Coveiro

Explicar-vos o meu atraso para comigo, ou pelo menos, para com a ideia de mim próprio. As leituras e as escritas. Personagens e histórias deixadas a meio.
No último Auster que li, uma das histórias dentro da história relatava precisamente isso: uma personagem encurralada para sempre numa cave, pois a porta fechara-se e era impossível abri-la por dentro. O personagem que escrevia essa história, ficara sem ideia de como salvar o protagonista que colocara nessa cave sem saída. Ali ficou.
No fundo, no fundo, sou um coveiro. Coveiro das minhas histórias. Não um assassino, pois elas já nascem mortas de dentro de mim, limito-me a enterrá-las no olvido, no tal atraso.
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Da culpa

Os inocentes. Quem são eles? Somos obviamente culpados de tudo. De tudo e MENOS alguma coisa. Isto de andar por aqui carrega, desde logo, um quê de culpa. Falo de culpa, não de responsabilidade que é uma outra coisa. A culpa, vem na Bíblia, brotou logo a seguir ao "início". Mas "logo a seguir" implica um "antes", que apesar de ser virgem em culpa, tinha no seu corpo a iminência da culpa. Ter-me-ei embrulhado? Paciência, é que a palavra inocente é muito próxima de cianeto. Inocente cianeto. Cianeto inocente. Não deveriam existir dúvidas.
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Anedotas

Em tempos inventei uma anedota e adaptei humoristicamente um provérbio. Há que vangolariarmo-nos dos grandes feitos e conquistas da humanidade.

Anedota:

Um homem caminha pela rua com ar sério. No fim da rua existe uma ponte. Ao atravessar a ponte o homem começa-se a rir. Ri durante toda a travessia da ponte. Terminada a travessia da ponte, regressa ao seu ar sério. Ao chegar a outra ponte, o homem volta a rir às gargalhadas enquanto a atravessa, regressando de novo ao ar sério após a travessia.
Sabem porque é que isso acontece?
Porque era um homem que achava piada atravessar pontes.

Provérbio adaptado:

Mais vale uma na mão, do que duas no soutiã.
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Os clássicos

Regressar aos clássicos. A expressão não pode passar incólume, ela é plena e una, deverá transmitir aquilo a que os crentes chamam de fé e que os hereges como eu apelidam de insondável: arrepios na alma. Os crentes dirão: vês? é Deus! Eu respondo, pois é, chama-se Elvis (Eça de Queirós, Pelé, Miguel Ângelo, Pessoa, Sophie Marceau, o Gilreu, ela a dormir, etc, etc).
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Léxico

Na gráfica, palavras para se dizerem por dentro com todo o aparelho fonador em funcionamento:

montar, passar à chapa, pose, imposição, deitado, fotolito, offset, imprimir, caderno, tira-retira, frente e verso, gramagem, tinta, papel, medida, molha, revelar, rolamento, tinteiro, cilindro, resma, palete, conta-fios, ponto, ganhar ponto, ponto estocástico, dobrar, alcear, coser, colar e reforçar lombo, guardas, vincar, cortante, estampar, película, guilhotina, trilateral, lombada, mono, cartão, contracolado, cartolina, couché, cola de bancada, cabeceado, transfil, telagarça, fitilho, revestimento, bolear, armar capa, meter à capa, friso, retráctil, a apara, prensa, cola gelatina animal, livro, revista, encadernação, barbante, fio de norte...
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As palavras

Restarão as palavras. Mesmo depois de não haver olhos que as leiam, restarão as palavras. O mesmo seria dizer o silêncio. Palavras não lidas são silêncio, carregam a mesma ensurcedora quietude do que é definitivo. Os gestos, esses, já não padecem do mesmo infinito, desvanecem, nem que para isso demorem anos a apagarem-se dentro de nós. Mas uma palavra não. Uma palavra é tatuada e não sai mais.
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Para memória futura 9

Era aos domingos. Íamos buscá-las à Ribeira, num pequeno andar bem alto debruçado sobre o rio. A Titi e a Teté. Lembro-me do chão de madeira a ranger e das pequenas louças dentro de armários envidraçados. Lembro-me de uma televisão a preto e branco com uns botões digitais assinalados a vermelho. A Titi, madrinha de minha avó (cujo nome nunca soube, era Titi e pronto) e a Teté (Celeste), irma de minha avó. Íamos buscá-las ao domingo para almoçar. Tinha eu 4 anos, não mais, e ainda assim lembro-me. A minha Tia Celeste tinha um dedo permanentemente dobrado para dentro, algo que sempre me fascinou. Tinha os mesmos olhos que a minha avó Beatriz, os mesmos que a minha mãe tem hoje e que a minha irmã vai ter com certeza. Terá sido das tias que mais pijamas e lenços me ofereceu no Natal.
Celeste no céu, desde ontem. E dentro de mim, é mais um rosto numa constelação que se vai adensando e enevoando com o tempo. Por vezes, isto é tudo demasiado triste. Por isso vale tanto a pena.
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Ar, água, fogo e terra

Um a um. Afinal não fecho portas. Deixo-a entre-aberta com um artigo de cada vez. Está sempre ali o arquivo para quem nada tem que fazer e gostar de vasculhar.
O Outono veio e invernou-se. Lembra-me a Bélgica, embora por cá o vento seja mais temperamental. Nas canções de Brel, mesmo quando ele fala do vento, a melancolia é algo de natural, por cá não existe tanto, é mais monotonia. Mas entendam-me, quando uso os substantivos (melancolia, monotonia) não penso em adjectivá-los (bons ou maus), as palavras não têm sentimento, somos nós que os metemos lá dentro. Por isso, se digo melancolia ou monotonia, leiam essas palavras sem juízos de valor nem procurem adjectivá-las. São o que são no vazio do seu próprio dizer. E se por acaso no fim restar um certo sabor cabisbaixo neste texto de outono invernal, desenganem-se, tudo é ar, água, fogo e terra, já diziam os alquimistas.

PJ

Werchter 2007
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Fecho

Fecho a porta. Este blogue não resistirá às medidas de austeridade... da minha economia criativa. Obrigado a todos, os credores que me perdoem.
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