cama desfeita

a cama desfeita de hoje
que na realidade é da véspera
e da qual te esqueceste
virou poema

prática

é simples
esperar que um pouco de solidão chegue
(e ela chega sempre)
ouvir o que te dita a noite
(é fácil quando o silêncio impera)
e deixas que se escreva o verso

depois relês
apagas
e voltas de novo

não se apaga um eco
ele desvai até à quietude
e o que sobra
é toda a promessa do futuro
livre
limpo
cheio de ti e do teu sotaque tão teu
que me inunda até ao jamais

surrealismamente

move-te pela noite
até amanhecer o teu cansaço
e na praia o vento chamar-te pelo nome secreto com que te batizaste na véspera

cai no manto da aurora
mesmo que a queda não acabe nunca
e que na vertigem te escapem os sonhos pelos dedos como num quadro de Dali

sua todo o ontem que devoraste no raiar do dia
destila-te além de ti
esgota-te para que nada reste para os necrófagos
nem uma única migalha
nem sequer uma reminiscência

sê menos que um triz
mas que valha a pena

o espaço é tão tanto e o tempo é tão nenhum

do teu cimo ao teu chão
o espaço e o tempo são líquidos

porque o olhar percorre tudo isso num vislumbre
já as minhas mãos demoram-se no caminho
e a minha boca perde-se no trilho
seja no calor do teu pescoço ou nos gomos dos teus lábios
na curva da tua cintura ou no teu ventre de seda e cetim

e o espaço é tão tanto e o tempo é tão nenhum
que não me chegam nem os olhos nem as mãos nem a boca
nem os dias nem as noites e nem as manhãs
pois és a sede que não se sacia e a fome que não se mata
a ânsia perpétua e o desassossego infindo

és a própria rota
o rumo essencial
na sina que me calhou

arde o próprio ar

arde o próprio ar
por dentro do fôlego e do sopro
relembrando a fornalha primordial e os grandes incêndios cósmicos

transpira-se pelos poros da alma
e o suor sem tempo para gotejar evapora-se mal nasce
vaporiza-se no éter ardente

tudo é mais lento
tudo é mais vagaroso
tudo se adia por um momento até resvalar com o peso de um agora mais longo

tudo se arrasta
os versos derretem na linha do horizonte do poema
desmaiando no ocaso do que têm para anunciar
não chegando a extinguir-se
ficando na letargia infinita da canícula

também vou sendo

o que fazer com isto?
com este eco primordial a desfocar levemente as coisas quando o olhar se atira ao longe
como uma interferência no ecrã da vida
um leve estremecer do ser como nas miragens do deserto  
este visco quase invisível a escorrer dos dias e noites e que se cola por dentro e à volta de nós?

moldá-lo com a alma?
domar esse plasma metafísico para que faça sentido saber ao que vem?

e ao que vem mesmo?
dizer-nos que trepida e freme sob a tensão do incomensurável
que há mais do que aquilo que os sentidos descobrem
mais tempo dentro do tempo
mais lugar dentro dos lugares
mais silêncio na quietude absoluta
mais versos e palavras e invariavelmente mais poesia?

ou virá porque é de sua natureza
porque é de seu âmago emanar do invisível como um uivo de libertação
e dizer-nos a nós deste lado
também vou sendo

epílogo

alega o teu silêncio
dá-lhe o lume brando das velas
afaga-lhe o calor e o lento passar do tempo

escreve-lhe versos
argumenta a tua solidão
diz-lhe que são irmãos

faz-lhe a vénia devida
abraça-o nas noites que não acabam
invoca os infinitos

ambos sem verbo
tu e ele
no fim disto tudo juntos na aurora
na manhã definitiva
no mar luminoso do epílogo

entre o fado e a morna

entre o fado e a morna
procuro o acorde do início
bebo sozinho e espio a tua fuga

sou guardador de nadas
de sopros e de sombras
mestre de coisas que se esfumam
de memórias que não chegaram a ser
e de sonhos ainda por sonhar

entre o fado e a morna
sigo um funaná
simulo uma alegria e ao mesmo tempo uma tristeza

sou rei da pose
até cair num canto com a garrafa meia vazia

o fado nem aparece
impõe-se a morna como um bolero da alma

ignoram-me os corpos que dançam
nem sabem que comungo com eles no meu sono ébrio

faltam-me os teus caracóis pousados no pescoço
e a tua curva que balança e me embala

fica a noite inteira pela frente
para que a saudade dance comigo e com a garrafa já vazia