houve um tempo

houve um tempo de sol a entrar pela janela da sala
iluminando os quadros e desenhando sombras sobre as paredes
havia o mar ao fundo sob um céu de azul intenso
enrugado de prata, estilhaçando a luz em mil reflexos

as horas a passar devagar ao ritmo do silêncio
tu e toda a quietude desse cenário
a profunda melancolia da solidão
da espera

houve um tempo de noite a esgueirar-se sobre o sol
a cobri-lo aos poucos levando-o para lá do horizonte
deixando sobre a mesa da sala toda a poesia possível
todo o teu atabalhoamento com as palavras
esse doce jogo de literatura que te enganava
tanto parecendo infinito como perecendo no mesmo instante da leitura

houve um tempo de madrugadas eternas
o firmamento insistindo em escuridão largas horas
e a tua insónia enraizada nas páginas alvas dos cadernos

houve um tempo de manhãs pálidas
esgotadas por noites em branco
manhãs deitadas em camas por fazer
onde te encolhias e finalmente dormias
ou algo parecido com dormir
adiavas-te esperando um futuro imaginado
conquistado por dentro mas deserto por fora
como todas obras por criar

Torrente

Não era sempre, mas às vezes, devido provavelmente a uma abertura da alma, qualquer palavra que ouvisse ou lesse, representava todas as palavras. Imagine-se, lia água e era de imediato submerso com o infinito do léxico no pensamento, uma torrente de semântica avassaladora, um maremoto de tudo, e por segundos, breves segundos, tornava-se conhecedor de todas as coisas possíveis. A experiência era tão violenta que ficava perto do desmaio e do esgotamento físico, mas conseguia entrever nesse brevíssimo instante tudo e o seu contrário, da mais fútil das coisas à mais profunda revelação de todos os mistérios.

A imensidão

Faltam-te as palavras para falares desse imenso silêncio e dessa infinita distância. Quando se te ilumina a evidência da nossa pequenez, quando se te revela a tão mesquinha condição humana face ao cosmos indiferente. O nosso olhar é mais pequeno que a alma mas não deixam de estar no rosto, de ter utilidade. Olhas essas imagens e a vertigem que sentes é todo um tratado. Nas nebulosas onde se geram todos os átomos, onde se regenera toda a matéria, onde tudo se transforma, tão infinitamente longe de tudo isto. No fundo, lá, nesse longe, à nossa compreensão humana deveria chegar o mais difícil dos sentimentos: a humildade. Talvez não sejamos capazes, talvez seja essa a nossa sina. Mas a verdade, a crua verdade, é que isso pouco importa. A imensidão é tudo o que existe.

Juntos

Pois. Cá estamos, os dois, eu e a tua ausência. Juntos. Não sei se o sabia desde o início, mas agora, anos passados, posso dizer com a vaidade dos falsos profetas, que sempre soube, sempre o senti, acabaria assim, num terraço sobre o mar, um copo vazio e uma sede cansada. Sempre o soube, mesmo na ignorância que cultivei com afinco, que o destino é o lento desenrolar das companhias até não restar nada que não seja a nossa carcaça e o eco de quem connosco esteve. E sabia também, num qualquer canto da alma, que hoje o céu seria de um azul límpido, fino, asséptico, neutro, propício a isto mesmo.
Cá estamos então os dois, a tua não presença e a minha existência rendida, prostradas ambas sob o mar e sua condição milenar de lançar e recolher ondas, tudo sob o céu cristalino de inverno. Do copo vazio sobe a lembrança da sede cansada de há pouco, e no meu egoísmo inocente, nem te perguntei se querias também tu beber alguma coisa. É certo que não estando tu presente mas antes o teu vazio, talvez não seja sede que sintas mas antes um desprezo profundo, um ignorar final do meu ser. Sim, ficam as cicatrizes do que fomos, mas não sendo, não sentindo, as cicatrizes também elas se arruínam, desfalecem mesmo que petrificadas, como as pegadas do Homem na Lua. Estão lá sim, mas é como se não estivessem.
Cá estamos como previ nas inúmeras adivinhações que fiz por dentro, na petulância típica de um poeta menor, eu e o teu deserto em mim, infinito de ilusão, palco imenso para as sombras que calham moldar a partir de agora. Teatro para meu próprio recreio, tudo isto no horizonte marítimo que se revela deste terraço, por baixo de um céu tão azul quanto possível e um copo tão vazio quanto o impossível.

A tentativa de alcançar o impossível

Viste-o de novo ontem. Passaram-se anos. Está com melhor aspeto. E, se aos teus olhos, permaneceria um Grande, mais ainda o é hoje pois viste-o a escrever.
Comprometido com as palavras. Talvez seja mais forte do que ele mas escrever é isso mesmo, abraçar a sina das palavras, ir mais além.
Morreremos todos e no infinito disto, seja no desfalecer do universo, seja no recomeço cíclico do cosmos, o silêncio, o profundo silêncio prevalecerá. A questão é que alguns, poucos, heróis, danados, condenados, no intervalo disso, abraçaram a poesia com a alma e o corpo e dedicaram-se à imortalidade.
Em vão, sim.
Mas não há nada de mais belo que a tentativa de alcançar o impossível.

um dia repleto de silêncio

um dia repleto de silêncio para preencheres
um dia igual aos outros
imerso de rotina de coisas expectáveis de conforto
 
todo um deserto em branco que de repente alguém preenche em sangue
em chacina em roubo do próprio silêncio
sem palavras nem silêncio apenas um nó fica na fonte do discurso
sem poderes falar ou calar
 
mas não há chão que fique infértil para sempre
a liberdade hiberna mas não se extingue
não enquanto houver uma palavra, um desenho ou um gesto pronto a brotar

essa vertigem

viste um solo lunar, queimado pelo frio e pelo silêncio, deserto, petrificado em tempo, como se por magia o cosmos tivesse abrandado a tal ponto que só um olhar que alcançasse milénios detetaria mudança,
viste as pedras amolgadas por um glaciar já desaparecido, roçando o céu azul e quieto, sentiste o que sempre sentes quando o abismo se te aparece,
rendição, comunhão.
bem que tentas escrever tudo isso, de todas as vezes, de cada vez, sempre,
e como de costume, não consegues palavras que captem isso, essa coisa, esse deslumbre, essa vertigem