pontos de não retorno

nas cartas ou poemas de amor
escrever o que se sente ou sentir o que se escreve

dessa escolha dois caminhos se revelam e ambos levam ao despenhar da alma num poço sem fundo

dessa queda imensa o ponto de não retorno chega célere
tal como a luz de um vitral que nos chega ao olhar, que é essa luz mais a soma do vitral que a coou,
o amor é o sentimento mais a alma que o irmanou

encontrei este verso num canto

talvez possamos deixar as sombras para trás e caminhar em luz translúcidos

e poderia agora escrever o seu contrário

talvez possamos deixar a luz para trás e caminhar em penumbra ensombrados

nas vagas da escrita muitos são os náufragos e muitos são os estilhaços de sol no espelho das suas águas
e infinitos silêncios cobrem imensidões sem praias e sem terra à vista

talvez possamos deixar luz e sombra para trás e caminhar sem nunca termos existido

dessa forma

cartas

poemas

de amor

seriam o ponto de não retorno
a cicatriz tatuada e cravada para sempre
como aquele pequeno corte que temos no céu da boca e que não sara nunca pois não saram as feridas assim
quais umbigos

e divago pois há muito navegam-me as palavras sem rota nem rumo pelos dedos
como os ventos que se enlaçam primeiro por entre ramos altos de árvores caducas e depois se emaranham em folhas que se soltam em suaves e longas e pesarosas quedas

cedo
por fim
à desordem natural das coisas

e deixo de escrever

cartas, cadernos e fotografias

E a vasculhar velhas caixas reencontrei coisas velhas. Com pó e tempo e abandono. Fotografias, cadernos e cartas. Cartas que não cheguei a escrever, cadernos com versos envergonhados e fotografias com silhuetas aladas de gente que já não é o que é.

Das cartas o que não foi dito eram sobretudo coisas do amor, da ideia pura e dura de uma rendição total para com um outro ser, do estremecimento que é vermos um rosto da mais profunda beleza e de saber no corpo que um abraço não chega para carregar o peso de um carinho desses, que as palavras não sustêm tamanha vertigem e que somente, quem sabe, um derradeiro mergulho no olhar de quem se ama acalmasse o arrebatamento que nos rebenta na alma. Estas coisas são assim e não de outra forma, são cruas e inocentes e da verdade mais singela, como um dia de chuva após meses de sol ou como o último comboio da noite a partir da estação onde já ninguém espera ou, até, como um gato a esgueirar-se na esquina mais longínqua da rua mais deserta de sempre. Estas coisas são, portanto, mesmo assim.

Dos cadernos, os tais versos envergonhados, despem-se ainda mais e revelam a ingenuidade que os fez nascer, são somente carcaça da centelha que os desenhou, pois já toda a chama se consumiu na língua que os nãchegou a dizer. Ainda assim, foram o que foram e, de alguma forma, cravaram um eco no tecido do mundo e, porventura, tocaram um ou outro coração no seu tempo de gloriosa verve.

Das fotografias, pouco há a dizer sobre o que ainda possa viver dentro dos contornos dos espectros revelados. Mas sem duvida, que todos estes perfis e sombras e sorrisos e esgares e cenários, se petrificaram em água luminosa. Nessa aparente contradição reluz o testemunho de um passado finito mas ainda a reverberar pelo presente até se esfumar aos nossos olhos, como assombrações. Disto tudo fica um sabor a penumbra e a outono, não sei dizer de outra maneira.

frente e verso

A frente do verso e o verso de frente como um muro.

Inevitável.

De sua derme, escamas secam e caem como pele de serpente envelhecida
e por trás das palavras o verso do verso, o outro lado do que é dito, sem silêncio nem verbo.

a voz que dita por dentro

um retiro sobre cinzas
qual exílio de mim próprio

a fuga do chão já pisado para um outro caminho

dos sedimentos acumulados na gruta da alma, existem poeiras de uma cumplicidade e sombras de gestos desenhados por um carinho que se cumpriu

talvez sol e sal possam cobrir tudo isso e dos meus olhos outra foma de ver nasça

talvez lutando contra o adiamento dos versos consiga encontrar-me definitivamente

certo é que o silêncio habita cada palavra que não escrevo
e das que escrevo o ruído é levado pelo mar
pois sou filho dessa voz que dita por dentro

código genético póstumo

às portas do deserto, perante mais um infinito que me calhou em sorte, duas sílabas inundaram-me a alma

brotaram com a força das inevitabilidades e ressoaram por dentro
ecoando num aperto que já conheço do passado mas que é sempre novo

a paisagem arenosa e o sol a cair no longe do horizonte, o silêncio profundo

tudo isso incompleto

fazias falta

não nós, mas tu
a ideia de ti e do teu pronome vazio a resvalar-me pelos olhos e pelos dedos como os incontáveis grãos desta praia sem mar

depois o sol pôs-se e foi como se mil anos passassem desde essa fugaz solidão da partilha

será tudo isto normal e inocente

das duas sílabas fica a tatuagem invisível
como cicatriz por baixo da pele e da língua
qual código genético póstumo 

falhanços

A tua escrita (para além de quase inexistente) é incapaz de descrever. Dirão os modernos que é minimalista. Mas sabes bem que é somente pobre. Poderá ter algum mérito no rasgo intuitivo que brota de um rasgo ocasional, mas, no fundo, é deserta.
Deve-se isso à tua falta de disciplina, de entrega e de coragem.
Descrever alguma coisa dá trabalho.
Preferes o conforto da inspiração fortuita. E, mesmo essa, surge cada vez mais espaçada.
Talvez te agarres à crença de que a poesia escolhe quem quer, e a que te calhou em sorte e em palavra é essa coisa indizível na verdade. Escreves os teus pequenos falhanços.