dia 60

este é o dia furtivo
o que vem a cada quatro anos
um dia a mais como oferta do cosmos e do carrossel das translações celestes
o dia feito dos restos dessas roletas no firmamento

dia 59

vais para sul
cruzar o equador e o oceano
ficar de pernas para o ar

quando por lá
se calhar os poemas fiquem ao contrário
ou quem sabe
direitos finalmente

dia 58

hoje talvez não escrevas e toda esta rotina se quebre e se espalhe estilhaçada pelo chão de uma folha em branco
ou talvez não 

dia 57

meu amor

e assim se desperta o interesse num verso
porque ler sobre o amor é uma tentação à qual dificilmente se escapa
esta sede de paixão vem antes de nós
e mesmo quando não é nossa
insaciável ela se revela

meu amor
repito

e uma vez mais todas as leituras futuras brilham neste presente criativo
porque os vícios são assim mesmo
carnívoros e famintos

meu amor
termino
e para lhes fazer a vontade
digo que se por algum acaso tivesse de escolher entre o teu beijo ou abandonar um verso
sem hesitação alguma
por ti deixaria de escrever

dia 55

as máscaras sem rosto por trás
espectros cujas danças projectam grandes sombras sobre a praia
todo um estremecer de tambores a chamar uma chuva que já não cai há séculos
o mar inanimado sem lua nem vento
passeiam-se os cães que farejam o próprio tempo
como se este escapasse a cada alento

não há mais nada a fazer que não seja contemplar a grande fogueira onde os poemas ardem
e verso a verso semear uma chama na madrugada
até que o dia nasça forçado por tanta poesia incendiada

dia 54

alargas o horizonte para lá caber algo mais
seja um último barco que se atrasou na saída do porto
seja uma palavra que faltava num verso antigo
ou mesmo a imagem subtil de um lago de pele junto à anca quando ela se espreguiçou e a blusa lhe seguiu os braços esticados


dia 53

escreves depois de beber num sábado à noite
e as rasuras são invisíveis
os erros corrigidos

no fundo trata-se de uma falsidade

dia 52

dedicado ao Monsieur Vonesch

hesitas antes de escrever
sinal de que é melhor seguires o velho conselho de um teu professor de francês
que era um louco alsaciano que declamava poemas em alemão nas aulas
ele dizia

quand je n'ai rien à dire, qu'est-ce que je dis?

e essa premissa sempre te acompanhou nos momentos de bloqueio

quando nada tenho a dizer, que posso dizer?

pois bem
alguma coisa haverá de se dizer por si só 

dia 51

um verso
de cada vez
como sempre

dia 50

um só sopro para apagar as velas de um barco
e assim soltar o fumo de uma nuvem solitária num céu iluminado de estrelas

dia 49

vasculhou as gavetas e folheou alguns dos cadernos por lá perdidos
reencontrou palavras que esquecera e outras que permaneceram tatuadas na pele da alma
releu versos e poemas e textos
tentou reescrever alguns mas a ousadia rapidamente se desfez numa madrugada mais
preferiu a companhia de uma garrafa e de um copo que ia olhando de cada vez que se esvaziava
contou as horas do silêncio e dançou com as sombras da sala
falou com os quadros das paredes e as fotografias cansadas que desfilavam nos móveis
ouviu canções que no passado entoavam nas grandes viagens nocturnas
ia fechando os olhos intermitentemente enquanto o braço ficava dormente até não lhe pertencer mais

e quando o sol ameaçou nascer
deu o último trago da garrafa
arrastou-se até ao quarto
e de pé em frente à cama onde ela dormia
velou-lhe o sono por um momento
sondou as ondas dos lençóis que lhe desenhavam o corpo
a curva da anca
o enlevo do ombro
os caracóis abandonados na almofada
o fôlego onírico ao compasso das estrelas
e toda uma silhueta adormecida ali esculpida como uma aparição
 


dia 48

vazio o verso
na tua ausência

dia 47

esqueceste onde pousavam os pássaros
em que ramos e em que árvores
que cantos traziam e que ninhos fizeram

a tua memória líquida das coisas
escorreu por um qualquer rio subterrâneo
e dos teus olhos apenas uma bússola sem norte e uma amnésia vestida de silêncio


dia 46

no porão do barco que vês lá longe
seria o local ideal para falares de quem escreve os teus versos
porque imaginam que és tu mas na verdade não és tu

e nesse silêncio embalado por ondas que não sabes de onde vêm
exporias a teoria da tua criação
da origem de que o que é dito e narrado não tem que ver com a tua vida e as gentes que cruzas
que se trata de uma parábola e de um sonho estético e metafórico

idealmente
nesse porão sem ninguém
poderias perante a plateia deserta
dissertar
dissertar
dissertar

dia 45

um dia
quando o vento soprar de um quinto ponto cardeal
talvez escreva o verso definitivo
um último uivo antes da lua cheia
e assim calar-me de vez e poder na mudez final cair e definhar como o sol que desmaia antes da noite mais estrelada de todas

dia 44

o desenho momentâneo e efémero de um relâmpago a despenhar-se sobre o mar
ranhura luminosa e fugaz no firmamento como se de uma porcelana a quebrar se tratasse
ou dum corpo tatuando uma fissura que lhe abrisse o torso por onde a alma saísse num clarão tão intenso e breve que apenas uma poalha de luz espirrasse


dia 43

escrever-te no corpo a fome que tenho de ti

dia 42

recordo um quarto no passado e a luz do dia fatiada pelas persianas
toda uma dança de poeiras pelo ar que enlouqueciam quando um carro cortava a rua lá de fora estremecendo os vidros e a alma

dia 41

quando alongas as madrugadas e elas parecem infinitas
e o grande deserto branco das folhas estende-se com elas
sem voz para ditar uma sombra ou penumbra que seja sobre esse horizonte imaculado

o silêncio é tão denso que ganha a textura dos óleos
e o teu corpo ensebado e desconfortável vai-se afundado nas horas lentas do tempo

tens os ataques febris crónicos e as alucinações fatídicas dos arrependimentos das promessas por cumprir

mas aos poucos
a golpe de estar vivo e disso ser um milagre
acontece a faísca de uma qualquer esperança
e num ápice
na comoção inesperada de um assombro
é todo um incêndio que deflagra na imensidão da quietude
e até ser dia ardem as grandes chamas da poesia e do amor e da liberdade
arde tudo e o não-tudo até finalmente sucumbires numa cama de cinzas que possa amparar a queda vertiginosa do teu sono


dia 40

quantos faróis espelhados nas largas lágrimas desenhadas sobre os vidros
a chuva cai sem parar desde o início dos tempos
e o vento ondula como um grande mar desgovernado

não voam os pássaros nem desatracam os barcos
nada se escreve que não tenha um dia sido já sussurrado

dia 39

escava as areias movediças até embateres na pureza indestrutível de um diamante
e insiste até que a pá se quebre e ficares apenas de mãos nuas perante o impossível

dia 38

recordas um verso teu ao qual te afeiçoaste um pouco mais do que a outros

o que é a poesia senão o silêncio que se diz

e fica claro que já não sabes de onde veio nem nunca o soubeste
tatuaste-o num dos muitos cadernos que foste semeando por aí
e num dia
num reencontro
decidiste partilhá-lo

agora
qual memória antiga
vais revisitando-o ocasionalmente
como a língua que procura
de vez em quando
aquela pequena fenda no céu da boca

dia 37

ouves passos em cima
mas desconheces quem os dá
nem sabes se uma sombra os acompanha nesse caminho
ou se é no escuro que acontecem como um vulto perdido procurando um destino

ficas quieto a adivinhar
num infinito que dura até adormeceres por fim embalado nesse compasso noturno

dia 35

a única pontuação do que escreves é o tempo de um fôlego
não há vírgula nem ponto que possam domar esses sopros

não se enjaulam tempestades

por vezes o fôlego é curto e preciso
outras vezes é longo e não há pulmão que o exale de uma só vez
esses são declamados de um peito maior
vêm dos gigantes que viveram no passado quando o horizonte estava mais longe e os desertos estendiam-se por milénios

foi nas catacumbas do cosmos que se forjou a poesia
feita de uma lava primordial que não continha gramática nem sintaxe
era somente sangue e lágrimas e fogo e grandes clamores que deflagravam sem lei
era o germinar de um impulso que se fez instinto

dia 34

não sabes bem onde nem quando nem porquê
mas há um momento preciso e exacto e definitivo em que afloras o alento de um verso
como aquela preguiça inicial de quando acordas
um leve tremor da alma que te percorre as costas até se espraiar no abandono de um pequeno suspiro mais

e por vezes
só por vezes
tens a sorte de o alcançar e recolher como uma folha que se desprendeu da árvore
ou como uma traça desmaiada após um excesso de luz de candeeiro em noites densas de breu

já o disseste mil vezes e mil vezes o dirás de novo
não escolhes nada disto e nem sequer és escolhido
trata-se somente da força das inevitabilidades

dia 33

as magias das espumas nas pedras da praia
como se esfumam num ápice e recomeçam logo de seguida
como uma sede insaciável de ser eternamente fugaz

vivêssemos assim sempre e em tudo

dia 32

não se explicam os caminhos da vida
nem o sentido das coisas
porque terça-feira é sempre quando um homem quiser

dia 31

quão longe estás de imaginar os anjos que velam o tempo
esses fazedores de milénios e séculos e milésimos de segundo e afins
os grandes encapsuladores de Cronos
guardiões da ilusão de que o passar dos prazos se pode conter em convenções

o tecido do tempo é indomável, selvagem que nem um desses equídeos das grandes planícies do oeste