Tempo dentro do tempo

Chega-te à pele o resvalar do fim da tarde. Como um sopro. Mais um dia desvanece. Se pudesses por algum truque de magia, ver o tempo como quem vê as coisas que se vêem, notarias um mar imenso banhando tudo. Entenderias, por fim, o segredo das marés invisíveis e os mistérios da luz e das sombras. Na hora da penumbra, o poente é o instante que se estagna um pouco mais, suspenso num breve momento que se escapa. Tempo dentro do tempo, como na lírica, a poesia dentro das palavras. .

Das leituras

Das leituras.

Acabei o terceiro caderno do Saramago. Continuo com O Medo, o Quanto mais depressa ando mais pequena sou, o Moby Dick e o Ofício Cantante, sendo que este último ainda não lhe toquei, apenas o coloco aqui porque está na mesinha de cabeceira e cuja leitura iniciei mentalmente ainda antes da Lira mo oferecer. Os outros, confesso, estão meio lidos, uns mais meios lidos que outros, porque no último ano as minhas leituras têm sofrido. Há dias adicionei um outro livro a esta feira, e é nele que tenho mergulhado mais: Less than Zero do Bret Easton Ellis (na barra lateral).
De todos eles já tenho apontamentos e passagens sublinhadas, em breve tenciono passá-las aqui. Ler é a única escola de quem escreve.
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Almas adiadas

Querias um pouco mais de algo invisível, mas ele apenas tinha para dar o que luzia aos olhos de todos. O olhar silencioso que por vezes te atirava não era sinal de uma qualquer profundidade de sentimentos. Os gestos ternos que te desenhava após o suor não eram mais do que isso mesmo, gestos. As esperanças eram tuas, nada nele as semeava intencionalmente. Quando saía de madrugada e te acenava da porta do quarto, sabias que um possível regresso não era uma certeza. Somente na solidão da tua cama havia lugar para o que ele nunca seria, e somente na solidão da alma dele havia espaço para a o sonho que teimavas em arder por dentro. Há almas assim, adiadas uma da outra, mesmo se os corpos se emaranham na quietude das tardes quentes de verão.
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Avó

Vive na contradição de lentamente passar rápida no tempo. Cada vez mais metida dentro vai queimando o resto que lhe falta vivendo depressa, mesmo que imóvel na rotina e na impaciência do lento passar do dia. Emana vagarosamente a luz de sempre, agora mais ténue, mas ainda firme, como o sol que não deixa de ser o sol mesmo quando se põe no ocaso. São muitos anos, muitas caras para lembrar, muita vida que lhe gastou a vista e a mente. No fundo, vai existindo como quem vela um doente madrugadas a fio, já cansada, ausente, mas seguindo a missão com brio. O carácter mantém-se mas agora revestiu-se de uma melancolia suave de como quem pede quase desculpa por ainda cá andar, alternando uma fadiga triste com o instinto de certos pequenos prazeres: um copo de vinho fino, um docinho, uma ida à janela ver a rua e ver quem passa.
E nós a assistir a tudo isto, com saudade já do futuro sem ela, rendidos à ternura que ela nos tatuou na alma, conformados, resignados, com a pequena satisfação de pelo menos saber que somos um pouco dela e que por cá vamos continuar com a certeza de a prolongar até mais à frente. Até onde pudermos e como pudermos. .

regresso

a ilusão do teu regresso não passa disso mesmo
pois sabes quão duro é regressar de vez, sobretudo se o lugar ao qual retornas é este
o branco infinito de uma página
a queda eterna pelo alvo do silêncio como se o que achasses que tens a dizer, fosse afinal nada, zero
não se regressa assim sem mais nem menos, fazendo de conta que não se esteve longe, que não se abandonou uma parte de nós
os regressos são obras de toda uma vida, não de um capricho ou de um golpe de sorte
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O homem dos segredos

Os segredos eram o que de mais valioso tinha. Durante toda a vida fez de um provérbio o seu lema: três pessoas podem saber do mesmo segredo se duas delas estiverem mortas. Até hoje conseguira manter as suas discrições à revelia de todos. Fazia-o à custa de um alienamento meticuloso, quase contrariando a máxima de que nenhum homem é uma ilha. Limitava as suas relações ao mínimo possível, mudando de cidade regularmente. Das suas actividades corre o rumor que as ditava em sussurros a um velho gravador de cassetes que logo de seguida destruía. Dizia-se também, em certos círculos, que dormia amordaçado com medo de falar durante o sono e assim revelar o que só ele conhecia. Aqueles que o tentaram seguir, relataram que nunca utilizava o mesmo caminho duas vezes, que nunca repetia o mesmo gesto e que nunca, mas mesmo nunca olhava para trás.
  

A metáfora

Desceu à rua, como todas as manhãs. Comprou o jornal e foi sentar-se num banco de jardim. Do mundo as notícias de sempre, do jardim os pombos do costume. Às pessoas que passavam acenava subtilmente, algumas respondiam, outras, distraídas não. Para além do jornal, tinha sobre o banco várias frases cravadas na madeira, quer a tinta, quer a canivete. Um "amo-te Pedro" sobressaía entre outras literaturas mais ou menos legíveis. Sorte a do tal Pedro, ou não, que isto do amor tem que se lhe diga. Um pombo mais atrevido debicava-lhe o chão perto dos pés. Os pombos avançam no solo com as patas, obviamente, mas é o pescoço que lhes dá lanço, como soluços repetidos. Os pescoços dos pombos devem chegar aos ninhos cansados. Da rua um carro mais acelerado fazia um ruído rápido que abanava os ramos altos das árvores.
Recordou um amigo que lhe contara a história de uma metáfora. Um autor africano, cujo nome não se lembrava, escreveu a mais bela metáfora que lera, dizia o amigo. Se é certo que não se recorda das palavras exactas, e isso valerá e muito para se julgar da beleza da dita metáfora, só a ideia em si vale que se conte: Existe lá no país de onde vem esse autor, um tipo de árvore cuja sombra da folhagem é tão densa, que um homem, em pleno sol de meio-dia, deitado no chão ao pé do tronco, olhando para cima, julga ser noite e estar a olhar o céu estrelado. A ramagem é tão espessa, a sombra tão negra, que a única luz que passa, é uma pequena poeira de luzes ténues por entre as folhas, dando a impressão de estrelas no firmamento nocturno. Imagine-se, em África ao meio-dia, sob a sombra de uma árvore, julgando-se ser noite.
Levantou-se, regressou a casa.
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os finais de tarde

os finais de tarde, as noites, as pausas e os silêncios
carimbados em versos que vertias numa sala virada ao mar
na penumbra fina de um certo modo de seres solitário, de seres para lá de ti, de existires para lá disto e daquilo,
como se o prolongamento das palavras te levasse também para esse outro lugar, na sala virada ao mar,
na simulação de uma pose de artista, na ilusão da pureza dos gestos simples, de um sussurro de lápis sobre o branco do papel ou da cadência das teclas do piano da escrita,
tudo isso revisitado agora,
nos papéis que guardaste quer em sacos de plástico, quer em sacos de memória, quer em sacos de invenção,
a sala virada ao mar, na busca da frase certa, do pensamento exacto, do descanso da consciência ou do rasgo iluminado de uma declaração de amor que pelo menos
ao de leve
chegasse a ela, ou a ti, ou a vós
porque sempre escreveste como se deve amar
porque sim
sem mais
sem menos
com tudo e com nada ao mesmo tempo
da sala virada ao mar
os finais de tarde, as noites, as pausas e os silêncios. .