os lugares dos silêncios

os bolsos profundos de casacos que não vestes mais
gavetas que não abres e o interior do carro em dias de trânsito e chuva
as lembranças de tudo o que não viveste
os templos distantes de lugares que não conheces e
sobretudo
uma cama sem ti

bolsos cuja solidão é tão densa que as mãos se perdem e não mais encontram o caminho de volta
por lá deambulam outonos eternos povoados de algumas moedas esquecidas e rascunhos de uns quantos versos desalentados

a mesma aura de penumbra paira à volta das gavetas que nunca se abrem e por lá dormem cadernos tatuados de breves inspirações
no interior do carro a mesma mudez autista que sobra a embalar o trânsito habitual
as lembranças do que nunca aconteceu respiram o mesmo ar
e os templos distantes de terras às quais nunca foste padecem também do mesmo sopro brando
e a cama sem ti é o deserto onde tudo isso desagua de uma só vez



indigno de amanhecer

houve um tempo de manhãs consumadas
de um lento acordar onde o corpo despertava antes de tudo o resto

sobre a cama os rumores da noite anterior já esmorecidos
e a ausência a impor-se com o silencio da solidão reencontrada

na véspera povoaste-te de suores roubados
de carícias e atrevimentos apenas possíveis num desespero de sentires alguma coisa
qualquer coisa

mas as manhãs trazem o peso de um arrependimento
um arrependimento não passado mas futuro
como se o remorso viesse do porvir
como uma anunciação de que
mais cedo ou mais tarde
começarias a acordar e já o sol se teria posto
e a tua vida seria sempre uma noite ou uma madrugada mais

as manhãs ainda te assustam hoje
e talvez esse medo não se apague nunca
porque a manhã é um mundo perdido e longe
afastado do que os vícios te tentam

as manhãs são proibidas aos teus olhos
pois és esquivo de ti mesmo e a noite e as penumbras oferecem-te um ninho

porventura não te julgas digno de amanhecer

onde a poesia expira

que luto pode caber num livro
ou que silêncio num outro silêncio
quando madrugadas há que não terminam nunca de amanhecer

estas coisas espalhadas pela alma
e uma janela aberta para um mar enlouquecido
por onde o olhar se incendeia em correria
sem açaime nem trela nem dono

a sede de morder o horizonte
de o ferrar até ao rasgão
para que céu e oceano se despenhem de vez
e vermos como seria tudo isto
emaranhado no caos
na tempestade derradeira
no limite de um verso às portas de um silêncio tão denso
que o próprio breu se cala
e onde a poesia expira



o cego

a imagem terá o seu simbolismo
e como uma aparição
revelou-se inesperada

era um poeta cego erguendo uma tocha

para quê
se era cego

perguntou-me o meu companheiro de bebida

por isso eu pensei em simbolismo
não o saberia explicar

um cego com archote
por que raio

talvez para os que não fossem cegos
para que o possam ver
já que ele não pode

ah
assim percebo

e
de acordo calámo-nos
bebemos até ser dia e o dono do bar nos atirar pela porta de volta ao mundo




o personagem

o céu e nada mais
que ele se anuncie numa tempestade final

e usar estas frases como lema
nem que seja a fazer de conta
que isto de simular uma existência prende-se muito com a pose e com o estilo

pelo menos ter a decência de se tentar enganar as gentes
fazê-lo com classe
com a vaidade de um pavão mesmo que depenado

o céu e mais nada
e uma gabardina
e uns óculos de sol
e um humor tão corrosivo que entre a gargalhada e a vergonha
nasça uma dúvida cheia de certezas melancólicas

e claro
a acompanhar tudo isto
uma bebedeira daquelas


 

nunca leio o que escrevo

faz do gesto algo perfeito
como um acorde de piano exato numa madrugada
ou uma onda de inverno numa daquelas praias infinitas

lentamente no íntimo dos murmúrios noturnos
espera que se revele o verso definitivo do que ouviste lá longe
e deixa que pelos nevoeiros frios
corram desvairados os cometas forjados pelo cosmos
lê-lhes os rabiscos de faúlhas nas fendas do firmamento
conspira para que os milagres se anunciem
e os barcos possam desatracar e partir enfim rumo ao naufrágio inevitável

inspira-te no velho poeta que inventaste e que disse

não posso escrever sobre o medo enquanto o medo se revela

impõe-se um certo decoro durante o bolero das vertigens
e há que ter pudor quando alguém aterrorizado ainda não sabe bem que o está

por isso
antes de cada palavra e de cada verso
fecho os olhos
e nunca leio o que escrevo


 

insónia

há a possibilidade de todas as coisas e a impossibilidade de coisa nenhuma

escorre das paredes um musgo primordial
um magma do tudo por chegar
coalhado em manhãs que têm o peso de um arrependimento
como se o que dissesses agora pudesse ocupar um silêncio anterior

escrever o que te dita a voz muda da madrugada é o que resta
e nem o nevoeiro da memória
nem o roer do tempo
encobrem ou desfiam esta loucura
este traço imperfeito que de tão imperfeito
certeiro se revela

sobra a lembrança baça do que foi perderes-te num poema
e brotares do outro lado da página com o peito em chamas
coado por uma insónia que dura desde sempre

excesso maior

fosse eu um desses lobos do mar que o sol queima
e cuja pele é esculpida de ondas e sal negro
onde no lugar dos olhos habita o oceano inteiro

talvez assim pudesse eu pertencer a alguma coisa
e fosse digno de amanhecer

haveria lá excesso maior

atalho

a mesma velha história de calares
de te esvaíres em sombras no lento correr dos dias
no desvanecer das noites
no derramar sereno das madrugadas
até que nasça uma manhã de insónias
e com ela versos póstumos desse momento preciso em que tudo se revela

um dia leio-te tudo
isso palavra a palavra
verso a verso

talvez uma emoção nasça dessa leitura
algo inútil mas real

para que saibas que tenho cadernos vazios
adiados
rabiscados de abandono perpétuo da palavra
cemitérios de silêncio lavrados com a tua ausência

pois dos ecos da tua sombra nem penumbra ficou
nem cinza nem pó
nem a intenção
essa etérea nuvem que por vezes resiste a tudo
nem ela permaneceu
esfumou-se no breu derradeiro do esquecimento

que resquício de contentamento pode sobrar

somente uma promessa quebrada

e é sabido
uma promessa quebrada é atalho para a loucura

alguém

viste um solo lunar
queimado pelo frio e pelo silêncio
mudez petrificada
um esforço derradeiro de seiva e lava
que hibernou desde que o tempo tem memória

talvez mais à frente na combustão da primavera
alguém possa passar os olhos por um livro e lá os deixar para sempre