a escrita ausente da tua rotina por força de uma preguiça que te povoa desde que te conheces
escudas-te na inspiração que te visita a espaços
que se molda numa falsa perfeição, numa aparente verdade que julgas alcançar
e isso te satisfaz fugazmente, como um arrepio, um orgasmo, um papel atirado de longe para um caixote
na verdade para escreveres precisas de duas coisas: ler (e isso cumpres) e insistir no erro permanente de tentar (isso já não cumpres)
errar sempre, errar melhor, teimar, marrar, sentares-te todos os dias e estatelares-te no branco silêncio das folhas, fazê-lo com casmurrice irredutível, com uma fé no absoluto desalento de escreveres nada e nada
e muito nada e ainda mais nada de jeito
recorda-te de um professor que tiveste ainda na escola
um homem que entrava a declamar poemas em alemão numa aula de francês
um homem com cara de cientista louco
e que perguntava com uma certeza inabalável lá no meio:
"quando nada tens a dizer, o que dizes?"
e leva isso contigo, a partir de agora, todos os dias para o que tens a dizer
e escreve, pouco, muito, muito pouco, muito mal
constrói uma disciplina férrea e dedica-te a ela como um culto
fá-lo secretamente, nas sombras, na quietude
ou à luz do dia, no corpo por tatuar dos teus cadernos silenciosos
regressa aos cafés onde mergulhaste no passado, semeia-te na tua nova sala e colhe o que as esquinas te ditam
compõe prosas e versos mutilados pelo teu atabalhoamento
faz da palavra o escape de uma voz por descobrir como dizia o Cohen
encontra-te com todos os vultos ainda por moldar
sê o que nunca imaginaste
e quem sabe talvez possas, como sempre, deixar mais esta promessa por cumprir
e é sabido que enlouquecem os homens que não cumprem as promessas
mas tu sabes também, que muitos enlouqueceram
por promessas terem cumprido
escrever, a loucura inevitável.