campo de visão
gomos de laranja fresca
dos lumes
li
trémulo instante
passado
ela é água
e semear solidões pacientemente
é uma arte que se perde em passado
e é sabido que num passado não se toca
ele é igual àquelas estátuas de sal e de areia que a lava de um vulcão calcinou e esculpiu
ao mínimo toque em poeira e cinza se desfaz
um passado é uma onda
rebenta e desaparece sozinho
il s'en va tout seul
dia vazio
a cova
escrever na areia
madrugada
campos imensos
do inominável
atravesso silêncios novos de ausência
pensava que os conhecia a todos
mas no jardim das infinitas campas de versos apagados
há sempre mais um segredo que se revela
jazem as palavras que enterrei nos atos indesculpáveis da vaidade
e nos arrependimentos literários que me acometem
são incontáveis as palavras que apaguei e que traí
como também são indizíveis as razões desses crimes e dessas traições
a indignidade de não se dizer uma verdade prevalece perante as ondas do esquecimento
atear ruídos é uma atividade de pirómano lírico
que perante as eternas florestas de poesia
sonha em ver um grande incêndio cujas labaredas engolem nada
para no fim restar somente uma chuva de cinza de poeira e de solidão
nunca és tu que escolhes
havia um jardim
do amor já tudo se culpou
e já tudo se perdoou
Pequena trilogia do nada
o náufrago
talvez tudo tenha visto
da intransigência
não sei
esperar para não saber de vez
indizível
existe um silêncio alienado nos corredores dos hotéis
uma penumbra de silhuetas difusas que me falam nos entretantos
o que dizem ainda não entendo bem
mas todas as histórias que valem a pena começam no indizível
sem tudo
das coisas que temos
e das coisas que nos têm
do que escolhemos
e do que nos escolhe a nós
ficamos com nada
ficamos somente
sem tudo
com sangue
as palavras não têm átomos
sua essência é de uma outra dimensão e somente a alma as pode decifrar
o enigma é esse
como demonstrar que o espírito se torna coisa vindo do nada?
como provar que a poesia é alimento invisível do espírito?
como escrever senão com sangue?
dia mundial da poesia
forcei a escrita
mas esqueci que o milagre é sentir a queda vertiginosa do que é a própria poesia
poesia
que era poema
poema que era verso
verso que era palavra
palavra que era letra
letra que era silêncio
silêncio
silêncio
silêncio
nuvens
nuvens
leves e suaves escamas de céu
frutos de um outro mar
seres de um oceano etéreo
ora esfumam-se ao longe em suspiro de sol
ora esvaem-se em chuva de prantos invernais
quando à terra descem feitas neblina e brumas sebastiânicas
é um outro rei que se vislumbra
Artur e sua derradeira espada
Excalibur
é na verdade uma pena com toda a poesia possível
Camelot e os cavaleiros
um caderno vazio e uma irmandade de poetas
as nuvens não são nuvens
são a promessa da infinita beleza da liberdade e de todos os versos por dizer
são o lugar preciso entre o silêncio e o uivo ancestral da poesia
sem título
dás por ti coberto de uma pele que nem sabias ser a tua
pelos poros uma lembrança insiste em invadir-te
e pelos lábios uma água nova inundou-te com fogo
afogas-te nessa noite recente onde um relâmpago clareou um chão de sala, um sofá e dois copos vazios
porque há sedes que não se saciam
na tua boca e nas tuas mãos ainda sentes a sombra incandescente de uma flor cor de verão que brotou de surpresa gravando no olhar a sua silhueta leve e desconcertante
já te perdeste
não há mapas nem bússolas nestas coisas
38
38
assim feitos
poderiam ser outros trinta e qualquer coisa ou sessenta ou vinte
que importa?
no dia a seguir à morte de Stephen Hawkin que detalhe inútil é este de uma idade?
sem sequer ousar entrar na inteligência do que ele alcançou e revelou, ouso, pelo menos, na intuição de ser humano, entender que o tempo é somente poesia
o correr de um verso para outro
e que nesse correr, espaço digamos, se curva, se move e se expande segundo leis que já cá estavam
não sei
talvez possa dizer
do alto dos 38
que o tempo não me apanha nem me restringe
que antes comunga comigo o destino da eternidade
ambos livres e prisioneiros de paixões e vontades
filhos do que é belo e infinito
de lanço
o que é eternamente fugaz
"desansiar-te"
um nada
ser-se
um caderno
Concebamos todas as leituras que nunca chegaram a ser, todo o silêncio sobre o silêncio, camada e mais camada, pele sobre pele de corpos mudos.
Reencontrei o caderno. As palavras nos sítios onde as deixei, não ocorreu o milagre de alguém as reescrever. No fundo, perdidas já estavam elas e perdidas continuam. Para além de um incêndio, a poesia é uma perdição constante. Ela é um lento voo de pássaro sem rumo.
dos absolutos
fenda
Talvez as fendas estejam por todo o lado.
No espaço entre quem se ama, onde o próprio ar se lasca e estilhaça com mil sóis a reluzir e a vibrar em sombras luminosas, caleidoscópios derramados por paredes imaculadas.
a cinza do nosso luto
o desenho da tua presença esfumando-se pelo quarto
quando me levanto, imito a tua rotina e acabo por sair também
se sem testemunhas os lençóis ainda se contorcem e se o mar entra pelas janelas abertas e inunda tudo isso, afogando de vez a madrugada em esplendor de passado, de lembrança
talvez escreva por isso, para deixar um vestígio mais dos incêndios das nossas noites
que não sejam apenas os nossos corpos solitários a prova de que é possível o milagre de dois corpos entrarem em combustão
que a poesia também seja a cinza do nosso luto
a poeira de sal e enxofre
e de que também se criam estrelas e galáxias em quartos virados ao mar
e não somente nos infinitos cósmicos
o tal silêncio que se diz
pórtico
a ideia de que se pode agarrar uma emoção
de a ter nas mãos como um punhado de areia quente
de a agarrar até ao sangue
tingindo-a de escarlate e penumbra
senti-la não só na alma mas também no corpo como um estremecer do âmago
um sismo orgânico
qual vertigem sensorial
poder falá-la, descosê-la da língua subterrânea do espírito e estendê-la em versos com a força de mil ondas
num maremoto lírico sem igual
tatuar essa emoção em cada canto de ruga
torná-la o mapa visível do meu destino
breve cataclismo do que própria matéria pode suster
um pórtico entre o que à alma pertence e o que à terra diz respeito
uma janela para esse limbo que um olhar por vezes também desvenda
metamorfoses pronominais
após
quietudes nocturnas
ensaio sobre notas de prova de vinho do porto
vinho do porto tawny
das canetas
Cada vez que me calha uma caneta diferente, brota-me dos dedos a obsessão de escrever, de lhe destapar o sussurrar e sentir os murmúrios. Deslizo pelo alvo de um papel, é um vício, uma condenação, uma inevitabilidade.
Curiosamente, sou um perdedor de canetas inveterado, semeio-as no esquecimento de um lugar perdido. Das que gosto, quando as perco, fica-me um silêncio desolador nas mãos e as palavras choram-se (sim, reflexivamente), esfumam-se.
alto mar
e um mar de sombras
onde as ondas se elevam como crinas de cavalos selvagens
chegando a uma praia de luz
espraiam-se em línguas de penumbra desenhando silhuetas numa areia tão branca que julgamos ser feita de nuvem
e as tempestades nascem ao largo em vagas imensas que são elas próprias oceanos inteiros despenhando-se no céu mesmo junto à linha do horizonte
dobrando-a como uma corda de guitarra
e os estrondos que provocam são hecatombes em si mesmo
gerando outras montanhas de breu
escurecendo o sol
atenuando-o numa lua pálida por trás da poeira celestial
em terra
abrigado
assisto a tudo isto
e penso no que poderia sentir e eventualmente escrever
mas não sinto nem escrevo
e nesses nadas um outro cataclismo se ergue
mais imenso mais infinito do que aquele que vejo
há no marasmo do silêncio as combustões de todas as estrelas e galáxias
todo amor e toda a desilusão
e recordo o que li uma vez num sonho de uma mulher
talvez não te tenha amado em certos momentos em que te amava e talvez te tenha amado noutros momentos em que tu te apagavas
desses desencontros de há mil anos
semeámos a quietude que agora grita em alto mar
lobos
No céu, ao longe, gaivotas voam cortando nuvens e tons de azul. Sobre os telhados, existem lobos que esperam a noite. Uivam em silêncio, e esta aparente contradição explica-se pela lua invisível que não desponta. Esses lobos habitam em versos que eu não escrevi, e são a derradeira alcateia a velar sobre a poesia. Guardiães de palavras e do peso que estas carregam. Têm nos olhos todas as histórias de amor, todos os beijos e todas as vertigens da alma. Movem-se juntos pelos telhados das nossas casas e aninham-se em cantos de penumbra quando o sol queima ou em abrigos quando a chuva cai. Noites há em que o uivo deixa de ser silencioso e rasga todo o firmamento, vibrando pelas paredes do que somos e estilhaçando a nossa alma como quando cedemos a um abraço ou carinho.
Os lobos não se domam, são a ultima fronteira do que é ser livre e apaixonado. Os lobos são fogo, incêndio de vida, cataclismos permanentes, como lá nas profundezas do cosmos, quando as galáxias colidem.
Paraíso Infantil
Acho que já escrevi sobre ela antes. Mas agora nem é bem sobre ela que escrevo.