este é o dia furtivo
o que vem a cada quatro anos
um dia a mais como oferta do cosmos e do carrossel das translações celestes
o dia feito dos restos dessas roletas no firmamento
dia 57
meu amor
e assim se desperta o interesse num verso
porque ler sobre o amor é uma tentação à qual dificilmente se escapa
esta sede de paixão vem antes de nós
e mesmo quando não é nossa
insaciável ela se revela
meu amor
repito
e uma vez mais todas as leituras futuras brilham neste presente criativo
porque os vícios são assim mesmo
carnívoros e famintos
meu amor
termino
e para lhes fazer a vontade
digo que se por algum acaso tivesse de escolher entre o teu beijo ou abandonar um verso
sem hesitação alguma
por ti deixaria de escrever
e assim se desperta o interesse num verso
porque ler sobre o amor é uma tentação à qual dificilmente se escapa
esta sede de paixão vem antes de nós
e mesmo quando não é nossa
insaciável ela se revela
meu amor
repito
e uma vez mais todas as leituras futuras brilham neste presente criativo
porque os vícios são assim mesmo
carnívoros e famintos
meu amor
termino
e para lhes fazer a vontade
digo que se por algum acaso tivesse de escolher entre o teu beijo ou abandonar um verso
sem hesitação alguma
por ti deixaria de escrever
dia 55
as máscaras sem rosto por trás
espectros cujas danças projectam grandes sombras sobre a praia
todo um estremecer de tambores a chamar uma chuva que já não cai há séculos
o mar inanimado sem lua nem vento
passeiam-se os cães que farejam o próprio tempo
como se este escapasse a cada alento
não há mais nada a fazer que não seja contemplar a grande fogueira onde os poemas ardem
e verso a verso semear uma chama na madrugada
até que o dia nasça forçado por tanta poesia incendiada
espectros cujas danças projectam grandes sombras sobre a praia
todo um estremecer de tambores a chamar uma chuva que já não cai há séculos
o mar inanimado sem lua nem vento
passeiam-se os cães que farejam o próprio tempo
como se este escapasse a cada alento
não há mais nada a fazer que não seja contemplar a grande fogueira onde os poemas ardem
e verso a verso semear uma chama na madrugada
até que o dia nasça forçado por tanta poesia incendiada
dia 54
alargas o horizonte para lá caber algo mais
seja um último barco que se atrasou na saída do porto
seja uma palavra que faltava num verso antigo
ou mesmo a imagem subtil de um lago de pele junto à anca quando ela se espreguiçou e a blusa lhe seguiu os braços esticados
seja um último barco que se atrasou na saída do porto
seja uma palavra que faltava num verso antigo
ou mesmo a imagem subtil de um lago de pele junto à anca quando ela se espreguiçou e a blusa lhe seguiu os braços esticados
dia 53
escreves depois de beber num sábado à noite
e as rasuras são invisíveis
os erros corrigidos
no fundo trata-se de uma falsidade
e as rasuras são invisíveis
os erros corrigidos
no fundo trata-se de uma falsidade
dia 52
dedicado ao Monsieur Vonesch
sinal de que é melhor seguires o velho conselho de um teu professor de francês
que era um louco alsaciano que declamava poemas em alemão nas aulas
ele dizia
quand je n'ai rien à dire, qu'est-ce que je dis?
e essa premissa sempre te acompanhou nos momentos de bloqueio
quando nada tenho a dizer, que posso dizer?
pois bem
alguma coisa haverá de se dizer por si só
dia 50
um só sopro para apagar as velas de um barco
e assim soltar o fumo de uma nuvem solitária num céu iluminado de estrelas
e assim soltar o fumo de uma nuvem solitária num céu iluminado de estrelas
dia 49
vasculhou as gavetas e folheou alguns dos cadernos por lá perdidos
reencontrou palavras que esquecera e outras que permaneceram tatuadas na pele da alma
releu versos e poemas e textos
tentou reescrever alguns mas a ousadia rapidamente se desfez numa madrugada mais
preferiu a companhia de uma garrafa e de um copo que ia olhando de cada vez que se esvaziava
contou as horas do silêncio e dançou com as sombras da sala
falou com os quadros das paredes e as fotografias cansadas que desfilavam nos móveis
ouviu canções que no passado entoavam nas grandes viagens nocturnas
ia fechando os olhos intermitentemente enquanto o braço ficava dormente até não lhe pertencer mais
e quando o sol ameaçou nascer
deu o último trago da garrafa
arrastou-se até ao quarto
e de pé em frente à cama onde ela dormia
velou-lhe o sono por um momento
sondou as ondas dos lençóis que lhe desenhavam o corpo
a curva da anca
o enlevo do ombro
os caracóis abandonados na almofada
o fôlego onírico ao compasso das estrelas
e toda uma silhueta adormecida ali esculpida como uma aparição
dia 47
esqueceste onde pousavam os pássaros
em que ramos e em que árvores
que cantos traziam e que ninhos fizeram
a tua memória líquida das coisas
escorreu por um qualquer rio subterrâneo
e dos teus olhos apenas uma bússola sem norte e uma amnésia vestida de silêncio
em que ramos e em que árvores
que cantos traziam e que ninhos fizeram
a tua memória líquida das coisas
escorreu por um qualquer rio subterrâneo
e dos teus olhos apenas uma bússola sem norte e uma amnésia vestida de silêncio
dia 46
no porão do barco que vês lá longe
seria o local ideal para falares de quem escreve os teus versos
porque imaginam que és tu mas na verdade não és tu
e nesse silêncio embalado por ondas que não sabes de onde vêm
exporias a teoria da tua criação
da origem de que o que é dito e narrado não tem que ver com a tua vida e as gentes que cruzas
que se trata de uma parábola e de um sonho estético e metafórico
idealmente
nesse porão sem ninguém
poderias perante a plateia deserta
dissertar
dissertar
dissertar
seria o local ideal para falares de quem escreve os teus versos
porque imaginam que és tu mas na verdade não és tu
e nesse silêncio embalado por ondas que não sabes de onde vêm
exporias a teoria da tua criação
da origem de que o que é dito e narrado não tem que ver com a tua vida e as gentes que cruzas
que se trata de uma parábola e de um sonho estético e metafórico
idealmente
nesse porão sem ninguém
poderias perante a plateia deserta
dissertar
dissertar
dissertar
dia 45
um dia
quando o vento soprar de um quinto ponto cardeal
talvez escreva o verso definitivo
um último uivo antes da lua cheia
e assim calar-me de vez e poder na mudez final cair e definhar como o sol que desmaia antes da noite mais estrelada de todas
dia 44
o desenho momentâneo e efémero de um relâmpago a despenhar-se sobre o mar
ranhura luminosa e fugaz no firmamento como se de uma porcelana a quebrar se tratasse
ou dum corpo tatuando uma fissura que lhe abrisse o torso por onde a alma saísse num clarão tão intenso e breve que apenas uma poalha de luz espirrasse
ranhura luminosa e fugaz no firmamento como se de uma porcelana a quebrar se tratasse
ou dum corpo tatuando uma fissura que lhe abrisse o torso por onde a alma saísse num clarão tão intenso e breve que apenas uma poalha de luz espirrasse
dia 42
recordo um quarto no passado e a luz do dia fatiada pelas persianas
toda uma dança de poeiras pelo ar que enlouqueciam quando um carro cortava a rua lá de fora estremecendo os vidros e a alma
toda uma dança de poeiras pelo ar que enlouqueciam quando um carro cortava a rua lá de fora estremecendo os vidros e a alma
dia 41
quando alongas as madrugadas e elas parecem infinitas
e o grande deserto branco das folhas estende-se com elas
sem voz para ditar uma sombra ou penumbra que seja sobre esse horizonte imaculado
o silêncio é tão denso que ganha a textura dos óleos
e o teu corpo ensebado e desconfortável vai-se afundado nas horas lentas do tempo
tens os ataques febris crónicos e as alucinações fatídicas dos arrependimentos das promessas por cumprir
mas aos poucos
a golpe de estar vivo e disso ser um milagre
acontece a faísca de uma qualquer esperança
e num ápice
na comoção inesperada de um assombro
é todo um incêndio que deflagra na imensidão da quietude
e até ser dia ardem as grandes chamas da poesia e do amor e da liberdade
arde tudo e o não-tudo até finalmente sucumbires numa cama de cinzas que possa amparar a queda vertiginosa do teu sono
dia 40
quantos faróis espelhados nas largas lágrimas desenhadas sobre os vidros
a chuva cai sem parar desde o início dos tempos
e o vento ondula como um grande mar desgovernado
não voam os pássaros nem desatracam os barcos
nada se escreve que não tenha um dia sido já sussurrado
dia 39
escava as areias movediças até embateres na pureza indestrutível de um diamante
e insiste até que a pá se quebre e ficares apenas de mãos nuas perante o impossível
e insiste até que a pá se quebre e ficares apenas de mãos nuas perante o impossível
dia 38
recordas um verso teu ao qual te afeiçoaste um pouco mais do que a outros
o que é a poesia senão o silêncio que se diz
e fica claro que já não sabes de onde veio nem nunca o soubeste
tatuaste-o num dos muitos cadernos que foste semeando por aí
e num dia
num reencontro
decidiste partilhá-lo
agora
qual memória antiga
vais revisitando-o ocasionalmente
como a língua que procura
de vez em quando
aquela pequena fenda no céu da boca
o que é a poesia senão o silêncio que se diz
e fica claro que já não sabes de onde veio nem nunca o soubeste
tatuaste-o num dos muitos cadernos que foste semeando por aí
e num dia
num reencontro
decidiste partilhá-lo
agora
qual memória antiga
vais revisitando-o ocasionalmente
como a língua que procura
de vez em quando
aquela pequena fenda no céu da boca
dia 37
ouves passos em cima
mas desconheces quem os dá
nem sabes se uma sombra os acompanha nesse caminho
ou se é no escuro que acontecem como um vulto perdido procurando um destino
ficas quieto a adivinhar
num infinito que dura até adormeceres por fim embalado nesse compasso noturno
mas desconheces quem os dá
nem sabes se uma sombra os acompanha nesse caminho
ou se é no escuro que acontecem como um vulto perdido procurando um destino
ficas quieto a adivinhar
num infinito que dura até adormeceres por fim embalado nesse compasso noturno
dia 35
a única pontuação do que escreves é o tempo de um fôlego
não há vírgula nem ponto que possam domar esses sopros
não se enjaulam tempestades
por vezes o fôlego é curto e preciso
outras vezes é longo e não há pulmão que o exale de uma só vez
esses são declamados de um peito maior
vêm dos gigantes que viveram no passado quando o horizonte estava mais longe e os desertos estendiam-se por milénios
foi nas catacumbas do cosmos que se forjou a poesia
feita de uma lava primordial que não continha gramática nem sintaxe
era somente sangue e lágrimas e fogo e grandes clamores que deflagravam sem lei
era o germinar de um impulso que se fez instinto
não há vírgula nem ponto que possam domar esses sopros
não se enjaulam tempestades
por vezes o fôlego é curto e preciso
outras vezes é longo e não há pulmão que o exale de uma só vez
esses são declamados de um peito maior
vêm dos gigantes que viveram no passado quando o horizonte estava mais longe e os desertos estendiam-se por milénios
foi nas catacumbas do cosmos que se forjou a poesia
feita de uma lava primordial que não continha gramática nem sintaxe
era somente sangue e lágrimas e fogo e grandes clamores que deflagravam sem lei
era o germinar de um impulso que se fez instinto
dia 34
não sabes bem onde nem quando nem porquê
mas há um momento preciso e exacto e definitivo em que afloras o alento de um verso
como aquela preguiça inicial de quando acordas
um leve tremor da alma que te percorre as costas até se espraiar no abandono de um pequeno suspiro mais
e por vezes
só por vezes
tens a sorte de o alcançar e recolher como uma folha que se desprendeu da árvore
ou como uma traça desmaiada após um excesso de luz de candeeiro em noites densas de breu
já o disseste mil vezes e mil vezes o dirás de novo
não escolhes nada disto e nem sequer és escolhido
trata-se somente da força das inevitabilidades
mas há um momento preciso e exacto e definitivo em que afloras o alento de um verso
como aquela preguiça inicial de quando acordas
um leve tremor da alma que te percorre as costas até se espraiar no abandono de um pequeno suspiro mais
e por vezes
só por vezes
tens a sorte de o alcançar e recolher como uma folha que se desprendeu da árvore
ou como uma traça desmaiada após um excesso de luz de candeeiro em noites densas de breu
já o disseste mil vezes e mil vezes o dirás de novo
não escolhes nada disto e nem sequer és escolhido
trata-se somente da força das inevitabilidades
dia 33
as magias das espumas nas pedras da praia
como se esfumam num ápice e recomeçam logo de seguida
como uma sede insaciável de ser eternamente fugaz
vivêssemos assim sempre e em tudo
como se esfumam num ápice e recomeçam logo de seguida
como uma sede insaciável de ser eternamente fugaz
vivêssemos assim sempre e em tudo
dia 32
não se explicam os caminhos da vida
nem o sentido das coisas
porque terça-feira é sempre quando um homem quiser
nem o sentido das coisas
porque terça-feira é sempre quando um homem quiser
dia 31
quão longe estás de imaginar os anjos que velam o tempo
esses fazedores de milénios e séculos e milésimos de segundo e afins
os grandes encapsuladores de Cronos
guardiões da ilusão de que o passar dos prazos se pode conter em convenções
o tecido do tempo é indomável, selvagem que nem um desses equídeos das grandes planícies do oeste
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