faço o que posso

um cão ladra para lá do negro da janela
sei que faltas cá tu
que o amor não é uma ciência exacta
é antes uma paciência exacta
uma dedicação que uma força tem por nós
um alento que se nos sopra em silêncio
e cujo arrebatamento é a força maior que um verso pode suster

o cão já não ladra
e ainda assim por obra de não sei que fantasma
sei que todavia faltas cá tu
e a paciência exacta que o amor é
prevalece a força maior que um verso
(ou dois)
pode suster

faço
por isso
o que posso.

regressar ao fim

não se regressa propriamente onde nunca se esteve
mas podemos regressar ao caminho
podemos reencontrar as mesmas estradas enlameadas
os mesmos passeios escorregadios

não se regressa ao que jamais se alcançou
mas podemos regressar ao sonho
à vontade profunda de almejar
ansiar
aspirar

não se regressa às palavras que não se disse
mas podemos dizê-las pela primeira vez
rasgando o silêncio
nem que o rasgando regressemos à quietude anterior

não se regressa a nada a não ser ao fim

tu

o gato a ser gato
eu a ser eu
tu a seres tu

o gato sendo gato
é o gato mais a curiosidade que lhe eriça o pêlo
e uma ou outra cambalhota mais no meio da sala

eu sendo eu
sou eu e pouco mais
o que já não é pouco num pedaço de gente

mas tu sendo tu
és tu mais o teu sorriso a mergulhar em mim
tu mais o teu corpo desenhado em sombra
tatuado em meu olhar
tu mais tu mais tu
imensa em mim
no que escrevo
e
no que não escrevo

pois tu és tu
e sendo tu
és também o silêncio na tua ausência
és lugar vazio certas manhãs
és ternura no sono que me calhe velar

tu sendo tu
és um infinito tal que me tolda a vista da escrita
e me remeto a uma rendição anterior a mim

porque eu, sendo eu
sou eu e pouco mais

o gato sendo gato
é gato também quando dorme
é gato enroscado enquanto escrevo

e tu és tu
e não há pronome que chegue para te nomear
nem nome sequer
nem palavra
nem nada

Ardes

O calor a estalar-te nos poros. Do alto do céu azul, cai a luz quente do sol, inundando-te em vagas, levando-te a dilatares o olhar por dentro. A roupa, por pouca que seja, a ser pele da pele. O verão é agora uma palavra inteira, sendo também o inferno dos graus a treparem o termómetro, sempre a subir, percorrendo cada ruga da face, cada curva das costas, cada dobra das pernas. O suor não vem logo, vem no descanso de uma sombra milagrosa, coalhando em sopa morna por todo o corpo. A alma também ferve, errática, desnorteada. O abandono à canícula é inevitável e nem a poesia te refresca. Ardes com os dias que rebentam, ardes com as noites que teimam em ecoar a chama dos ventos desérticos pela madrugada fora.