o mar de pequenos nadas

foi dito
e é sabido
que existe no universo mais espaço vazio do que preenchido
entre os átomos e as moléculas
os elementos e em todo o infinitamente pequeno existe o limbo da matéria
o mar de pequenos nadas

explicam
aqueles que sabem
que nada verdadeiramente se toca
mas ainda assim
a nossa humanidade sabe bem que algumas coisas se tocam
têm forçosamente de se tocar

se não como se explicam os estremecimentos da alma
os assombros do espírito
as vertigens profundas dos seres

e não
o campo eletromagnético não explica tudo
tem de haver uma onda invisível e indizível que percorre o tecido do mundo e da existência
tem de haver poesia nos olhares que nos arrebatam e apenas as palavras certas a podem nomear
tem de viver algo nos gestos de carinho ou na promessa dos mesmos
até mesmo no adiamento do afago que quase desenhamos

a certeza inabalável de que nesse espaço vazio onde nada vagueia haverá um rumor feito de outra voz
um eco cuja vibração não se mede com nenhum aparelho que não seja a rendição do corpo perante a promessa da beleza momentânea de cedermos
de sermos mais que nós mesmos
ou talvez
de deixarmos de ser o que quer que sejamos para passarmos a ser uma outra coisa


por vezes

por vezes
a estrada estende-se para lá da própria solidão
como se o caminho sorvesse quietude até que sobre somente
um esquecimento do que foi um eco

lembro-me bem
de como muitos se lançaram na rota
uivando como lobos sob a maior das luas
para depois se esfumarem num nevoeiro sem memória
como se nunca tivessem existido
porque os que os viram partir se desviveram também eles
e porque a viagem os apagou a cada passo

os franceses têm uma palavra para estas coisas

néant
menos que nada
ou um nada tão nada
que de ter dado a volta a si mesmo
uma inânia se tornou

e a estrada
por vezes
assim espraiada até ao longe do longe
é um abismo
um afastamento ensimesmado
uma singularidade como lhe chamam os físicos

por vezes
quando escrevo e é noite
e ela dorme lá dentro
e a vida espera por mim amanhã
sonho em fazer-me a essa estrada
não para que me anule e silencie
mas precisamente o contrário
para que eu seja o primeiro a lá chegar
ao outro lado e poder fazer o que mais importa em qualquer viagem
regressar

o obituário adiado

ao passares junto ao portão de ferro do cemitério
espreitaste lá para dentro a medo
e viste nesse jardim de silêncio
campa sim campa não
as velas a luzir nos intervalos do negrume da madrugada
alumiando em soluços de brilho fosco
os epitáfios e os retratos sépia de quem por lá repousa

enquanto as mãos apertavam as grades frias e húmidas da entrada
e o teu olhar espiava essa pequena necrópole
uma voz rouca atravessou a noite

amigo
não se debruce tanto nem se apoie demasiado
olhe que cá entra antes do tempo
e eu só volto ao serviço amanhã de manhã

segui a montante o conselho proferido
e vi a um canto sentado numa cadeira
de cigarro na boca e um copo na mão
o velho coveiro da aldeia

acenei e segui caminho


o homem da paragem

já o tinha visto algumas vezes
mas hoje
pela primeira vez
decidiu falar sozinho enquanto o autocarro não chegava

à espera na paragem
estava ele
eu um pouco mais afastado
e uma senhora sentada

o homem vestia um fato preto com uma gravata desalinhada na camisa branca já gasta
tinha uma pasta na mão e uma gabardine sob um dos braços

luto sem outro corpo para destruir que não o meu
e na dor dessa violência enterro a dor verdadeira que nunca é minha por inteiro
diluo o amor pelas coisas simples que a vida me dá
bebo para entregar a alma
e órfão dela levanto num voo solene feito de sombra
deixo para trás a carcaça que eles já não podem explorar

enquanto falava abriu a mala e ia deitando no lixo da paragem
papéis rabiscados de uma letra ilegível

eles obrigam-me a escrever todas as noites
atiram-me para uma sala e forçam-me a versar até que a madrugada se esgote
e no fim quando já não me restam palavras
roubam as que eu despejei e atiram-me de volta para a manhã

sentou-se ao lado da senhora e continuou

mas hoje não
hoje um pouco antes do sol raiar
parei de escrever e saí da sala a correr
atirei-os ao chão e libertei-me
disparei pela rua e só há pouco me apercebi que tinha trazido a mala a gabardine e os versos desta noite

parecia enfim descansar
o autocarro espreitava já ao longe no fundo da estrada

partilha

curiosamente
enquanto a tarde se derramava lá fora
e os dois bebíamos há várias horas junto à janela
partilhaste um sonho que tinhas tido na noite anterior

disseste

eram cavalos em fogo correndo ao longe
um fogo de água que deixava um rastro de espuma sobre a areia

na verdade
contrapus

esse sonho foi meu
lembro-me dos equídeos e dessas chamas oceânicas
desse deserto arenoso junto ao mar

quando os copos se esvaziaram e nos despedimos
concluímos ambos que era melhor passar a noite em branco
partilhar uma insónia em vez de um sonho
dedilhar inquietações e evitar estas vulnerabilidades

já no passeio depois de nos encolhermos cada um para dentro de um cachecol
selamos a promessa
nenhum de nós revelaria mais os seus sonhos
e que se durante o sono por um acaso nos encontrássemos
representaríamos o papel de desconhecidos
seguindo cada um o seu caminho onírico