traço imperfeito


o traço imperfeito de tão imperfeito ser
certeiro se revela
de como se emaranhando em redes e labirintos se vai desatar depois
em silhueta para nos falar em silêncio
sendo o silêncio cor e contorno e desenho

uma vida numa noite

uma vida numa noite e nem o nevoeiro da memória nem o roer do tempo encobriram ou desfiaram essas loucuras

coisas há que ecoam para sempre, pois puras e livres foram, flutuam e planam para lá disto tudo e são elas que nos fazem especiais e íntimos
e semeam a certeza de que nunca estaremos sozinhos
porque um outro a teu lado estendeu sua sombra e olhar

novos vícios


vais arranjando novos vícios para queimares o pouco que resta deste mutilado caderno
agora pões-te a escrever já na antecâmara do sono ao som de canções que já tinhas esquecido 
a ideia de esgotares o que te tormenta, de ires à volta de tudo o que nunca chegaste a cumprir, de enganares tudo aquilo que nunca chegaste a dizer, como se o que dissesses agora pudesse ocupar um silêncio passado.
não pode.
e para além de não poder, este semear de palavras deixa um novo infindável campo de vazios e nele corre uma permanente brisa cujos versos são ilegíveis.
resta-te a cisma que bem conheces, a de escrever o que te dita a voz muda da madrugada.
estranhamente, isso te consola o bastante para aqui regressares.
há uma beleza nisto, e tudo o que é belo brilha para além de nós

e todas as declarações de amor



enquanto não chega a história alongas o caderno e escreves horizontalmente, espraiando as palavras ao largo. foi preciso cair uma noite de nevoeiro e reencontrares os Simon and Garfunkel para também tu seres outono. disfarças esse adiamento do grande romance com jogos de escrita como este. soubesses tu desenhar ou esculpir. a fuga que é a tua só tem casa nestes nadas. talvez também pudesses dormir e encontrar um sono recorrente e nele tudo farias para reviver sempre o mesmo sonho, noite após noite, queimando madrugadas na teimosia de uma mesma narrativa. chegaste a amar a dada altura e esse incêndio ninguém to apaga nem ninguém to rouba, essa ferida da entrega incondicional da alma, por muito etérea que seja agora, ecoa pelo universo. ah, que se foda a solidão, no silêncio estão os ruídos todos do mundo e todas as declarações de amor.

gesto perfeito

o gesto perfeito que teima em adiar-se num perpétuo esquecimento de si mesmo
e não será num entretanto vazio que se poderá revelar

ainda assim insistes em escrever a cada momento perdido do dia como se enchendo de palavras o silêncio ele fosse menos arrebatador e as noites menos solitárias

já não tens mais promessas a quebrar pois esgotaste os estilhaços de todas as outras que fizeste e a loucura que brota de uma promessa quebrada é tão grande como a que nasce de uma que se cumpre e no teu mar não há mais lugar a novas ondas porque todo ele é somente ondas revoltas e revoltadas

o gesto perfeito aguarda quieto num canto qualquer da sua própria impossibilidade e nada o alcança
ele é halo de sombra e de cinza luminosa
é fumo
espuma fina
é um segredo que ninguém sabe
e saber é o conforto que a evolução nos nidificou nos genes
por isso nos contorcemos quando não sabemos
e nada sabemos de verdade e o desconforto é o estado permanente da nossa alma
por isso desejamos os gestos perfeitos
ansiamos esse afago divino como o colo de uma mãe ou um beijo de quem se ama ou o calor morno de uma cama

gárgulas

procuras o local exato onde semear a palavra para que faça sentido

nas esquinas altas de uma catedral, arrancada ao granito e ao calcário
cortando o céu em contraluz
seria o sítio natural da aparição

mas as gárgulas que queres escrever são silhuetas perdidas em profundos mares da alma
esgares petrificados em proas de barcos naufragados mil noites atrás
são ramos de uma árvore, que morta de pé, em vez de folhas, brota cimalhas por onde corre a água de chuvas impossíveis

gárgulas
dizes por dentro
e toda a língua estremece num calafrio perfeito

o silêncio tem o seu alfabeto e o seu dizer
nós é que o não conseguimos ouvir
pois surdos somos caminhado sobre o vibrar do tecido da poesia nas madrugadas que não acabam
como se a insónia durasse eternidades

não era

adivinhei vésperas num olhar teu
como se o tempo por lá tivesse ancorado
e aí nos perdíamos num mar de afagos

faltam tardes lentas no meu corpo
e semeia-se um esquecimento por dentro
não do que acontecia mas dos sentimentos que sustinham o que acontecia
e assim a lembrança paira vazia como fantasma de um nevoeiro sem paisagem a encobrir

amnésia à parte
é o futuro que pretendo saber de cor
se o tempo desatracará
se ainda há correntes
e se por acaso
em marés longínquas um entardecer dura para sempre
como um abraço
se a paz de espírito reencontra o seu paradoxo uma vez mais
de se perder num outro rosto
de estremecer em vertigem tal
que todas as promessas somos capazes de cumprir em nome de um sorriso
que todas as loucuras nos parecem sensatas apenas para poder mergulhar num beijo
de acreditar que a entrega
a rendição
são a única forma digna de se viver

adivinhei madrugadas num poema que quase escrevi
fazia noite a cada verso
e o caminho fazia-se letra a letra
passo a passo no infinito de mim

pareceu possível por momentos
que o sol pudesse nascer
mas era cedo
era tarde
não era