possam juntar

estas coisas de beijar e ser beijado
sempre foram delicadas
e inevitáveis
como as leis da física
e os feitiços e
de vez em quando
os eclipses

dia 363

para o ano não escreves

perguntam

ou avisam

ou afirmam

ou desconfiam

dia 362

cada ano tem 365 dias e seis horas
e de quatro em quatro juntam um
razão aliás pela qual escolhi este para esta contagem
achei que valia a pena percorrer esse dia a mais

apercebo-me agora
que um dos dias sumiu
perdido numa ressaca ou sugado pela preguiça

ainda vou a tempo de o meter aqui
tecer palavras entre os interstícios

se é possível guardar 6 horas a cada ano
e juntá-las ao fim de quatro
possível será escrever uns versos entre as linhas de cronos

dia 361

são leves traços de aguarela
e ela mergulha na imagem líquida da manhã
e eu espero-a à superfície
até que ela regresse
para que juntos possamos partilhar o café acabado de fazer

dia 360

solene a tarde que caiu de vez no mar
caiu como se fosse a última das tardes

agora todos os amanhãs testemunham a passagem do dia para a noite sem aviso
os pássaros sem norte largam os voos
e os gatos acordam nas vielas já sem sol
as próprias nuvens esfumam-se no céu sem ocaso

perderam-se os entretantos e as esperas
nada acontece
tudo vai sendo

dia 359

não estava em lugar algum
e perguntava-se porque demorava tanto tempo a desvanecer

os nevoeiros perdidos da memória
órfãos
a pairar
como o perfume dela

dia 358

há um novo conto da montanha do torga
em que o velho garrinchas ficou preso na serra quando tentava chegar a casa para o Natal
a neve e a noite chegaram depressa e obrigaram-no a refugiar-se numa capela

sozinho
juntou a imagem da nossa senhora e do deus menino
fez de josé e consoou

e lembro-me disto a cada ano
nesta noite mágica 

dia 357

a sombra vincada na parede esfuma-se em penumbra até entrar de vez na luz
e o que foi perde-se na luminescência e na poalha brilhante da claridade

curiosamente o contrário não acontece
a luz não se perde no breu
ela apenas se cala
e mesmo quando se apaga
um eco cintilante retine nos confins dos devaneios

uma faísca dura eternidades
mesmo se fugaz
tatua-se na retina do soterrado
nunca o abandona
nunca o deserta
permanece
insiste numa teimosia inamovível

dia 356

a imagem terá o seu simbolismo
e como uma aparição
revelou-se inesperada

era um poeta cego erguendo uma tocha

para quê
se era cego

perguntou-me o meu companheiro de bebida

por isso eu pensei em simbolismo
não o saberia explicar

um cego com archote
por que raio

talvez para os que não fossem cegos
para que o possam ver
já que ele não pode

ah
assim percebo

e
de acordo calámo-nos
bebemos até ser dia e o dono do bar nos atirar pela porta de volta ao mundo

dia 355

a busca constante da faísca
da centelha que inicie o derradeiro incêndio
para que o fogo se aviste desde o infinito da noite
para lá do horizonte
que as chamas se elevem pelo céu
e o pirómano se extasie

mesmo que estas chamas ardam nos versos
que apenas queimem as páginas do livro que ninguém escreveu ainda
e fulminem os olhos como os relâmpagos nas grandes planícies do oeste

a alma precisa de fins do mundo
ela implora por apocalipses e cataclismos
o espírito anseia pela grande tempestade dos sentidos


dia 354

um caminho empedrado e coberto de neblina
ninguém o percorre mas todos o conhecem

e desde que há tempo no mundo
perguntam para onde vai e para onde leva esse trilho

os que o espreitam não se aventuram
os que o cobiçam não se atrevem
os que o desdenham não são honestos

talvez um dia
alguém se perca
e por distracção por ele caminhe

assim começam muitos dos grandes feitos

por engano

dia 353

a água brotou por entre as pedras
vinda de uma mina profunda
invisível aos olhos mas viva na alma das gentes dali

e era pura
límpida como as manhãs frias e de sol no inverno

escorria pelas mãos seguindo as linhas da sina
como que um dilúvio desabando sobre o futuro aí escrito

no fim
as mãos sem rugas
lisas
o porvir oculto e indecifrável
ilegível até para o maior dos adivinhos


dia 352

o primeiro instinto seria cerrar os dentes e fechar os olhos
esperar pelo impacto e reagir

mas não
sereno
impávido
até mesmo aluado
levou o murro e não reagiu

cuspiu um dente ensanguentado
e perguntou



dia 351

talvez também aqui
neste silêncio
tenhamos que calar ainda mais

fazer silêncio no próprio silêncio
porque partiram demasiados este ano
e nisto dos versos 
o que os forja
é antes de tudo o resto
a comunhão e a fraternidade
a liberdade de estarmos tristes e saudosos
mas juntos
e apesar de tudo
gratos

dia 350

fui o primeiro a chegar
sentei-me no meu lugar e pedi a bebida do costume

tenho por hábito sentar-me de costas para a entrada
mas dessa vez não

quando o casal entrou
consegui assistir a tudo

e no tribunal meses depois
refutei os termos da acusação

ele tropeçou sozinho
disse eu ao doutor juiz

à noite
na cama com ela
a mentira deitou-se connosco

não se dorme bem quando há gente a mais na cama

dia 349

esgota-se o ano e esta contagem

pergunto-me o que vai sobrar

porque no último dia
no dia a mais que este ano tem
não vai caber tudo
não vai caber nada

dia 348

as lengalengas intermináveis
as longas onomatopeias da alma
as linhas da mão lidas sob o luar
os perfumes do nevoeiro em rodopio
as canções de amor de outros tempos
os escapes que acabam nos precipícios
os saltos para o infinito
a certeza da incerteza e o contrário ao contrário

a poesia escrita em sangue e cuspe
os gritos e uivos de quem vive como um cometa ou uma bomba que nunca acaba de explodir
a sede
sempre a sede
o desespero desta sede e a tenebrosa verdade de que nunca
nada
ninguém a pode saciar

mas saber
que assim é que vale a pena 

dia 347

tomou de assalto as paredes
e nas noites perdidas do verão
pelas esquinas e becos e ruelas
escreveu e pintou o mais que pôde
tatuou na urbe nocturna traços que o tempo foi engolindo

por vezes
nos meus passeios
reencontro um desenho ou um resto de frase numa fachada velha
e relembro-o
de como era louco e selvagem

e imaginário

dia 346

que luto pode caber num livro
ou que silêncio num outro silêncio

e que dia de chuva pode chover de novo
ou que manhã de luz não termina nunca de amanhecer

estas perguntas espalhadas na alma
e uma janela aberta para um mar enlouquecido
por onde o olhar sem açaime nem trela nem dono se incendeia em correria

a sede de morder o horizonte
de o ferrar até rasgar
para que céu e oceano se despenhem de vez
ou
pelo menos
uma vez
para vermos como seria tudo isto

dia 345

o que procuro nisto
nunca é muito certo

às vezes um exorcismo
outras um jogo de palavras

mas o que importa
é o verso final
pois é esse que se propaga no eco

como as últimas palavras de um condenado

dia 344

imitar murmúrios
e assim chegar ao silêncio

navegar os ruídos do dia
até não se ouvir mais nada

abraçar a noite
e o véu negro da madrugada

cair para lá da gravidade
escrever o testamento e lê-lo em voz alta

deixo tudo
a todos

dia 343

ardemos
e no incêndio chamas
o verbo ou as labaredas
não sei

mas ontem sonhei que era o meu último dia
e o fogo de hoje confirma que reencarnamos na explosão dos nossos corpos
e então
o último dia afinal foi hoje

amanhã
pela manhã
voltamos a colher lenha

dia 342

os venenos e as curas
a nostalgia e a apatia
as longas horas de espera e os sonos sem sonhos
as convicções e os abandonos
as entregas e os furtos

e o infinito
que um dia acaba para sempre
como um eco

dia 341

eram sombras
e cobriam o quarto
talvez umas meias no chão
provavelmente atiradas durante a noite quando calor da cama já era demasiado

dormiam

e neste cenário
para além deles e das meias no chão
a voz do poema também presente

se um deles acordasse
será que se assustava com a intrusa
e que no sobressalto o outro acordaria também
e será que a voz perante os olhares de pânico
se escapava como um felino pela porta

estas perguntas ficam sem resposta
pois o sono era pesado e a voz apenas sussurrava

dia 340

da janela dá para ver durante toda a madrugada
um semáforo a soluçar até ao infinito

e nas noites de chuva
sobre o vidro molhado de mil gotas
a luz multiplica-se mil vezes
todo o universo replicado nessas bolhas
e o olhar
perdido
mergulha nelas até o sono tudo igualar

dia 339

mais um daqueles que faz de cambalear uma arte
pondo-se a discursar no meio do bar para todos ouvirem
como se não tivéssemos
cada um de nós
mais nada para fazer
como se as nossas bebedeiras não importassem 
como se um bêbado fosse mais que outro bêbado

mas lá dizia o homem coisas sem sentido
até que uma música começou a tocar
e ele
encarando as coisas do amor
parafraseou Jacques Brell
e antes de cair para o lado disse

não me deixes pas

dia 338

o pó espera
a cinza já não

dia 337

coisas assim
como uma vela a arder
a insistir na chama
a teimar no fogo
a resistir pela noite
decidida até ao fim
incorruptível

e se acaba não é por ela
acaba porque o mundo é finito
e as coisas assim
como uma vela a arder
e a insistir
e a teimar
e a resistir
pertencem ao infinito

dia 336

dormem num mar silencioso
esperam nas insónias e nos suspiros
conspiram até transbordarem da alma
em pranto
ou em soluços
ou
por vezes
em colapso
como os castelos de cartas

anónimos
livres e melancólicos
fadados ao esquecimento
efémeros como os primeiros flocos de neve

dia 334

o céu e nada mais
que ele se anuncie numa tempestade derradeira

e usar estas frases como lema
nem que seja a fazer de conta
que isto de simular uma existência prende-se muito com a pose e com o estilo

pelo menos ter a decência de enganar as gentes
mas fazê-lo com classe
com a vaidade de um pavão que nem sabe que está depenado mas que nem isso importa

o céu e mais nada
e uma gabardina
e uns óculos de sol
e um humor tão corrosivo que entre a gargalhada e a vergonha e a melancolia nasça uma dúvida cheia de certezas

e claro
uma bebedeira daquelas