Começa assim:
Agora que Sérgio morreu, contarei como tudo se passou.
Reencontrar a voz de Vergílio Ferreira. Trata-se de um romance inédito da segunda metade da década de 40. Um jovem VF portanto. Reconheço-lhe a voz, e descubro os primeiros esboços daquele arrebatamento de existir, da estupefação perante o absurdo da vida. A evidência que é estar perante outro e a força das suas ideias e actos. Flávio fala do seu antigo professor Sérgio e da violência de ideias e pensamentos que travou com ele dentro de si mesmo.
Penso, porém, que um morto é um nome.
Isso: juventude prolongada por deformação profissional. Já tinha reparado, efectivamente, que os professores não são bem homens. Lidando com jovens, dissolvem a personalidade, ficam em geleia de jovens e de adultos.
Como sempre, tive a impressão que Sérgio não ouvia. De uma vez declarou-me que o ruído das palavras o intrigava, chegava a irritá-lo. Quando queria entender bem, de tal modo se enterrava no que ouvia, que as palavras lhe ficavam apenas sons, um ruído tonto borbulhando de uma língua, de um queixo e de outros instrumentos que não se viam. Afastando o barulho, esforçava-se por filar a ideia. Mordê-la. Impossível. Achava por isso admirável que os homens se pudessem entender mesmo assim.
- Bragança fica longe do Ministério e da Direcção-Geral. As ordens devem perder força pelo caminho...
No entanto, para a lembrança da minha juventude, sempre me vi trepado acima de Sérgio e Edmundo, com um pé plantado no erro de cada um.
O que mais me estonteava era sentir subjacente a tudo aquilo a torpeza de um erro deslumbrado pelo lúcido fulgor de uma razão aparente.
- Que está a fazer? - perguntei, com estupidez.
- Nada. Estou a sofrer.
Sentei-me, puxei de um cigarro. Reparei que me chocava menos aquele desvario.
- Aconteceu alguma coisa?
- Que coisa?
- Alguma coisa que o magoasse, evidentemente.
- Não.
- Então porque sofre?
- Isso é uma pergunta idiota, meu filho. Alguém pergunta porque é que a noite é triste e o sol alegre? Sofrer é tão natural e espontâneo como existir. Só os insuficientes é que procuram uma causa para serem felizes ou infelizes.
- As razões de um homem valem tanto como as de mil. A igualdade achata. Cinco dias iguais são mais curtos que dois diferentes. Mil homens iguais seriam somente um homem, apenas mais prolongado.
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