desígnio

meu amor
no silêncio sigo-te quieto
e no escuro sem ver
vejo-te ainda assim
como se o teu desenho se revelasse por entre a penumbra
e a silhueta que és vai saindo da cama em direção à porta

antes do teu regresso
o que é nosso paira sobre o quarto
e dura uma madrugada
ou um sonho febril

quando voltas
e o leito balança como quem entra num bote
desatracamos de novo e rumamos pela noite

sem compasso nem bússola
sem estrelas nem destino

navegar é já de si um desígnio

Gilreu


a pedra à deriva
mas sendo âncora

ao largo
perto e inalcançável
feita de utopia

um horizonte em si mesmo
Camelot oceânica

Chamem-me Ishmael


Pelo menos em Março de 2011, já eu tinha iniciado a leitura de Moby Dick na versão original. Um ato que não pensei durar mais de uma década, mas que quase de imediato soube ser uma loucura.
Na minha vida de leitor, recordo apenas um livro que comecei e não terminei (Ulisses de James Joyce, também na versão original).
Moby Dick, a bem ou a mal, eu decidi, desde cedo, que iria lê-lo de uma ponta à outra, nem que para isso me afogasse. E afoguei-me várias vezes em interrupções sem conta.

A imagem acima foi ontem à noite, regressado de uma ilha, com o livro na mão e finalmente lido. Agosto de 2024. Pelo menos 13 anos de leitura.

Das centenas de capítulos e páginas, ficou-me um infinito de léxico marítimo por decifrar, fiquei-me pela intuição do que podem significar, um périplo de um barco e de uma tripulação, de seres marinhos, de horizontes sem fim e ondas do tamanho de catedrais. Ficou também a sensação de que as noites em mar alto são de um breu extremo, que mesmo alumiadas por lamparinas a óleo, essa luz tem negrume e a humanidade move-se por sombras tão densas que nem uma centelha faísca.

O que me fica também é o sabor a sal e a noção exata do que é uma obsessão.
A obsessão como fatalidade.
Seja a do autor que se agarrou à escrita, nota-se que exigiu uma entrega maníaca, uma teimosia irredutível, seja à minha leitura de náufrago, que engoli a espaços de meses e meses sem vir à tona, seja  até à loucura de um homem, um capitão numa perseguição compulsiva em busca do que ele julgava ser uma vingança mas não era mais que o reconhecimento de uma inevitabilidade.
Foi-se o barco, foi-se a tripulação e um homem amarrado a uma baleia branca, caindo nas profundezas oceânicas. Sepultados todos num fado inexorável.

Sobreviveu Ishmael e o relato.

Chamem-me Ishmael.

intento

quando parecia que as palavras tinham ido de vez
que não havia mais nada a dizer
ou que o que havia a dizer não sabia como ser dito
ao largo surge o navio que é a poesia
de destino traçado em naufrágio certo
perdição e desencontro

mas nesse desterro
ainda assim
nesse fim submerso e silencioso
na vertigem final do derradeiro verso
há um regresso a casa
um lar primordial
o retorno a um lugar onde nunca estivemos
e que no entanto nunca deixámos

e nesse afogamento
a sede de infinitos não se mata nunca
porque a ânsia de vales e montes
de mares e marés
de céus e madrugadas e de cosmos é insaciável

até mesmo para lá do último sopro
para lá do último sonho
reverbera um intento insondável e indomável

o velho com amnésia

não me lembro daquilo que esqueci
e busco por entre o labirinto da amnésia
a memória de uma coisa qualquer que se me escapou

talvez não por completo
mas ainda assim pressinto que uma boa parte se foi

não sei se é irrecuperável ou se pode renascer
se pode de novo atear o grande incêndio que sei ter lavrado antes

quando vou lá atrás e vasculho
quando mergulho as mãos nas gavetas e recolho os cadernos
e os abro e atiro os olhos às leituras
revejo palavras que escrevi
dedicatórias que fiz outras que acolhi
e ainda assim não me lembro daquilo que esqueci
como se já não houvesse chão para esses passos 

eu amei fui amado
eu desamei depois
com afinco e dedicação pelo meu alienamento de ser tudo tão plenamente que acabei por ser outra coisa
e sendo outra coisa não fui mais o que tinha sido

Pico


passaram alguns dias
e de volta à rotina
habita-me ainda o assombro daquele lugar

não é só uma terra dos sonhos
é um universo paralelo
um sítio para lá do aqui

uma embriaguez e um enlevo
uma miragem magnética cuja vertigem é um doce atordoamento

está ali um monte no meio do Atlântico
e todo um derrame de lava petrificada a cair sobre o mar
no céu desenham-se voos de cagarros e outras aves
nas águas vários cetáceos em torna-viagens  
em terra há gente que luz orgulho na voz e nos olhos
e vinha nascida de um milagre contínuo

um paradoxo de irrealidade
e a certeza de que é inevitável o meu regresso
seja em carne e osso no futuro
ou em pensamento para sempre

nunca nada é sempre tudo

nunca nada é sempre tudo
nem tudo tem de ser sempre alguma coisa

e neste aparente nó edifica-se uma forma de se estar
estoica e serena
porque vamos estando em cada momento

e navegando entre vários esquecimentos
à deriva entre olvidos
de pouco servem certezas absolutas cheias de teimosia

não significa isto que não se nade nesse mar
somente se entende que não basta esbracejar
para não se morrer afogado

um poema que é mentira

um poema que é mentira
pois não se agarra o que é autêntico
ele tem coordenadas presas ao tempo
esculpido em cronos
feito pó poeira e bruma no instante seguinte

um poema que é mentira
como o são todos pois vivem na memória etérea
nas ruinas de uma lembrança

versos que não são mais
mesmo que lidos de novo porque a voz faz-se eco
e o eco extingue-se em murmúrio

poesia que é dúbia
que as certezas são feitas de ilusão

um poema que é mentira
num mundo de tanta verdade
resiste no embuste como símbolo solitário de exatidão

um poema que é mentira
e por isso
livre

ainda não acabei

Manuel Cruz

mergulha-se
e no simbolismo navega-se à flor da alma
contra as correntes e os ventos
ou naufraga-se que no fundo vai dar ao mesmo

já se disse antes
um náufrago não deixa de ser marinheiro
e quem sabe se não é o maior dentre eles
como são poesia os silêncios entre as palavras
ou como é saudade o nó que aperta mesmo antes de se saber do que se sente falta
ou são premonições os sonhos febris nas noites de verão

o que sobra

disse-me que desconfiava
que seguramente eu tinha escrito naquele dia derradeiro
que
conhecendo-me
não seria possível que eu não tivesse escrito

pode ser que tivesse razão
mas eu não confirmei

escrever está para lá de mim na verdade

basta uma melodia a pairar e uma madrugada pela frente
e é sabido
que melodias e madrugadas não faltam
nem palavras nem coisas a dizer

o que sobra é a dúvida de uma leitura
porque um verso trinca-se até que sobre somente silêncio e um pouco de saliva nos lábios

um poema estava escrito

e a voz dela desceu como o sol nas tardes intermináveis de outono
feita de veludo e de abraço felino
um afago com acorde de piano

de pé olhava-a deitada no sofá
o mar a entrar pela janela infinita
a banhar-lhe a almofada de caracóis
os barcos ao largo num balanço subtil
voos de gaivotas no alto de um céu malhado aqui e ali de nuvens passageiras

o tempo a passar devagar
e as orquídeas eternas em em flor
os livros nas estantes a sussurrarem
um caderno sobre a mesa à espera de um verso

fiquei
aguardei que viesse

quando chegou
trouxe vários
e à mesa ficámos enquanto ela dormia

já não sei se bebemos ou se escrevemos
mas no fim
quando a noite já chegara
um poema estava escrito


a sede

bebe até a sede voltar
uma e outra vez
como uma obsessão
e onde saciar é o verbo definitivo e também impossível

uma sede que não se mata
e que insiste em não morrer

a solidão

num dos inúmeros inícios
quando os primeiros seres se refugiavam em cavernas
pintavam o universo nas paredes
tatuavam
com lama carvão e sangue céus e horizontes
ardiam em sonho e alucinações todo o real
nasciam e morriam nesses incêndios dentro dessas mesmas grutas
nunca de lá de saiam de verdade

desconheciam que a morte quando chega
chega para todos no mesmo exato momento
que é quando o tempo se esgota e acaba

e eram ignorantes de que a única escolha que todos temos
é a de poder morrer agora ou morrer mais tarde
não existe outra

e de tão solitários serem
tão abandonados nesses incêndios do espírito
tão órfãos de deuses e de esperança e de acasos
descobriam a solidão em todo o seu esplendor
não tinham a quem rezar
pois eram eles os deuses e as esperanças e os acasos

quiromante

o que pareciam ser vales imensos
eram tão só rugas na mão de um gigante

por esses desfiladeiros errou o poeta durante mil ocasos e mil auroras
desbravando madrugadas 
batendo trilhos
cruzando margens e escalando montes
teimando por caminhos encarquilhados
até às falésias derradeiras

no fim
na foz de tudo isso
na praia do cansaço e da rendição
já lhe lera a sina inteira

o acordo tácito da poesia

talvez tenhamos que rever a idade das coisas
recontar cada instante de novo
acautelar instantes que se nos tenham escapado
e fazer as contas uma vez mais

pelos vistos falta tempo ao tempo para explicar a existência de factos consumados

as palavras provavelmente são insuficientes ou limitadas
e as interpretações ganham vida própria

aliás
aviso
que cada leitura se faça por sua própria conta e risco
este é o acordo tácito da poesia

não culpem a voz nem lhe deem graças
os versos ficam órfãos a cada novo silêncio
são lobos solitários que uivam e uivam até a própria lua não caber mais no céu

em que

encerremos
cubramos com um véu ou manto
este horizonte inalcançável

deixemos que se extinga o suspiro do cansaço e do abandono

que o mar se estrele em mil sóis e bambeie num ondular sereno
e que o sono venha aos poucos e de soslaio

e que quando chegue
a memória se esfume no instante exato em que