Mães Natal

As Mães Natal.
Aquele ali, desfocado, poderia ser eu, assim todo aperaltado mas sem jeito, mãos à frente do vulnerável.
Feliz Natal.
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A arte de não esquecer nunca

Percorri a livraria em tua busca. Algo que tivesse os teus olhos ou, pelo menos, uma simulação deles. Sondei a ver se a tua sombra descansava numa qualquer estante. E então aconteceu. Vi-te, de azul, na capa de um livro, o teu nome impresso num fundo branco, ligeiramente subido ao mesmo tempo que tombava. Não sei explicar melhor a não ser que eras tu. Comprei o livro. Será teu. Nosso portanto. E ao afastar-me da livraria já com o livro comigo, soube que estás em muitos sítios para além de ti e de mim, que o mundo te semeou e espalhou pelo seu infinito. Que me aconteça de tudo, menos perder o conhecimento de te encontrar em tudo o que vejo, nem que seja para me doer a saudade. O amor é a arte de não esquecer nunca.

Nó cego

Vamos ouvindo conselhos, alguns que seguimos outros que não. Talvez me faça falta, agora, nesta hora exacta, ter seguido algum dos que não segui. Mas os conselhos não são milagres nem definitivos, tem de haver em nós os pés certos para os seguir. em muitos casos os pés não são os certos, são mancos ou trapalhões, e então tropeça-se ou desiste-se. No fundo, seguimos os conselhos possíveis, pois a impossibilidade é o que rege tudo o que não alcançamos. Faz-se o que se pode, mesmo se teimosamente acedamos que podíamos fazer mais.
Desembrulhem lá isto que eu ceguei o nó.
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O vazio que tens em ti

Já estiveste muitas vezes perante o vazio de uma folha em branco. O terror que provoca não vem desse vazio da folha, vem do vazio que tens em ti para lá meteres. O mundo tem muito silêncio para lá dizeres as tuas palavras, o problema está no sentido contrário, na ausência das tuas palavras, na tua impotência para as descobrir e lá as plantares para calares quer o silêncio da folha quer o teu silêncio. Pressentes que para além do teu próprio atabalhoamento, existe também o medo do que possas ter a dizer. É que sabes agora que isto não é fácil. Ampara-te o conforto de saber que também não teria que ser fácil, mas a verdade é que até agora tinha sido fácil, mesmo nos momentos em que te queixavas no passado. Agora que sabes que é difícil já não é bem queixares-te, é antes bateres com a cabeça e aguentares. É mesmo isso, aguentar, aguentar ao máximo, até esse aguentar se transformar naquilo de que já ouviste falar: resistir. Não será resistir no sentido ideológico e massacrado pelas fés, mas antes no sentido final e eterno da palavra, resistir como homem, como humano e ser individual perante tudo o resto. Isto se o teu corpo ajudar. Se o teu coração não rebentar e a alma se te não verter pelos poros.
Tudo isso só é possível porque sabes que não estás só.
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Invernou

Invernou. O tempo alonga-se um pouco mais entre a chuva e o frio e é mais fácil sentir-se o silêncio das coisas. Os livros ganham mais peso nas estantes e a música estagna na sala quieta. A ausência de ti próprio revela-se nas sombras e o teu atraso para com o destino torna-se ainda mais evidente. Mas é sabido que ao destino ninguém escapa e quando ele chega é já tarde demais.
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Ecos

As ruínas carregam o eco do passado. Suspender um verso um dia inteiro numa solitária folha de papel, e esperar que o resto do poema se escreva. Em vão. Pode não parecer, mas os ecos são silêncio, são ausência cumprida, são ilusões, sombras de Oniros há muito extintos..

Almas soterradas

Dissemos algumas coisas, mas muitas mais houve que não dissemos. O medo de termos de lidar com algo mais do que os nossos corpos a suarem juntos era terrível. Através do silêncio ofegante da nossa entrega carnal, expiávamos o que havia para expiar, e sabíamos que qualquer palavra pelo meio seria, para além de um tormento, inútil. As nossas almas, há muito soterradas, nada tinham para se dizer.
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Não há milagres

A mente sempre escreveu mais que o punho. É que o punho tem o defeito da matéria e do atabalhoamento. A mente, essa, é divina, executa a perfeição do sonho, a ilusão das ideias e dos sentimentos. O punho quando chamado à lavoura vale-se do possível, enquanto que a mente sorve do impossível. Por isso escrever é tão difícil. Do impossível ao possível vai a distância do talento sim, mas também das leis da física, da matemática, da matéria. Não há milagres.
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Lira

Seis anos.
Cria-se uma ideia de amor. Não sabemos bem como nem quando nem porquê. Cada um vai sentindo-o conforme o destino o sopra. Uns mais cedo, outros mais tarde. A partir do momento em que se revela, a ideia do amor, apesar de abstracta, tatua-se bem fundo e fica-nos na alma para sempre. Mesmo quando a experiência desse amor se transforma quer em desastres ou desilusões, nos inúmeros rostos que lhe vamos dando e que vamos vivendo, mesmo quando o amor falha com um outro, a "ideia" permanece, e mesmo após esses desastres, desilusões, ou até mesmo traumas, lá no fundo, o amor existe e, de alguma forma poética (real, portanto), vagueia em nós o sonho de ter a sorte de o experimentar à flor da pele, de o reconhecer no sorriso ou no gesto de um outro.
Tenho a sorte de uma Lira ir tocando essas cordas mágicas, fazendo emergir lá do meu fundo, com essa melodia, a tal ideia que tenho do amor, podendo senti-lo também à superfície de mim e para lá de mim, como a explosão silenciosa de uma super-nova.
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O actor

As vidas vazias a que assiste reconfortam-no de certa maneira. Sabe que pelo menos não está totalmente só. Observa os gestos dos outros entre eles, e reconhece, nesse espectáculo, a inutilidade dos mesmos. Não é hipócrita para se julgar diferente, sabe bem que representa no mesmo palco, que para poder sobreviver (nem que seja dele mesmo) necessita desses gestos inúteis, desse desempenho de um papel que por imitação representa. Mas também sabe que a consciência de estar a representar a inutilidade, assalta-lhe cada vez com mais frequência, e isso torna-o pensativo, que como se sabe, é meio caminho andado para tomar resoluções. E sabe que se tomar resoluções, serão novas promessas que deixará por cumprir. Os loucos são aqueles que não cumpriram promessas ou que tudo fizeram para as cumprir.
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A trilogia inexistente

A ideia está mais ao menos clara, que é o mesmo que dizer assim-assim ou que existe mas que lhe falta corpo.
Uma história de amor, pois claro. Ou melhor, a história do amor que um homem sente por uma mulher, do deslumbramento dele perante ela. O homem refugia-se, deixando-a inesperadamente por uma razão que se mantém oculta até ao fim. Após o seu refúgio, o homem escreve cartas e mais cartas à mulher que ama mas que abandonou, nunca obtendo resposta, desculpando-se mas não se explicando. Passado uns anos, confrontado com uma doença que lhe dá pouco tempo de vida, decide escrever uma última carta, passando, a partir desse dia, a escrever-lhe apenas mentalmente, num relembrar constante da memória que tem deles quando estavam juntos, e iniciando um estilo de vida decadente. Nesse relembrar, para além das memórias, vai falando virtualmente com ela, relatando-lhe, também, o dia-a-dia, a rotina, as pessoas que encontra, os medos que tem, as esperanças que perdeu e aceitou, entre outras coisas.
Descobre após esse monólogo interior, através de um amigo comum, que a mulher que amava, tinha morrido pouco depois de ele a ter abandonado. Apercebeu-se que todas as cartas que enviara nunca tinham sido lidas, que tinham ficado em silêncio algures.
Mais tarde ainda, a doença de que sofria entra em regressão, o que faz com que sinta uma inexplicável vontade de regressar à sua vida passada, voltar ao apartamento da mulher que amava e reler, ele, as cartas que escrevera e que ela nunca recebera. Inicia aí uma luta para reaprender a viver com os outros, e na leitura que faz das suas próprias cartas imagina as possíveis respostas da mulher que morreu sem as ler.

Depois há a última ideia. A ideia de que a história desse homem é, de facto um livro escrito por alguém. À porta desse alguém bate um outro homem que diz ter-se apaixonado pela mulher do livro, e que pretende, de alguma milagrosa forma, materializá-la. Por isso vai a casa do suposto escritor, faz-lhe perguntas de onde terá tido a ideia para retratar tal mulher. O homem obcecado é um génio louco. E após enveredar por uma aventura surreal, que vai desde conhecer todas as mulheres que o escritor conheceu afim de averiguar se existe alguém real igual à personagem de ficção, até tentar, por via da representação, "encontrar-se" com a personagem, passando por experiências envolvendo química, biologia e física. No fim, é a feitiçaria que lhe dá uma oportunidade de encontrar-se com a tal mulher: o homem tornou-se literatura e num livro, escrito pelo escritor do livro das cartas e do homem que amava a mulher, o génio louco alcança o tão desejado encontro.
É mais ao menos isto, em três volumes, inexistentes, a não ser nas caves do meu pensamento. Isto há mais de dez anos.
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Da solidão

Ao fim da tarde, sentado na penumbra da sala, após mais um dia vazio, é quando a ideia o atormenta mais. É nesse particular momento do dia que a lembrança dos serões solitários (mesmo quando tinha companhia) o visita. Agora está só mas não está solitário. A solidão é uma certa melancolia que se eleva de dentro, sustentada por um sopro inexplicável. Sente-lhe falta. Porque a solidão combate-se, a golpe de lágrimas, poesia ou whisky. Já o estar só não se combate, desvanece-se em apatia, afunda-se.
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As palavras

Elas estão sempre aí, nem que seja em silêncio. O problema tem sido que o ruído da tua ausência tem-nas atirado para o olvido. Quando te lembras delas é com amargo de boca, é o arrependimento do abandono, da desistência. Não é por queimares em sonho futuros inexistentes que, de alguma forma, pagas a dívida. Fazes mal. Deverias lutar um pouco mais por elas. As palavras.
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Lendo


Continuo no meu périplo anglo-literario-marítimo com o Moby Dick. O vocabulário náutico e piscatório escapa-me, mas o espírito da odisseia envolveu-me desde o início. Isso e o tom de Ishmael, que apesar do rudeza e espíritos selvagens do mundo em seu redor, relembra-nos a cada frase que se trata de valores, de humanidade, de honra e dignidade. No fundo, de pura condição humana.

Once more. Say you are in the country; in some high land of lakes. Take almost any path you please, and ten to one it carries you down in a dale, and leaves you there by a pool in the stream. There is magic in it. Let the most absent-minded of men be plunged in his deepest reveries- stand that man on his legs, set his feet a-going, and he will infallibly lead you to water, if water there be in all that region. Should you ever be athirst in the great American desert, try this experiment, if your caravan happen to be supplied with a metaphysical professor. Yes, as every one knows, meditation and water are wedded for ever.

Yes, there is death in this business of whaling- a speechlessly quick chaotic bundling of a man into Eternity. But what then? Methinks we have hugely mistaken this matter of Life and Death. Methinks that what they call my shadow here on earth is my true substance. Methinks that in looking at things spiritual, we are too much like oysters observing the sun through the water, and thinking that thick water the thinnest of air. Methinks my body is but the lees of my better being. In fact take my body who will, take it I say, it is not me. And therefore three cheers for Nantucket; and come a stove boat and stove body when they will, for stave my soul, Jove himself cannot.

Yes, the world's a ship on its passage out, and not a voyage complete; and the pulpit is its prow.

But, perhaps, to be true philosophers, we mortals should not be conscious of so living or so striving. So soon as I hear that such or such a man gives himself out for a philosopher, I conclude that, like the dyspeptic old woman, he must have "broken his digester."

The more so, I say, because truly to enjoy bodily warmth, some small part of you must be cold, for there is no quality in this world that is not what it is merely by contrast. Nothing exists in itself. If you flatter yourself that you are all over comfortable, and have been so a long time, then you cannot be said to be comfortable any more.

Queequeg was a native of Rokovoko, an island far away to the West and South. It is not down on any map; true places never are.

I say, we good Presbyterian Christians should be charitable in these things, and not fancy ourselves so vastly superior to other mortals, pagans and what not, because of their half-crazy conceits on these subjects. There was Queequeg, now, certainly entertaining the most absurd notions about Yojo and his Ramadan;- but what of that? Queequeg thought he knew what he was about, I suppose; he seemed to be content; and there let him rest. All our arguing with him would not avail; let him be, I say: and Heaven have mercy on us all- Presbyterians and Pagans alike- for we are all somehow dreadfully cracked about the head, and sadly need mending.

A soul's a sort of a fifth wheel to a wagon.

But when a man suspects any wrong, it sometimes happens that if he be already involved in the matter, he insensibly strives to cover up his suspicions even from himself. And much this way it was with me. I said nothing, and tried to think nothing.

Ship and boat diverged; the cold, damp night breeze blew between; a screaming gull flew overhead; the two hulls wildly rolled; we gave three heavy-hearted cheers, and blindly plunged like fate into the lone Atlantic.

For what are the comprehensible terrors of man compared with the interlinked terrors and wonders of God!

No small number of these whaling seamen belong to the Azores, where the outward bound Nantucket whalers frequently touch to augment their crews from the hardy peasants of those rocky shores.

How it is, there is no telling, but Islanders seem to make the best whalemen.
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Roma


Roma. A poeira dos imperadores persiste. Cobre a Roma dos Papas, mesmo se esta se tenha talhado em ouro, mármore e génio. Mas a poeira persiste e constrói a geometria da cidade, está-lhe na matriz. Nota-se que tudo é imperial, tudo é reverência e tudo é majestoso. A civilização nasceu das ideias de Atenas, mas foi aqui que se materializaram, para o bem e para o mal. Do início ao apogeu, do excesso à queda, que apesar de ter sido total, aguenta-se ainda no imaginário e nesta tal poeira. As sombras de Roma são infinitas, mesmo quando lhes rebenta o sol de Agosto em cima.
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Palavras ocas

Foi-se perdendo nele uma certa espontaneidade de palavras. Dantes sentia como que um rumor a brotar-lhe das mãos que o impeliam a escrever. Agora, apercebe-se que esse rumor foi desvanecendo. Sente-lhe falta. Apercebe-se que apenas resta um hábito vazio desse tempo. Palavras ocas. Sabe que as palavras ocas fazem ruído.
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José e Pilar

José e Pilar. Não quis ir ver ao cinema. Vi-o este fim-de-semana em casa com a Lira, no escuro. É sempre interessante termos a prova de que os imortais também são feitos de pele e osso, e que vão sendo carcaças como nós. E é bonito ver-se uma história de amor, com os seus limites terrestres e os seus infinitos de espírito.
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A crença

Chegou à conclusão que os conselhos que nunca lhe deram, fazem-lhe tanta falta como aqueles que lhe foram atirando. Poderá ter sido muita como nenhuma. A verdade é que cada decisão que acabou por tomar foi baseada num instinto. Instinto esse baseado na crença irresponsável de que há uma escapatória a tudo. As crenças são mesmo assim: irresponsáveis. Não têm de ser de outra forma.
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Decapitação

No turbilhão já gasto do meu atraso, está o Moby Dick, o Medo do Al Berto, o Ofício Cantante do Herberto Hélder e um livrinho engraçado do Woody Allen (Side Effects). Junto-lhe agora o "Leite derramado" de Chico Buarque.
São tudo livros que vou lendo aos soluços.
De resto, não tenho escrito nada. É assim, os desertos semeiam-se a eles próprios, e é complicado medrar o que quer que seja em chão árido.
Não são queixas nem lamentos, são o que são, que não sei que sejam. Como disseram os pais de Swift "Let the saw do the work"... até à decapitação final.
.ss

Penafora

Eu sei, eu sei, isto está um marasmo. O Penadentro ainda não levantou voo, por isso vou continuar por aqui. Está a chover. E não é pouco.
.E

Penadentro

O blogue "a pausa e o silêncio" vai acabar em breve. Mas desta vez, termino um blogue por uma razão diferente que não um "desalento" ou um "fim de linha" criativo. Comecei nos blogues há já uns bons anos (julgo que em 2004) tendo passeado em registos variados. Mas como em tudo, os inicíos é que marcam. E o início foi um blogue com o meu amigo Miguel chamado Penadentro (na verdade eram três blogues num, política, lazer e literatura). Pois tenho a dizer que o Penadentro vai regressar em breve com a dupla do princípio. O Miguel andou a correr o mundo e eu andei por aí, agora vamos regressar ao local do crime.
Novidades para breve.

Carcaças e amputados

Apagam-se os velhos e nós a ver-lhes as carcaças, não crendo que um dia mais tarde seremos nós as carcaças. Apagam-se novos por vezes, e nós a ver-lhes a vida amputada, não acreditando que pode ser a nossa que de repente se quebra.
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Lendo

Gente de Smiley, de John Le Carré.


Hei-de recordar sempre as palavras de um comediante de Berlim quando, contra todas as previsões, o Muro de Berlim foi finalmente demolido. "Perdeu o lado certo, mas venceu o lado errado."


Ostrakova sentou-se à secretária do seu defunto marido e escreveu ao general com a franqueza que as pessoas solitárias reservam para os estranhos...


Além disso, há uma certa camaradagem entre dois homens que contemplam um cadáver.


Há pessoas que conhecemos e nos trazem todo o seu passado como uma dádiva natural. Há pessoas que são a intimidade em figura de gente.


Passou um rapaz de bicicleta com um gorro de lã vermelho e o gorro deslizou rua fora como um archote até ao nevoeiro o apagar.


E que, uma noite, ao ouvir a mãe rezar durante o sono, ele mandara os seus homens buscá-la e eles a tinham levado para dentro da neve e nunca mais ninguém a vira: nem sequer Deus, que ainda andava à procura dela.

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Durma-se

O atraso, ai o atraso. Já escrevi sobre o conceito, sobre o enguiço do adiar e de como nos aliena subtilmente. Tenho lido sim. Aliás, na mesinha de cabeceira jaz o "A Gente de Smiley" lido de fio a pavio e com algumas notas para partilhar por aqui. Tal como "O Medo" de Al Berto, que vou lendo aos soluços. E agora, como anunciei noutros lugares, debato-me com o Moby Dick em inglês. Pura demência claro. Há noites atrás, quando Ismhael, ainda em terra, conhecia um estranho canibal com quem teve de partilhar cama, e eu, qual marinheiro perdido, lutava contra a torrente de vocabulário que me escapava, a luz do pequeno candeeiro fundiu. Assim, de repente. Em pleno Moby Dick, seriam umas duas da manhã, eu já encharcado de palavras desconhecidas para o meu inglês (pobre mas esperto), a luz foi-se e fiquei na escuridão com uma obra prodigiosa nas mãos. Pensei: "a morte deve chegar assim, nós sem entender muito do que se passa, mas apercebendo-nos de que deve ser algo de grandioso, e depois, de repente, o breu. Durma-se pois", pensei assim mesmo. Dá-me para isso.

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Artur Agostinho

Faleceu Artur Agostinho. Ícone do relato desportivo, dono de um porte doce e afável, presente na televisão e rádio desde que eu me lembro de ver e ouvir. Mas aquilo que mais me emocionava e que hoje me entristece um pouco mais num cantinho de mim, era a sua semelhança física com o meu avô que também já partiu. Ver Artur Agostinho era sempre experimentar uma lembraça carinhosa e terna, muito minha. Que descanse em paz.

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Eterno sabor a nada

Sabia a pouco o vento naquela noite. A solidão sabe sempre a pouco. Melancolicamente a pouco. Porque quando não se está só, quando a alma comunga, nem que seja em silêncio, o paladar encontra-se cheio, distraído com tanto sabor diferente. Mas no silêncio, no aperto de se ser deserto, o gosto das coisas é nada. O infinito será isso, um eterno sabor a nada.
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31, the aftermath

Dos 31.

Feitos. Mais um. A dois da capicua que sentenciou Jesus. Uma torradeira, o livro "Deus não gosta de nós" do fictício autor Hank Moody, algum dinheiro e o "on ten legs" dos Pearl Jam, a caixa, com fotos, posters, cd e dois vinis. Telefonemas, mensagens, beijos e abraços.
Eis o balanço de ontem.
Tudo maravilhosamente igual. Ainda bem.

Obrigado.

Para memória futura 11

Começou cedo, mas gosto de acreditar que este tipo de coisas (as paixões) já começam antes de tudo, no eterno. Teria 3 ou 4 anos e, aos domingos, lembro-me do meu avô Fernando de rádio no ouvido a beber o relato. Era o Porto. Lembro-me do meu outro avô, Francisco, contar que fora árbitro e cronometrista de várias competições (atletismo, ciclismo, natação) e que muitas foram no velhinho estádio e antigas piscinas das Antas. Lembro-me do meu pai falar que foi juvenil no FC Porto e do primeiro treino que fez nesse mesmo estádio. E lembro-me de ir às Antas, no meio de uma multidão imensa, rodeado do meu tio-avô Américo e do meu pai para ver o Porto -Dínamo de Kiev em 1987, meias-finais das Taças dos Campeões Europeus que o Porto venceria na Áustria com um calcanhar. Nesse jogo frente aos ucranianos, o Futre marcou um golo com a ajuda do defesa e recordo ainda hoje do festejo louco que o esquerdino fez. Trepando o arame farpado para ir ter com os adeptos. O André marcou o outro.
Aquando da final, estava em Bruxelas com os meus 7 anos e com a minha querida avó Beatriz, os meus pais, esses, estavam em Viena a ver o jogo ao vivo. O Porto sofreu um golo cedo e a minha avó vendo-me triste disse "não te preocupes que a Nossa Senhora vai ajudar o Porto", fiquei ainda mais nervoso e, se não me engano, fui a chorar para o quarto. Mas certo, certo, é que a "Nossa Senhora" lá foi parar ao calcanhar de um muçulmano chamado Madjer e deu o empate, e pouco depois foi parar ao voo de um brasileiro pequenino chamado Juary e deu a vitória. A minha avó teve razão, e lembro-me de na sala festejar e ver o Carlos, um amigo dos meus pais que morava connosco na altura, de joelhos em frente à televisão a festejar também.
Meses depois, é a memória do meu pai a festejar em Bruxelas, de madrugada, a vitória da Intercontinetal. Anos depois no Algarve com um bom amigo, recordo o festejo em cima de um comboio que ia para a praia festejando a vitória frente à Lazio para a UEFA e meses depois em plena Avenida Brasil, de onde escrevo, recordo-me de estar a fazer a barba no quarto-de-banho e ouvir vindo da sala, amigos a festejar o terceiro golo do Porto frente ao Celtic (quando foi o prolongamento não consegui ver mais o jogo com os nervos e decidi ir fazer a barba) e de ir a correr com meia barba por fazer festejar com eles. E toda a noite até ao Dragão onde chegaram os vencedores. Um ano depois, de novo com amigos, recordo os três golos frente ao Mónaco e de mais uma noitada na Alameda das Antas esperando de novo pelos campeões.
Lembro-me também de derrotas: frente à Sampdoria na Taça das Taças, frente ao Barcelona nas meias-finais da Liga dos Campeões, frente ao Famalicão nas Antas no último minuto, frente ao Boavista do Jaime Pacheco também nas Antas, frente ao Benfica há semanas atrás, frente ao Shalke nos penáltis. Lembro-me de empates, de jogadores, de treinadores, de jogadas e de golos.
No fundo, esta memória para o futuro, é apenas a demostração atabalhoada do que é ser-se de um clube. fSou-o pela família, por amigos e pela cidade. Outros terão histórias parecidas, outros diferentes. Há coisas que não se explicam.
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Sobre mim

Escrevi textos, em tempos idos, que eram sobre mim. Eram textos que escrevia obrigado. Textos inevitáveis. É curioso reparar que as palavras mais pessoais jorravam devido a forças mais fortes que eu, espontâneas, independentes. Hoje, quando escrevo, faço-o sob o peso da inspiração sim, mas com mais consciência, percepção. Escrevo, claro, sobre tudo, menos sobre mim. Até porque não há nada a dizer sobre mim, ou o que houver, vou-o dizendo escrevendo sobre tudo o resto.
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rumor

não tem fim o rumor que te percorre a alma, estende-se para lá de ti, como sombra projectada por um sol oblíquo. ele é já futuro com um avanço subtil sobre o teu presente mas, ainda assim, um avanço. vais sendo enquanto que o teu rumor já foi, é e será. no fundo, é tudo uma questão de tempo e modo verbal. e nessa matemática transcendente, sabes que escrever é inútil. de qualquer forma, escreves. também os há os que vão pelo seu próprio pé para o cadafalso.
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L.C.

de um verso de Leonard Cohen

Perdida. Ia à estação encontrar-se com os comboios todos. Os trilhos desertos, ofereciam-lhe um sentido ou o outro, sempre era mais que a possibilidade de ficar onde estava. E numa estação, é sabido, mesmo que um comboio não pare, por lá passa de certeza.
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Dos deslumbramentos

A cada episódio, novo assombro.

R&R

Na panóplia de sentimentos e emoções, gestos, testamentos, poesia e afins, que o rock fucking roll exprime, há um que nos comove a todos (ou devia) quando os acordes de uma guitarra/piano/baixo explode ou quando a voz/verso/grito rebenta. esse "um" é a liberdade.




















Mudo e virgem

um ano

Dir-se-ia que o mundo, à imagem da folha em branco, está deserto. Silêncio e quietude. Trata-se de um exercício. No início seria algo do género suponho. Um espaço mudo e virgem.
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Dos deslumbramentos

Tanto a dizer sobre uma imagem destas. Do nó da gravata à careta dela. O desfecho natural seria esganá-lo. Mas como se lhe é tão adorável? Até ao dia...


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Para memória futura 10

As viagens Bruxelas-Porto-Bruxelas de carro, fi-las eu umas 3 vezes por ano, entre os meus 5 e 18 anos. Recordo as primeiras, feitas num Renault Espace, dos primeiros a entrar em Portugal. Toda a gente olhava para o carro como se fosse uma nave espacial. E era. Engolíamos estrada a 170 km/h nas longas autoroutes francesas. Paravamos nos restaurantes L'Arche que eu adorava pelo aspecto limpo e perfeito. Em Espanha, no calor arrasador do deserto de Castela, dormia o mais que podia.
Lembro-me dos vários envelopes com as diferentes moedas da altura, para trocar quando cruzávamos uma fronteira.
Mas dessas viagens o que mais me fica na alma é a música. O meu pai tinha um conjunto de cassetes audio que me transportavam para lá disto tudo. Dire Straits, Bruce Springsteen, Pink Floyd, Rui Veloso, O Rei Artur de Purcell, Mozart, Rolling Stones, Karmina Burana.
O clásssico dos clássicos nessas viagens, a música que colocávamos quando chegávamos ao Porto, a alto e bom som, era os Dire Straits "Sultans of Swing". Ainda hoje quando a ouço, fico com arrepios. O solo de guitarra no final é das coisas mais extraordinárias que ouvi até hoje.


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Álgebra

Crês que te avistam de um qualquer cimo, de um qualquer topo? Que te seguem, que te acompanham? Crês que te guiam por vezes, que te aconselham pela consciência? O que respondes?
Se desenhas gestos vazios e como recompensa tens a sorte de teres os olhos abertos e alguma poesia nos dedos, aproveita. Se por acaso calhares de criar grandes gestos com significado e como sina tens o azar da escuridão no olhar, arrisca versos nocturnos.
No fundo, no fundo, as palavras são álgebra, poderás ter a sorte de encontrar a fórmula do texto certo, na hora certa.
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Esperar-te

Amanhacera devagar e sobre o mar a neblina habitual toldava a vista das ondas. Na rua eram poucos os vultos e só a espaços um carro cruzava o semáforo. Esperei algum tempo a ver se vinhas, sabendo de antemão que não virias. Talvez não devesse esperar e, dessa forma, ser porventura surpreendido com uma tua aparição. Talvez esperar desfizesse nas contas do cosmos, a possibilidade real de vires, de me apareceres envolvida num desses teus cachequóis coloridos, de me olhares finalmente e falares alguma coisa. Mas cada um faz o que pode, e eu, em frente à rua quase deserta e ao mar nublado, podia esperar-te, e era o que fazia.
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Ferreira de Castro

por Filipe

Sapatos e mala de Ferreira de Castro. Um gigante mais que ainda só folheei. Um par de sapatos e uma mala: todo um ensaio de como andar por cá a respirar.
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Lendo

Na senda de recuperar alguns dos atrasos (como se isso fosse possível!), destilarei aqui algumas pérolas que Almeida Garrett escreveu em Viagens na Minha Terra, livro que comprei por um euro e meio no Jumbo e que me acompanha há uns tempos na mesinha de cabeceira. Li-o na escola numa outra vida e releio-o agora, estando quase a chegar ao fim, esperando pelo terminus da viagem e da história da Menina dos Roxinóis. Claro que sei como acaba, mas nunca se sabe, até virar a última página tudo é possível.


O que destaco em Garrett é o que me fica a cada letura de "um dos grandes": sabedoria, talento e limpeza. Sabedoria entrelinhas, em apontamentos, em afirmações, em orgulho e firmeza. Talento nas palavras, na construção do enredo, na capacidade imaginativa de certas frases. E limpeza na pureza da língua, na clareza de parágrafos escritos por uma voz livre de gaguez, rendida à literatura e à arte de sentir.


E depois há a "actualidade". Dir-se-ia que Garrett vive nos nossos dias. Basta lê-lo.
Fujamos depressa deste monturo. - É monótona, árida sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo, porém, com raras excepções, é óptimo, e a troco de pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa como as melhores da Europa.
Quando se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.
(tenho hoje a bossa helénica num estado de tumescência pasmosa!)
Se for homem é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu, mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para nõa fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho, se o tem, sua mãe, se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse home é o tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há-de ser um maçador terrível.




Oh! que existências que eram aquelas quatro! Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E a maior parte da gente, que é gente, vive assim... E querem, quererm-na assim mesmo, a vida, têm-lhe apego! Oh, que enigma é o homem!




A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por mais estranha, que o tempo e a repetição dos actos lhe não faça natural.



Iam a cair nos braços um do outro. A singela confissão da inocência ia ser aceite por quem, e como, santo Deus! Aquela palavra de oiro, aquela doce palavra que tanto custa a pronunciar à mulher menos arteira; que, adivinhada, sabida, ouvida há muito pelo coração, dita mil vezes com os olhos, nenhum homem descansa nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, enquanto a não ouve proferir pelos lábios - ; essa palavra celeste, que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevogável sentença de um longo pleito de ansiedades, de incertezas e de sustos - essa final e fatal palavra amo-te Joaninha a pronunciara tão naturalmente, tão sincera, tão sem dificuldades nem hesitações, como se aquele fosse - e era decerto -, como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único, a ideia constante e habitual de sua vida.

As minhas janelas, agora, são as primeiras janelas de Lisboa; dão em cheio por todo esse Tejo.



É a Inquisição, são os Jesuítas, são os Filipes, é a reacção católica, edificando templos para que se creia e se ore, não porque se creia e se ora.



Coitados! Não contaram com os aperfeiçoadores, reparadores, fomentadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu lugar.
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A prazo

2011 e um atraso de uma vida, eu sei. Leituras, escritas, imagens, afirmações e possíveis negações, conclusões e premonições, desejos e promessas, exercicios de autismo profundo, psicoses, fantasias sexuais, fantasias não sexuais, amor, amizade, simulações de suicídio, fenómenos, silêncios e gestos. Tudo, para 2011 tudo isso e o seu contrário. Como tem sido até aqui. O Sol ainda brilha, mesmo se for por cima das nuvens ou do outro lado da Terra quando faz noite aqui. Mas o Sol é uma estrela a prazo. Tudo é a prazo. até o infinito.
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