hoje
como o sal numa boa carne
uma pitada basta
dia 90
uma série de tridentes luminosos erguem-se sobre a praia
como se poseidon os tivesse semeado ao longo da costa
por trás
na escuridão da noite
revelam-se os abismos do mar e do céu
separados apenas por pequenas luzes de barcos ao largo
equilibrando-se no gume do horizonte em tremores reluzentes
ondulando na solidão da madrugada
é a hora da quietude e a bordo provavelmente alguém escreve
talvez escreva o que vê em terra
a tal linha de tridentes e de prédios
e que as luzes das janelas reluzem na noite escura
e que numa sala de uma dessas janelas
provavelmente alguém escreve
como se poseidon os tivesse semeado ao longo da costa
por trás
na escuridão da noite
revelam-se os abismos do mar e do céu
separados apenas por pequenas luzes de barcos ao largo
equilibrando-se no gume do horizonte em tremores reluzentes
ondulando na solidão da madrugada
é a hora da quietude e a bordo provavelmente alguém escreve
talvez escreva o que vê em terra
a tal linha de tridentes e de prédios
e que as luzes das janelas reluzem na noite escura
e que numa sala de uma dessas janelas
provavelmente alguém escreve
dia 89
lembro as tardes em que a luz vinha lá do fundo
inundando o corredor com cheiro a mar
a madeira do chão rangia aos soluços e o relógio ecoava o compasso do tempo até cair a noite
dia 88
à Cilinha
a vizinha de décadas
de sempre
de tão pegada que era família
e faz jus ao nome
pertence agora à luz
ao brilho da nossa memória
sempre
dia 87
fizeram falta as lágrimas que morderam os olhos nas noites sem sono nem lua
e onde grandes naufrágios aconteciam nos pântanos da solidão
pois no deserto árido da indiferença
onde não sopra brisa alguma
ardem as derradeiras cinzas do espírito
e onde grandes naufrágios aconteciam nos pântanos da solidão
pois no deserto árido da indiferença
onde não sopra brisa alguma
ardem as derradeiras cinzas do espírito
dia 86
as regras:
seguir o mapa invisível dos silêncios
e fazer do desassossego bússola
ter a paciência exacta de um verso
e a postura de um lince sobre a neve
escapar na solidão como quem foge de noite
acender fogueiras
declamar poemas de outros
quase beijar os teus lábios
e nesse quase ficar sempre um pouco mais tempo
até que a distância colapse
seguir o mapa invisível dos silêncios
e fazer do desassossego bússola
ter a paciência exacta de um verso
e a postura de um lince sobre a neve
escapar na solidão como quem foge de noite
acender fogueiras
declamar poemas de outros
quase beijar os teus lábios
e nesse quase ficar sempre um pouco mais tempo
até que a distância colapse
dia 85
Muito calmamente explicou-me que onde não há nada, há, ainda assim, alguma coisa.
Perguntou-me se eu sabia o que havia no espaço entre as estrelas e o nosso olhar mergulhado no céu estrelado. Eu disse que não havia nada, o espaço é feito de nada e de vazio.
Então, perguntou, como nos chega a luz? E respondeu: nesse nada, onde nada há, há, ainda assim, um caminho para que a luz o percorra.
Foi a última coisa que disse nesse dia.
Perguntou-me se eu sabia o que havia no espaço entre as estrelas e o nosso olhar mergulhado no céu estrelado. Eu disse que não havia nada, o espaço é feito de nada e de vazio.
Então, perguntou, como nos chega a luz? E respondeu: nesse nada, onde nada há, há, ainda assim, um caminho para que a luz o percorra.
Foi a última coisa que disse nesse dia.
dia 84
a curvatura do teu corpo
provavelmente explicada por equações matemáticas e observações cosmológicas
desenha uma sombra que se derrama pelo quarto
e esse esboço prolonga-se num verso até que a minha mão o percorra na sua sede
provavelmente explicada por equações matemáticas e observações cosmológicas
desenha uma sombra que se derrama pelo quarto
e esse esboço prolonga-se num verso até que a minha mão o percorra na sua sede
dia 83
Não escrevia há meses. A rotina tinha vencido várias batalhas, empurrando-a para velhos vícios de longas sestas, chás e cigarros à janela. Uma ou duas vezes por semana saía para se encontrar com alguns homens e satisfazer os desejos de um corpo que parecia fugir-lhe a cada madrugada de solidão.
Ia lendo e as palavras dos outros soavam distantes na vastidão da alma e no turbilhão do espírito. Voltava ao chá e, por vezes, a um copo de vinho ou dois. Voltava às sestas que duravam uma hora ou toda uma tarde de chuva. Fumava à janela enquanto o gato do vizinho caçava moscas junto ao vidro que separava as varandas.
Quando voltou a escrever optou por um grande verso sem quebra, um verso incompreensível onde as palavras diziam tudo e o seu contrário. Rasgou o que escreveu.
Deixou de dormir sestas, deixou de tomar chá e deixou de fumar. Agora, os encontros com outros homens eram diários. Não escreveu mais nada e o gato não voltou a aparecer à varanda.
dia 80
recordo um tempo em que os detalhes lançavam grandes sombras
e os heróis vagueavam perto do cais e das tabernas
os barcos nos estaleiros grudados ao próprio tempo
e canções antigas ressoavam nas madrugadas sem fim
tudo isso regressa por vezes sem aviso
como uma pontada num canto da alma
talvez ainda seja o eco da nossa origem oceânica
dia 79
o mar inteiro derramado no horizonte
as ondas tingidas de noite estrelada vibrando nas línguas de areia
o corpo nu das pedras nas dunas e no silêncio
o vento sopra
e diz coisas
sempre as disse
as ondas tingidas de noite estrelada vibrando nas línguas de areia
o corpo nu das pedras nas dunas e no silêncio
o vento sopra
e diz coisas
sempre as disse
dia 78
procurou como um desalmado
procurou por entre as horas que teimavam em passar
procurou nos armários esquecidos
nas estantes mais altas
nos cantos mais escuros
e de todas as vezes as mãos vazias
deixou de procurar
e as mãos encheram-se de tudo
de palavras
de água
de sangue
de sol
procurou por entre as horas que teimavam em passar
procurou nos armários esquecidos
nas estantes mais altas
nos cantos mais escuros
e de todas as vezes as mãos vazias
deixou de procurar
e as mãos encheram-se de tudo
de palavras
de água
de sangue
de sol
dia 77
fixar vertigens
disse Rimbaud
esculpir o apelo do silêncio como uma ilusão de perspectiva
fazendo com que cada palavra agarre o olhar e o sorva num turbilhão
cair sem fim
cair para sempre
cair e cair até que a gravidade se esgote
disse Rimbaud
esculpir o apelo do silêncio como uma ilusão de perspectiva
fazendo com que cada palavra agarre o olhar e o sorva num turbilhão
cair sem fim
cair para sempre
cair e cair até que a gravidade se esgote
dia 74
véspera
como se amanhã fosse possível
ontem apenas esquecimento
e hoje uma ilusão
véspera é o momento exato do que perdura
carrega a promessa do porvir ao mesmo tempo que se estagna qual barco com mil âncoras
como se amanhã fosse possível
ontem apenas esquecimento
e hoje uma ilusão
véspera é o momento exato do que perdura
carrega a promessa do porvir ao mesmo tempo que se estagna qual barco com mil âncoras
dia 73
Dizem as leis da física que é impossível saber-se, ao mesmo tempo, o local exacto de um objecto e a velocidade a que se move. Que quanto mais se sabe sobre um dos parâmetros menos se sabe do outro.
O mesmo acontece na poesia.
Quanto mais escrevo e procuro onde está, menos reconheço quem a diz. Quanto mais ouço quem a dita, menos sei de onde vem e onde está.
dia 71
de noite
um vasto mar sem barcos sem lua sem linha de horizonte
um manto negro que cobre a vista da janela como um poço sem fundo
uma vertigem cósmica trepida nesse abismo e apela o olhar num mergulho sem fim
os segredos do cosmos clamam por entre metáforas
revela-se o infinito nesse penhasco qual goela de besta mitológica
em suma
nestas coisas
nestas aparições nestes devaneios e nestes pasmos
somos presa
somos cobaia
somos inevitavelmente devorados
um vasto mar sem barcos sem lua sem linha de horizonte
um manto negro que cobre a vista da janela como um poço sem fundo
uma vertigem cósmica trepida nesse abismo e apela o olhar num mergulho sem fim
os segredos do cosmos clamam por entre metáforas
revela-se o infinito nesse penhasco qual goela de besta mitológica
em suma
nestas coisas
nestas aparições nestes devaneios e nestes pasmos
somos presa
somos cobaia
somos inevitavelmente devorados
dia 70
lembro-me de um certo vibrar nos olhos e numa pressa desmedida já no fim da vida
como se tivesse esperado 90 e poucos anos para recuperar os atrasos da existência
após Babel ter ruído foi seu nome que mais se espalhou pelo mundo
uns dizem que raízes germânicas lhe conferem o significado de "nobre" e "fiel"
outros no árabe a descrevem como "princesa" e "senhora"
os gregos diziam que era "amável"
Elvira se chamava
como se tivesse esperado 90 e poucos anos para recuperar os atrasos da existência
após Babel ter ruído foi seu nome que mais se espalhou pelo mundo
uns dizem que raízes germânicas lhe conferem o significado de "nobre" e "fiel"
outros no árabe a descrevem como "princesa" e "senhora"
os gregos diziam que era "amável"
Elvira se chamava
dia 68
o último verso não terá outro que enviúve nem quem se vista de negro para que o luto se faça
para trás poderão ficar os gatos
um cão talvez
e um eco a roer o fim da noite
mas nada mais
o último verso não se declama
não se lê nem se come
o último verso jaz no chão de uma sala cuja janela aberta dá para o mar
ou na sarjeta num dia de chuva
ou dobrado e guardado num envelope perfumado
o último verso diz a verdade
ou a mentira necessária para que a farsa continue
ou não diz nada porque só não dizendo nada é que se cultiva a dúvida
e a dúvida é o derradeiro orgasmo adiado
para trás poderão ficar os gatos
um cão talvez
e um eco a roer o fim da noite
mas nada mais
o último verso não se declama
não se lê nem se come
o último verso jaz no chão de uma sala cuja janela aberta dá para o mar
ou na sarjeta num dia de chuva
ou dobrado e guardado num envelope perfumado
o último verso diz a verdade
ou a mentira necessária para que a farsa continue
ou não diz nada porque só não dizendo nada é que se cultiva a dúvida
e a dúvida é o derradeiro orgasmo adiado
dia 66
uma garrafa por perto e um caderno velho onde escrever versos
uma janela aberta para a noite e o rumor antigo do mar
meia-dúzia de livros escolhidos pelo destino
uma guitarra de cordas gastas e um casaco de ganga esquecido sobre a cadeira
outra garrafa e a lareira onde queimas o mesmo caderno velho
a janela fechada que esconde a madrugada e o mar
os livros do avesso
a guitarra desafinada até ao infinito e o casaco coçado do uso
uma última garrafa e a brasa final do fogo literário
a janela de novo aberta quando o sol já espreita
livros em silêncio pelo chão
a guitarra num canto e o casaco a cobrir-me sobre o sofá num sono ébrio
uma janela aberta para a noite e o rumor antigo do mar
meia-dúzia de livros escolhidos pelo destino
uma guitarra de cordas gastas e um casaco de ganga esquecido sobre a cadeira
outra garrafa e a lareira onde queimas o mesmo caderno velho
a janela fechada que esconde a madrugada e o mar
os livros do avesso
a guitarra desafinada até ao infinito e o casaco coçado do uso
uma última garrafa e a brasa final do fogo literário
a janela de novo aberta quando o sol já espreita
livros em silêncio pelo chão
a guitarra num canto e o casaco a cobrir-me sobre o sofá num sono ébrio
dia 65
o olhar que segue o desenho secreto do voo do teu corpo
que se lança felino após o demorado ritual da emboscada
e que se derrama rendido como o último sopro de um pavio
que se lança felino após o demorado ritual da emboscada
e que se derrama rendido como o último sopro de um pavio
dia 64
o que é
na verdade já foi
o presente tem sempre um atraso tatuado em si mesmo
basta olhar o céu e entender que a luz que nos chega das estrelas já é velha
irradiou num antes bem longínquo
o que lês alguém o escreveu antes
e o que escreves alguém já o ditou primeiro
e esse hiato
esse lapso
esse soluço temporal
é onde jaz o segredo nunca revelado de todas as coisas
na verdade já foi
o presente tem sempre um atraso tatuado em si mesmo
basta olhar o céu e entender que a luz que nos chega das estrelas já é velha
irradiou num antes bem longínquo
o que lês alguém o escreveu antes
e o que escreves alguém já o ditou primeiro
e esse hiato
esse lapso
esse soluço temporal
é onde jaz o segredo nunca revelado de todas as coisas
dia 63
não encontras milagres aqui
mas encontras sonhos
e é sabido que para um milagre
um sonho é meio caminho andado
mas encontras sonhos
e é sabido que para um milagre
um sonho é meio caminho andado
dia 62
avançar
avançar sempre pela noite escura
não há outra forma de o dia vir a nascer
amar
amar sempre a pele que nos apela
só assim se saciam as ânsias do espírito
ser livre
ser livre sempre
pois não existe outra forma de sermos nós os donos dos nossos desastres
dia 61
no alto
a selva da cidade atirada pela janela
a noite desenhada no teu corpo despido
o silêncio dos quartos vizinhos
e eu que adormeço sem aviso
a selva da cidade atirada pela janela
a noite desenhada no teu corpo despido
o silêncio dos quartos vizinhos
e eu que adormeço sem aviso
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