dia 212

ela chegava vinda de uma longa linhagem de feiticeiras e bruxos e de gente errante que habitava em florestas tão densas que o sol apenas penetrava no inverno quando a folhagem desfalecia e as árvores ficavam nuas

os cabelos eram longos como estas palavras intermináveis e faziam lembrar os dos druidas e os das donzelas presas em torres altas e inalcançáveis para que nunca a virtude pudesse ser profanada

os olhos eram profundos e vertiginosos e faziam qualquer um perder o fôlego como quando se lê um verso tão comprido que até a voz interior se extingue por falta de pulmão

sorria às vezes
outras não

nunca a vi
tudo isto foi-me dito por uma outra mulher que calhara de ficar a meu lado numa fila de espera

a espera nunca o é de verdade
pois tudo já aconteceu

dia 211

existe um momento preciso no meio da pior das tempestades
em que o marinheiro sabe que já nada mais importa
que por muito que o desespero trepe pela alma e que o caos reine sobre o mundo
o espírito vigora imperturbável

esse momento pode durar um segundo apenas antes que de novo se despenhe todo o ser
mas é o suficiente para que de frente para a derrota inevitável
ele prevaleça invencível inquebrável e indomável

dia 208

em breve um pouco de sal e de mar
depois o silêncio da noite rasgado pelas cigarras

vinho e espumante nos entretantos
sol pela pele e tu pelos lábios

céus estrelados até à vertigem
tardes a ler e manhãs a ouvir música

dia 207

por um breve instante
a luz entrou por uma fresta junto à porta
o quarto iluminou-se o suficiente para que eu visse no chão
um pouco de pó e umas meias que a preguiça semeou antes de me deitar para dormir

e antes da escuridão voltar
revelou-se ainda
numa das paredes
o verso que um dia me tinhas lido

semeámos a quietude que agora grita em alto mar

voltei a adormecer

dia 206

comecei a escrever
parei e recomecei
porque de cada vez as palavras eram já outras e as anteriores deixaram de fazer sentido

então lembrei-me de Herberto Hélder
e do texto sobre um pintor que tinha em casa um peixe vermelho

enquanto pintava o peixe 
o bicho do vermelho passou a preto
deparando-se com tal impasse
o artista decidiu pintar um peixe amarelo

neste texto fiz o mesmo

dia 205

nomear as coisas inomináveis
porque assim se revelam

mas cabe a cada um essa arte

no que me toca
quando escrevo
a palavra que me assombra e paira sobre todos estes versos
é intuição

e a intuição nunca nos pertence por inteiro
visita-nos
e desarruma a alma
como a paixão

dia 204

não sei se é

a tua pele como mapa
e a tua boca como destino
ou a minha pele como mar
e a minha boca como ilha

sei que à escala das noites e da nossa cama
naufragamos juntos

dia 203

quando contempla o sol
nem uma gota de penumbra cai sobre o chão por trás dele

ninguém até agora conseguiu explicar o fenómeno
mas ouviu-se o rumor de que a sombra lhe foi sugada pelo breu das noites solitárias
e que agora
por muito que haja luz
não há silhueta de negrume que o seu corpo desenhe

dia 202

esculpi o meu próprio sonho
juntei nas mãos um pouco daquele vento raro que sopra de oriente
e quando a tarde se alonga na janela lá o formei entre os dedos
feito de brisa e sopro e olhar

adormeci no sofá para que ele definitivamente ganhasse forma
e então
a meio do sono
lá se narrou por dentro

o que me disse não sei
nunca me lembro dos sonhos

dia 201

encontrei-o passadas mil vidas
sempre igual
o olhar profundo e um sorriso muito subtil desenhado no canto dos lábios

continua a vaguear
percorre as noites junto ao porto e em cada esquina escreve nas paredes
entra em cada bar aberto e bebe até que o escorracem

lembro do tempo em que ia com ele
quando eu próprio lhe ditava o que escrever nessas paredes escuras
e quando era eu que pagava a conta do que bebíamos enquanto o atiravam pelas portas para o meio da rua

está igual
não mudou nada esta minha alucinação

dia 200

há palavras que já ninguém sabe dizer
e sonhos que ninguém sabe sonhar mais

esse lugar de silêncios é imenso como as noites nos planetas errantes

talvez o acaso faça com que se cruze ao largo com uma estrela
e assim possa nascer o dia sobre o horizonte
e alguém fale as tais palavras uma vez mais e sonhe os tais sonhos uma vez mais
nem que seja por um instante apenas

até mesmo os silêncios precisam de ecoar
e também os esquecimentos precisam de ser lembrados de vez em quando



dia 199

uma tarde

o mar rugia e serpenteava por entre o silêncio das pedras junto à praia
cuspindo sal contra o céu azul e quente
sal esse que depois caía sobre a areia para se evaporar ou ser recolhido por uma qualquer onda de regresso
colhido em espuma e poeira líquida que a língua do sol sorvia pela tarde interminável

dia 198

a pele dos versos eriçou com o sopro da leitura
como se de repente
uma verdade se revelasse inesperada

o próprio poema
surpreendido
não acreditou
jamais poderia ser aquilo que acabara de ser lido

mas é assim mesmo
a incredulidade de como quando ouvimos a nossa própria voz

dia 196

tinha um pequeno ponto negro no lago esverdeado à volta da íris
por vezes esse ponto era o centro de um turbilhão
e o quarto e a roupa e a cama e tudo o resto era sugado por ele num movimento largo e lento que durava a madrugada inteira

quando amanhecia e eu acordava
era como se tivesse viajado por um portal
e os olhos eram agora negros e o ponto levemente azulado

como se tudo se tornasse o negativo da véspera

até recomeçar mais uma vez a tempestade
ao fim do dia
quando os corpos pedem água e saliva e suor

dia 195

escrevi há muitos anos
um texto sobre um homem que olhava da rua para uma janela iluminada

o que via era uma silhueta de alguém a escrever
e logicamente
o que esse alguém escrevia era sobre um homem de gabardina que ele via pela janela do outro lado da rua junto à esquina

e eis-me aqui
à janela
ou na rua
a olhar
ou a escrever
e isto não acaba nunca
como a serpente que devora a própria cauda

dia 194

os truques do costume começam a falhar
as palavras antecipam os teus dedos predadores
e assim se escondem e esquivam

as noites carregam um excesso de luar
há demasiada luz nas planícies para que a caça aconteça
e se calhar também tu já não és tão furtivo como no início
ou carregas um cheiro que te denuncia
ou arrastas a tua inépcia fazendo demasiado barulho para que uma presa não se aperceba

o que te vale é a fome
um animal com fome é capaz dos mais desesperados atos
inclusivamente
escrever

dia 193

talvez
hoje
por esta hora
seja melhor ficar por aqui e adormecer

até porque como almofada
não faltam rascunhos e versos mutilados para pousar a cabeça

dia 192

também o tempo é necessário que passe
que insista na erosão dos rostos e que esculpa os carácteres e as rugas
mesmo quando as rugas são por dentro da pele e os carácteres mudos por baixo da alma

um grito
ainda que não se solte
reverba num qualquer espectro sonoro
talvez inaudível
talvez irreal

mas há relatos
de que em certos casos
uma irrealidade acontece

dia 191

vou chegar
e cair

se no fim da queda lá estiveres
saberei
então que afinal

ascendi

dia 190

o interminável desabafo que sopra desde o início dos tempos vindo do pulmão cósmico ecoa nas paredes da existência numa cadência que leva as almas a estremecerem quando adormecidas e nos sonhos maremotos inundam as planícies desertas com ondas enormes que transbordam para os corpos que acordam febris e ofegantes

dia 189

o quarto tinha uma cama e uma cadeira
uma porta claro
e uma janela bem no alto
pequena

um louco de pé a olhar
e a espaços a falar coisas incompreensíveis

quando dois homens vestidos de branco entraram
o louco parou de falar e de olhar
deixou-os deitarem-no na cama
e antes deles saírem disse

há histórias por contar e poemas por escrever
e enquanto assim for
nenhuma cela ou loucura terão a última palavra

dia 188

o ritmo secreto dos morcegos que planam ao crepúsculo
os voos cegos e loucos que desenham sobre as varandas e terraços recuados
traçam enigmas encriptados que só eles saberão ler

dia 187

entre a curva das tuas costas e um verso com a palavra semente
algo se interpôs
como um nevoeiro súbito em forma de silêncio
e a tua silhueta foi ficando desfocada até ser bruma também
e a palavra no verso germinou
e mais tarde reencontrei-te na cama

e não sei o que significam estas coisas

dia 186

um versozito
assim despachado
que hoje foi noite de repasto e bebidas a condizer
a comunhão das almas
e Baco presente

quando assim é
há que saber retirar-se
pela calada da noite e lembrar Jorge Neto

estou mareado

dia 185

o sol caiu sobre as copas das árvores
os ramos estremeceram
e feixes peneirados de luz desceram até mim

banhado pelo caleidoscópio místico dessa poalha cintilante
apercebi-me que todo o ruído cessara

a minha morte
mais uma vez
fora adiada

um burocrata qualquer
interpôs um recurso mais
o pelotão de fuzilamento recolheu

voltei à cela
amanhã
talvez dê para ver um pássaro

essa é a vantagem de quem não morre
há sempre a esperança de ver um pássaro mais  

dia 184

derramaram-se os versos e a toalha manchou
quando secou
um largo padrão emergiu
um labirinto sem saída nem entrada
como a poesia deve de ser

dia 183

iria escrever sobre estarmos a meio do ano
que metade já passou

cento e oitenta e três dias desde esta cisma de versos diários
outros tantos para completar este ano bissexto

e lembrei-me do paradoxo de Zenão
e fui ver
e quando se vai ver vê-se mais coisas

fiquei a saber que Zenão para além de paradoxos prezava a integridade
e que morreu torturado e trucidado por um tirano
mas que não cedeu
nem por metade
e que por isso
dois milénios e meio depois
alguém ainda o chama pelo nome

dia 182

esqueci as palavras que diziam as coisas
e com isso as próprias coisas deixaram de ser

nesse vazio dança a incerteza
como um enigma inacabado ou impossível de resolver
uma cisma nublada por uma lembrança perdida

no entanto
o milagre de nomear outras coisas cresce nos dedos
e assim
vou dizendo
dedilhando
tecendo a manta de versos
destes trapos e remendos
as almas serão assim
mantos de retalhos