dia 273

não há nada hoje
nada que te inspire e te ajude no início do verso
e isso é bom

é bom porque a inspiração é uma mentira
e as coisas acontecem porque sim
e também porque não

as luzes da sala adormecem aos poucos
e apesar do piano que puseste a tocar
há um silêncio a roer a noite e a implorar que vás dormir
mas nunca vais dormir
ou melhor
vais sempre dormir um pouco depois
um pouco mais tarde
não sei porquê
mas é assim
adias-te
e amas e odeias esse teu atraso

dia 272

uma coisa é a borda do lençol na cama
a que dobramos até nos cobrir o corpo antes de adormecer

outra coisa é o profundo do lençol
o meio da cama e o poço no qual caímos durante a noite e o sono
aquele meio onde nos perdemos em febre e naufragamos um no outro
esse mar desconhecido e nocturno onde te desencontro e encontro entre insónias e despertares

esse lugar sem nome mas com sabor a pele ao acordar na preguiça matinal

dia 271

poderia escrever sobre a promessa de uma ilha e uma montanha
de todo o mar à volta e de um horizonte mais longe visto lá de cima
de cetáceos a rasgar a película encorrilhada do oceano
de pedras negras e vento a saber a sal

mas não
prefiro esperar e escrever sobre a promessa de uma ilha e uma montanha
de todo o mar à volta…

dia 270

escreveu durante algum tempo até que parou
levantou-se e bebeu um copo de água
foi até à janela
o caderno sobre a mesa esperava

deixou-se ficar
o vento passava

a solidão que esperasse um pouco mais
não fazia diferença
nunca
na história destas coisas
ficou um verso por escrever

dia 269

era um individuo todo ele metido atrás dos óculos
a figura mingava e cabia nas lentes

olhava o meu jardim e dizia que lhe lembrava uma cortina japonesa
ia puxando os óculos ao nariz com a ponta do dedo

eu ficava em silêncio
demasiado ressacado para contrapor uma ideia ou esmurrar-lhe a cara
até porque os óculos pareciam sólidos
e provavelmente as minhas mãos pouco habituadas a socos sofreriam com o impacto

no fim
quando ele foi embora
fiquei a pensar na cortina japonesa

até hoje

dia 268

sãos as quedas
o despenhar do espírito nas águas profundas do esquecimento

são os gestos solitários dos loucos
o desespero de ter no corpo um outro corpo feito de fogo a querer sair

são os uivos
as fúrias que mordem a própria língua e que rangem os dentes até quebrarem

são os poemas
as ânsias que se escapam pelas palavras como os pássaros assustados pelo tiro da espingarda

és tu
a fruta doce do verão e o aconchego de um cobertor no inverno

dia 267

uma certa forma de prever o movimento do vento
e de como cai sobre os ramos e as folhas
e de como dança nos teus caracóis
e de como se lança sobre a camada enrugada do mar e o encorrilha até ao infinito

os voos das gaivotas que desenham os caminhos insondáveis da inspiração
e que encontram sempre um caminho
uma trajectória
um ir

dia 266

o que ele disse era verdade
e um vestígio de emoção ainda escorria do rosto
uma última gota de qualquer coisa a vibrar nos olhos
até que a cara se petrificou em estátua parda e o semblante neutro revelou-se

nós todos ficámos sem saber o que fazer
se acudir
se apenas aceitar que quando se despeja a alma é natural que os despojos sejam feitos de silêncio e de quietude

dia 265

eu queria inventar um amor
ou pelo menos
inventar melhor os amores que fui perdendo
certamente para os perder de novo

ela dizia estas coisas ao telefone
eu ouvia mas era a falta de cerveja no copo que me prendia grande parte da atenção
até porque ela estava numa mesa mais afastada
e não era certo que as palavras que me chegavam eram as que realmente ela dizia

imaginei então que não sendo essas as palavras
os amores perdidos já não o eram
e nada havia a inventar
apenas um copo para voltar a encher

dia 264

esquece o corpo
deixa-o para trás
leva somente o brilho do sorriso e a sombra das mãos

colhe as tardes lentas do outono até serem noites de inverno
aconchega-te num cachecol colorido
e caminha contra o vento

o carácter vai-se construindo nessas pequenas coisas

dia 263

avisam-te sobre os perigos de não cumprires uma promessa

mas esquecem o perigo escondido das promessas cumpridas 

dia 262

Entrou decidido e sentou-se à minha frente. Não o reconheci. Começou a falar enquanto eu bebia a última cerveja. Já antes dele entrar, essa decisão fora tomada.
O que dizia eu não percebia bem, mas evocava gente toda vestida de igual que se juntava para escrever. Sobre isto, sim, eu já ouvira falar e testemunhara da veracidade da coisa.
Lá continuou mais algum tempo até se despedir, levantar-se e, tão decidido como chegou, saiu.
Terminei a cerveja, quente e murcha. Paguei. 
Cá fora, de regresso a casa, vi três homens vestidos de igual. Entraram para uma casa abandonada. 

dia 261

recordo os jardins lavados pela chuva
o frio da manhã e o silêncio que antecede o retomar das coisas

nas árvores e na relva
os corvos vão pintando manchas de breu

a promessa do outono a chegar 
e de que o tempo
a partir de agora
vai passar mais devagar

mas
como sempre
vai passando

dia 260

o que o atraiu foi o cheiro a café, pão fresco e um sorriso bonito à porta

quando entrou e viu em roda um grupo de gente a meditar
juntou-se e meditou também

no fim
lá bebeu o café, comeu o pão e sorriu de volta 

amanhã talvez voltasse 

dia 259

sobre as nuvens dissertou longamente
descreveu-lhes os esquissos em detalhe
e as danças lentas ao longo da tarde correndo o céu
como a espuma de uma onda perdida no meio do mar

a este prazer dedicava-se sempre que a melancolia lhe chegava sem avisar

sabia que por cima
nas pinceladas do firmamento
haveria sempre contornos a descobrir
mesmo quando carregado de chumbo e a chuva a cair
nuances existem nos tons de cinzento

não se explicam as cismas
nem as manias
a escolha que se coloca é simples:
ou as ignoramos ou delas fazemos uma forma de se ser gente
às loucuras apenas se entregam os corajosos

dia 258

um ofício é um ofício
e anos a fio
desde novo
tirava terra de um lado para por ao lado

as mãos calejadas como que um calendário
de todas as campas que abriu

mas porque também os coveiros se apaixonam
quando foi da mulher
pediu a outro que abrisse o buraco
limitou-se a deitar o ultimo punhado
e pensou
quando morrer a última pessoa
não haverá quem a enterre

dia 257

com tempo
pousa a alma
estende-la no fio do horizonte 
põe-na a arejar nos ventos do infinito 
sacode o pó e os cheiros 
purifica-a até à nudez

veste-a uma vez mais
com a alegria das manhãs lavadas
e regressa ao caminho

dia 256

à flor da pele corre uma brisa
percorre os poros e contorna os sinais
e eleva-se ao arrepio

vai e vem
como um soluço telúrico

eriçam-se os sentidos
num espreguiçar que acaba por desprender os lençóis

viro-me
e adormeço de novo

é o meu momento favorito no sono 

dia 255

ouves ritmos criolos hoje
que te embalem nessa sedução sem fim
que a seda da língua te envolva 
que essa febre te possua

eu irei mais tarde
colher tudo isso na tua boca e no teu corpo

dia 254

as luzes vão cavando na escuridão
e a loucura das traças rodopia nos lampiões

faz calor ainda
apesar de ser noite
a terra engoliu o sol
aos soluços durante o dia
e agora rumina uma febre nocturna

eu respiro
devagar
que o há momentos
em que somos nós que mandamos em Cronos 

ou assim o pensamos
e assim ele nos engana

dia 253

a noite caiu-me de novo em cima
não houve verso que resistisse

foi preciso que a manhã inteira se derramasse
para colher poesia

dia 252

deixa passar a corrente
e esquece-te de te lembrares
que há dias que se esvaem como os nevoeiros lentos das manhãs 
e quando reparas
já é amanhã 

os ontens caíram em silêncio
mas honrados 

dia 251

um pequeno vislumbre
uma amostra somente

e perceber o privilégio
a sorte

são estes os dias que valem a pena

dia 250

o calor e o cheiro a xisto que não se explica
o rumor de um grilo incansável pela noite
os dias que se alongam até ao último cacho desengaçado

estas são as promessas dos meus próximos dias

dia 249

talvez possamos descansar numa sombra
deixar que o sol do meio-dia passe
saciar a sede e esperar que o sol desça um pouco

talvez aí possamos olhar para a copa da árvore
reparar na folhagem a peneirar a luz e o calor
ver os veios nos ramos e no tronco
imaginar as raízes e os silêncios subterrâneos

e então quem sabe
comecemos a falar
a contar histórias e medos e desejos

poderemos por fim voltar à estrada
com menos calor
e menos peso na alma

dia 248

a seda de uma língua
a textura do leite
um acorde de piano

e neste aparente caos
tudo faz sentido

seja um beijo
uma sede antes de ir dormir
ou Chopin de imprevisto

dia 247

há muito que ninguém te conta um segredo
nota-se nos olhos
tremem quando sussurro um verso
revelam uma ânsia e uma vertigem

não serei eu a dizê-lo
não sei nenhum
nunca ninguém mos falou
mas sei que existem
que roem as penumbras e assombram o sono

eu apenas murmuro o que se revela
como a voz do narrador nos romances
ou a chuva quando cai

dia 246

recordo uns versos sobre alguém a escrever num barco
porque a esta hora vejo os cargueiros ao largo
à espera que o porto reabra
as luzes como uma grinalda no fio do horizonte
e pergunto-me se esse alguém ainda lá está a escrever

porque nunca acaba o que é dito no silêncio

dia 245

talvez voltar às coisas simples
correr
beber um café
olhar aquários vazios
ler de novo os livros que te marcaram
pontapear uma bola
comer um pacote de bolachas inteiro

ou então inventar um passado
mentir a propósito da cicatriz que tens no braço e da pequena falha no sobrolho
lembrares de que nunca foste loiro nem tiveste olhos azuis
que a tatuagem no ombro se apagou porque na verdade nunca a fizeste

queimares os cadernos de poemas no grande incêndio romântico da tua imaginação

ou então
em vez de tudo isso
ires dormir
que já é tarde

dia 244

até veres uma lua a nascer
não tens o direito de uivar

mais um bêbado com suas tiradas a estragar-me o sossego da cerveja
não que me falasse directamente
mas falava alto para todos os que estavam sossegados e sentados nos seus cantos

há gente assim
gente que tem coisas para dizer
e nada nem ninguém os cala

assisti a socos e navalhadas
e ainda assim
essa gente
mesmo ensanguentada e de olhos pisados
acaba por dizer sempre mais qualquer coisa

merecem por isso o nosso respeito