Na senda de recuperar alguns dos atrasos (como se isso fosse possível!), destilarei aqui algumas pérolas que Almeida Garrett escreveu em Viagens na Minha Terra, livro que comprei por um euro e meio no Jumbo e que me acompanha há uns tempos na mesinha de cabeceira. Li-o na escola numa outra vida e releio-o agora, estando quase a chegar ao fim, esperando pelo terminus da viagem e da história da Menina dos Roxinóis. Claro que sei como acaba, mas nunca se sabe, até virar a última página tudo é possível.
O que destaco em Garrett é o que me fica a cada letura de "um dos grandes": sabedoria, talento e limpeza. Sabedoria entrelinhas, em apontamentos, em afirmações, em orgulho e firmeza. Talento nas palavras, na construção do enredo, na capacidade imaginativa de certas frases. E limpeza na pureza da língua, na clareza de parágrafos escritos por uma voz livre de gaguez, rendida à literatura e à arte de sentir.
E depois há a "actualidade". Dir-se-ia que Garrett vive nos nossos dias. Basta lê-lo.
Fujamos depressa deste monturo. - É monótona, árida sem frescura de árvores a estrada: apenas alguma rara oliveira mal medrada, a longos e desiguais espaços, mostra o seu tronco raquítico e braços contorcidos, ornados de ramúsculos doentes, em que o natural verde-alvo das folhas é mais alvacento e desbotado que o costume. O solo, porém, com raras excepções, é óptimo, e a troco de pouco trabalho e insignificante despesa, daria uma estrada tão boa como as melhores da Europa.
Quando se fizer a lei da responsabilidade ministerial, para as calendas gregas, eu hei-de propor que cada ministro seja obrigado a viajar por este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada ano, como a desobriga.
(tenho hoje a bossa helénica num estado de tumescência pasmosa!)
Se for homem é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que são uns tolos; mas sempre tenho meu receio, porque enfim, enfim, deles me rio eu, mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não gostem, é porque não presta.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para nõa fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho, se o tem, sua mãe, se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse home é o tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há-de ser um maçador terrível.
Oh! que existências que eram aquelas quatro! Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E a maior parte da gente, que é gente, vive assim... E querem, quererm-na assim mesmo, a vida, têm-lhe apego! Oh, que enigma é o homem!
A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por mais estranha, que o tempo e a repetição dos actos lhe não faça natural.
Iam a cair nos braços um do outro. A singela confissão da inocência ia ser aceite por quem, e como, santo Deus! Aquela palavra de oiro, aquela doce palavra que tanto custa a pronunciar à mulher menos arteira; que, adivinhada, sabida, ouvida há muito pelo coração, dita mil vezes com os olhos, nenhum homem descansa nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade, enquanto a não ouve proferir pelos lábios - ; essa palavra celeste, que explica o passado, que responde do futuro, que é a última e irrevogável sentença de um longo pleito de ansiedades, de incertezas e de sustos - essa final e fatal palavra amo-te Joaninha a pronunciara tão naturalmente, tão sincera, tão sem dificuldades nem hesitações, como se aquele fosse - e era decerto -, como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único, a ideia constante e habitual de sua vida.
As minhas janelas, agora, são as primeiras janelas de Lisboa; dão em cheio por todo esse Tejo.
É a Inquisição, são os Jesuítas, são os Filipes, é a reacção católica, edificando templos para que se creia e se ore, não porque se creia e se ora.
Coitados! Não contaram com os aperfeiçoadores, reparadores, fomentadores e demolidores das futuras civilizações que, para pôr as coisas em ordem, tiram primeiro tudo do seu lugar.
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2 comentários:
Acho isto tão bom... tão bem escrito...
pois é, pois é
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