casaco de ganga

Comprei um casaco de ganga. Só tive dois casacos de ganga. Um quando andava na escola armado em grungeiro e outro na faculdade que raramente usava. Este é o terceiro. É de ganga cinzenta, forrado a flanela azul e branca e tem na gola uma lãzita de cor de ovelha suja.
O simbolismo disto é que por vezes sabe sentir um abraço do passado esquecido. Como um regresso inesperado ao ninho.

cadernos vazios

Vieste, sem falar, para junto da janela. O céu ao longe desenhado por algumas nuvens, deixava, ainda assim, entrever o sol.
Vários rastos de avião cruzavam no alto. Na estrada passeavam-se algumas pessoas no início de tarde.
Abriste a janela. Uma brisa entrou e enroscou-se nas cortinas.
Olhava-te, sentado enquanto limpava o pó de um caderno cheio de palavras.
Um dia leio-te tudo isso. Palavra a palavra, verso a verso. Talvez uma emoção nasça dessa leitura. Algo inútil com certeza, mas real. E então, ao olhares pela janela verás que esses rastos de vôos no alto, desenham uma teia infinita de destinos adiados, de silêncios, de futilidades.
Para que saibas: tenho cadernos igualmente vazios, adiados.




sem ti não há manhãs

uma manhã que seja sem o eco do teu corpo sobre a cama
ou sem o som dos teus passos no quarto ao lado
ou sem a tua silhueta desenhada por trás do vidro embaciado do banho
é uma manhã vazia.
por muito sol que inunde as paredes
por muita chuva que resvale nas janelas
sem ti não há manhãs.
sem ti não amanhece nunca.

abandono perpétuo da palavra



O teu abandono perpétuo da palavra. Cemitérios de silêncio lavrados com a tua ausência. O que deixaste por dizer jamais será dito. Essa ferida não sara mais, não sara nunca.
O compromisso com o verbo estilhaçado por infinitas páginas em branco. Dos ecos da tua sombra nem penumbra ficou. Nem cinza nem pó. Nem a intenção, essa etérea nuvem que por vezes resiste a tudo, nem ela, esfumou-se no breu derradeiro do esquecimento.
Que resquício de contentamento pode sobrar? Apenas uma promessa quebrada. E é sabido, uma promessa quebrada é o atalho para a loucura. Queda, talvez, uma escapatória: é igualmente sabido, que uma promessa cumprida é, também, muitas vezes, o desvio imediato para a demência.
Se ficar perdido era a sina irremediável, o caminho para a cumprir seria, porventura, irrelevante.

Sicília, notas avulsas para memória futura

Curiosamente, começou em Espanha a aventura siciliana. Voámos do Porto para Madrid onde fizemos uma escala de várias horas. Nessa paragem encontrámo-nos com amigos do tempo de Erasmus da Lira. Todos italianos e com conselhos ótimos para os dias que se avizinhavam. A lista reproduzida abaixo foi uma cábula preciosa sobre gastronomia. A amizade criada em Erasmus valeria uma reflexão própria, é uma amizade feita do mesmo tecido que a família, não se explica, fica para sempre, como uma tatuagem na alma, e a cada reencontro os contornos desse desenho adensam-se.


Dia um na ilha. Fomos ver o mar. Há uma luz própria do Mediterrâneo e dos seus mares. Um azul primitivo, telúrico passe a aparente contradição. Esse manto azulado serviu de berço a muitas civilizações e parece que a cada vaga leve nos relembra tudo isso 2- Palermo, tarde, contato com Mediterrâneo, cor azul. Noite palermo, peixe fresco, grelhado na hora. Palermo enorme.
 
 

 
Primeiro contato com Palermo. Na minha ignorância não pensei que fosse um cidade tão grande. Perto de 700000 habitantes, Palermo não é uma cidade fácil. Pesada, densa, um pouco suja. Mas perto do centro histórico não faltam coisas bonitas e sente-se, como só em alguns sítios, o caratér do local e das suas gentes, um orgulho palpável. Encontrámos um mercado/restaurante numa praceta que nos tirou a barriga de misérias. Escolhia-se o peixe e marisco fresquíssimos na hora e tudo saltava para a grelha o sertã para cozinhar.
 

Dia 2, novo encontro com uma amiga do tempo de Erasmus da Lira, em Patti. Recebidos pelos pais da nossa amiga Federica, comemos pasta alla norma e de sobremesa cannoli, depois de uma bela manhã de praia. Cannoli foi uma descoberta revolucionária. Eu que não sou especialmente fã de sobremesas, este biscoito recheado a ricota entra no meu top 3 de sempre.


De tarde visitámos Cefalu. Baía saída dos livros sobre piratas. Ruelas com cheiros de outro tempos e o sol a desvanecer devagar.


Dia 3, visita à reserva do Parque Natural do Zingaro. Um Gerês mas com mar. Escarpas derramadas de um lado, montanha do outro. Em cada pequena praia que encontrávamos descíamos para um mergulho de água quente. Os olhos e a alma voam para lá de nós.



Dia 4. Uma das parias mais bonitas que já vi. A Scala dos Turcos. Azul e branca, como outro grande amor meu. Azul do mar e branco de uma falésia enorme de calcário. O contraste é tal que o sol queima por todo, do firmamento e da parede alva cheia de rugas calcárias. Dia de praia inesquecível.



De tarde fomos a Agrigento. Visitámos o parque arqueológico. Imaginar templos gregos e romanos com mais de 2000 anos e ainda de pé. Oliveiras com meio milénio de idade. O silêncio nessas pedras amareladas, o céu sempre azul até cair o sol. Sombras deitadas para lá da imaginação. Isto não são ruinas, o que eventualmente não está lá, lá está em espirito. As gentes de então descobriram o segredo das árvores e semearam-no nos templos, mesmo mortos, morrem de pé.



Dia 5. Saímos de Palermo em direção a Catania. Palermo, como disse, não é uma cidade fácil mas sempre surpreendia ao virar da esquina.


Catania, por seu lado, seduziu logo e foi o nosso poiso até ao fim das férias. Um mercado de peixe diário, efervescente todas as manhãs. E brindou-nos com uma chuvada tropical que não esqueceremos.


Dia 6. Visitámos Castelmola, pequena aldeia no alto duma falésia. Um nevoeiro pesado cobriu tudo durante a manhã. Com o passar da horas foi-se dissipando e quando descemos a Taormina só ao longe havia nuvens. Essas cobriam o monstro silencioso chamado Etna.



Dia 7. Fomos a Siracusa. Entrámos em Ortigia que é uma ilha (península agora) que estica a cidade pelo mar. Uma preciosidade. Um mercado típico do cruzamento de diferentes civilizações e culturas, praças e monumentos inundados de luz. Uns dos cenários que mais me deu prazer em beber uma cerveja.
De seguida o parque arqueológico e o seu teatro grego ainda perfeitamente desenhado contra a erosão dos anos.
À noite regresso a Catania onde jantámos na Tratoria Giglio Rosso onde comi uma das melhores refeições da minha vida, um spaghetti vongole perfeito. Explicar isto não é fácil. Enquanto que um cannoli, a tal sobremesa divina, sei que poderei repetir, aquele prato, naquele local, com aquele sabor, naquele sítio, naquele momento, é irrepetível (não há foto).



Dia 8. Fomos de manhã ver a Gola dell'Alcantara. Regressamos a Catania para almoçar, atacar um último cannoli e ver ao fundo da avenida Etnea uma montanha de nuvens a cobrir o vulcão ao qual subiríamos mais tarde.




 


Etna. O que é um vulcão? A voz do planeta que ocupamos. Das entranhas por vezes vem fogo e esse fogo amontoa-se em pedra negra e cresce até aos céus. Por sorte, subi a este.



Dia 9. Regresso, nova escala em Madrid com tempo ainda de visitar o museu Thyssen. Entre muitas obras ficou este Bacon. A mesma perplexidade com se olha o que da terra sai, um vulcão, este é um vulcão humano, enigmático, tortuoso, infinitamente belo.

 
Pedras Rubras, à saída do avião.

antecipar o desenho das nuvens

Quando começo a escrever o céu está azul quase por todo. Algumas nuvens deslizam devagar no alto. Uns quantos arquipélagos de algodão a revolver no firmamento. Antecipar-lhes o desenho certo no momento exato do fim da prosa é tarefa complicada, pois se agora parecem barcos, basta uma sílaba mais e em pássaros se transformam. E outras sílabas mais à frente em abstrações de árvores se desenham. A metamorfose das nuvens é mistério com segredo bem guardado. Recordo Herberto Hélder e o peixe que ia mudando de cor à medida que o artista o ia pintando. No fim, pintou o peixe de uma cor que ele ainda não tinha. Talvez neste céu, estas nuvens, no fim disto tudo, descansem com o teu desenho, o teu rosto de perfil, desvanecendo em azul e em ocaso.

a beleza absolutíssima

O portão em ferro com quatro letras: DAAF. Dona Antónia Adelaide Ferreira. Uma mulher ímpar na história do Douro e do país, como esta Quinta que dela foi e que eu já por 4 vezes tive a sorte de visitar e, desta vez o privilégio enorme de lá dormir.
 

A casa é como a paisagem, uma lenda, algo de inverosímil. Feita do próprio tecido do tempo.


A paisagem já a descreveram muitos. O melhor que sei é dizer que o mesmo deslumbramento se sente aqui como perante o mar, só que as ondas são de vinha e xisto em todo o redor e que o silêncio é tal que se faz ouvir.
 
 


Torga disse que o Douro era "a beleza absoluta", a Quinta do Vesúvio é a beleza absolutíssima.

A janela

 

Pelas traseiras entrava o mar, quer em luz infinita de verão quer em negrume de inverno com rajadas de chuva e vento.
Pela frente era um outro silêncio a roçar a porta. E no quarto de cima, o dos avós, a quietude era tal que apenas o tempo o parecia habitar. Havia uma sombra do lado de fora da janela. Uma árvore. Essa árvore foi sendo várias árvores ao longo dos anos, substituída à medida que as raízes se tornavam demasiado profundas. Dizem que minha avó chorava cada vez que a removiam para lá meter uma mais nova, mais franzina. Na rua havia uma garagem cuja moldura foi baliza de futebol durante gerações. E a árvore subia até à janela onde a avó espreitava quem passava.
Foi há séculos. Foi ontem. Será para sempre.

dos cadernos


O teu deserto é feito de um outro nada, de uma outra solidão. O teu silêncio é sopro de outra cor e tecido. A imensidão dos nossos corpos cobriria o mundo inteiro como um manto infinito de penumbra. O tempo inerte, incolor.

dos infinitos regressos

Esgotaste as desculpas e todos os adiamentos possíveis mas existem inevitabilidades agarradas às palavras. Escreves, portanto. E isto de escrever é mais forte que tu, é, como dizem os franceses, "malgré toi". E sendo assim estás isento de responsabilidades, de moral e de ética. Mesmo até, isento de estética. Literalmente. Ainda bem.

Calhou de lá passar um rio

Lá voltei, pela quarta vez em formação pela Symington, a sorte de ver de tão perto uma das maiores esculturas do mundo. Torga disse que era a "beleza absoluta" e bastou-me ir lá a primeira vez para o confirmar, mas para além da beleza há todo uma outra coisa que eleva o Douro a um milagre humano sem paralelo. Porque paisagens belas, deslumbrantes, existem em cada canto do nosso mundinho, mas o Douro é diferente. Está lá a paisagem sim, trabalho dos milénios da geologia, mas há uma outra coisa por em cima, algo mais recente no calendário cósmico, há todo um trabalho do Homem a desenhar esse vale, a plantar teimosamente vinha e a fazer dela a custo de sangue e suor, vinho. E pensar-se no caminho percorrido nos últimos séculos, no avanço tecnológico aliado há mais nobre das tradições de viticultura e vinificação, na produção pelas mãos mais humildes das gentes durienses de vinhos bebidos em palácios reais e em restaurantes de luxo por esse mundo fora, perante tudo isso me deslumbro de cada vez que lá vou. Disse-o alguém: o Douro são pessoas, trabalho, xisto, vinha e vinho, calhou de lá passar um rio com o mesmo nome.
 

O vento diz coisas

O vento diz coisas. Talvez não saibamos bem quais mas diz. E o mar, estes dias, veio confirmá-lo. Cada onda estendida para lá da praia até à estrada, será uma forma do vento falar. E as árvores nuas, tombadas ou de pé, uma outra forma. E o rodopiar das folhas soltas nos jardins uma mais. As coisas que dirá vêm de longe, de um outro tempo, e mesmo que repetidas são sempre novas. Há nas tempestades uma rebeldia que nos assusta, um estremecimento do mundo que abala também por dentro e ficamos sem saber se foi em nós que se iniciou ou se apenas servimos de eco, de caixa de ressonância.
O vento diz coisas, basta ser-se surdo para ouvir.