Pelé

Pelé não fez golo nesta jogada. Mas fez arte. É difícil explicar-me sem cair numa pseudo-lamechice mas vou tentar. Como disse anteriormente, o futebol tem um poder narrativo, literário portanto, e nesta jogada, em que o talento e a inteligência fazem um gesto poético, tudo é perfeito. O facto de não ter sido golo (por centímetros) é irrelevante. Pelé não tocou na bola para desenhar este gesto, como os grandes autores, pintores e compositores não precisam de dizer, pintar ou embalar o óbvio para encontrar a harmonia.
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A morte dos outros

Faleceu António Feio. Penso em José Pedro Gomes. Quem morre vai, e claro que o mal é de quem vai, mas outro mal fica por cá, e os amigos são os que o carregam. Imagino que José Pedro Gomes carregue muito do mal que por cá ficou com a partida de António Feio. No fundo, a morte dos outros é isso, um rasganço para lá de nós e apesar de nós.

Francis


Já lhe agradeci em tempos. Hoje faço o mesmo. Francis Obikwelu ficou em 4o lugar nos Europeus por diferenças de milésimo. Teve, aliás, o mesmo centésimo que o 2o classificado. Foi pena, aquele sorriso merecia uma medalha. De mim leva a admiração. Nunca ninguém foi mais rápido com a nossa bandeira, está no Olimpo Luso, para sempre.
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Lendo

Terminei Promessa. Com A Curva de uma Vida, cumpri duas leituras de inéditos de VF. Promessa é um romance no início de um autor maduro, enquanto que a novela é de um VF muito jovem com rasgos de ingenuidade. Mas em ambos já se descobrem ecos do tom futuro do autor. A Quetzal continuará a reeditar a obra de VF, eu farei o meu papel de (re)leitor. Em mim, VF actua em duas formas: na minha entrega total enquanto leitor e numa amargura (quase total) do adiar da minha escrita, é que VF escreveu no ritmo certo do meu próprio espírito.

Era quase bela e talvez por isso mais atraente, como maillot que quase despe a mulher a enriquece de desejo, ou como um livro que quase diz tudo se torna mais interessante.

Detesta o cepticismo porque leva à tolerância. O homem virtuoso é implacável.

- Qual matar a sede, qual cabaça! O homem não quer matar a sede. O homem quer é a sede. Por isso é que come tremoços quando bebe cerveja.

- Extraordinária coisa: o homem tem centenas de milhares de anos. Mas cada homem vive apenas vinte, mesmo quando dura oitenta: nos primeiros trinta aprende a falar, nos vinte seguintes fala e depois resmunga. Pois nos vinte anos que vive, procede como se vivesse milhares. Num ponto da evolução da humanidade, ergue-se um homem e chama a si, a sério, a responsabilidade dos milhares de anos passados e futuros. É lamentavelmente cómico.

Senti-me dobrado por uma raiva potente. Cerrei os olhos. Apertei os dentes. Disse depois a frio:
- Você o que é é um corbade.
A pancada atordoou-o. Levou tempo a recompor-se. Como um sonâmbulo, ergueu-se e veio descansar um braço no meu ombro:
- Isso de cobarde deve ser o mais certo de tudo o que disseste, meu jovem.
E saiu sem mais palavra.

Olhei-o assombrado e entendemo-nos profundamente. Entendi eu que o ver-se deposto dava a Sérgio umprazer derrancado. Era a espora de um desejo que precisava de regressar-se a uma violência desconhecida. Segurei Sérgio pela lapela, enterre, pelos seus olhos dentro, os meus olhos iluminados e pus-lhe no fundo da consciência uma pergunta a que ele veio a dar uma resposta quando morreu:
- Como não compra um revólver?

- Tem. Mas veja. Uma vez edmundo disse que não há gota de filosofia que não se esprema com acção. Penso que isso é exacto. Mas incompleto. Falta dizer: e que não esprema acção, própria ou alheia. O senhor julga que pode viver no mundo impunemente. Julga que pode brincar às palavras. Pensa que dizendo o que lhe apetece, isso morre no instante em que o diz, ainda mesmo que o fundo disso que diz seja a negação da acção. Como se engana, Sérgio! Uma palavra que seja, largada de nós, é o que alguém dizia, creio que a outro propósito, "uma espingarda carregada". Se você não dispara, outros podem tomar a espingarda e apertar o gatilho. Foi o que aconteceu.

Desarmado, não terei palavras mais rápidas do que as balas
que vão sempre dizer adiante o sítio das palavras.

No entanto, meu amigo, foi pena que não vivesses. Porque aconteceram, meu sérgio, coisas bem extraordinárias desde o dia em que morreste. Mas a terra chamava-te, apressada, para que subisse da tua podridão a prometida flor que havia nela, e que tu sempre negaste. Porque em todo o teu desvario como no dos teus amigos vivia justamante a promessa do mundo que veio nascendo; como em tudo o que apodrece se promete a verdade de um fruto novo. Por isso, sem mais uma palavra, aqui te deixo, em sossego, com a terra que te cobre.
Dorme em paz
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... a giant leap...

Há 41 anos o Homem esteve na Lua. Pensar tal paisagem enleva-me para lá do dizível. A aventura da humanidade é grandiosa quedando-se neste nosso mundo, mas idear, por um segundo apenas, a imensidão do que se curva lá no infinito, arrebate-me por completo. Passear na Lua, flutuar no espaço, ser cósmico, mergulhar no silêncio dos silêncios.
Ia já.
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A leitura das coisas

Escrevi em tempos sobre o tempo dentro do tempo. Aquele segundo que dura um pouco mais que um segundo. Pude comprová-lo. Olhando um relógio e os três ponteiros que o torneiam, cada um ao seu ritmo. Pois calhou que a dada altura, o ponteiro dos segundos, no preciso momento em que lhe pousei os olhos, ele se demorou um pouco mais. Imperceptível quase, mas real. Uma pausa na engrenagem disto tudo. Poderá ter sido impressão, ilusão de óptica. Mas pouco importa. A percepção ainda é a medida correcta de avaliarmos a realidade. Ou melhor, a realidade é o que nos dita a percepção. No fundo, somos escravos da nossa leitura das coisas.
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vulto

o vulto que vamos sendo na silhueta que nos calha
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Das ideias

Encontrar o tom certo para alcançar o pensamento daquilo que nos navega nas ideias. Porque expor uma ideia é um processo de transformação do mental para o discurso, e nessa transformação, na soldificação da ideia em palavras, nada se cria, nada se perde e tudo se transforma, logo, a ideia é já outra quando a vomitamos.
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o silêncio

estaremos em silêncio certo tempo
depois o silêncio estará em nós
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Da beleza

Sobre a imagem que encabeça o blogue: os amantes da beleza nem sempre estão de acordo. Para alguns o futebol não faz parte desse mundo. Mas já Álvaro de Campos via beleza em engrenagens industriais e mecânicas. O futebol nem sempre é belo, mas lá está, a poesia nem sempre é bela também. A beleza é a manifestação visível de algo imperceptível, e nessa contradição, o futebol serve, por vezes, de veículo a essa manifestação (harmonias, sincronias, gestos). O diálogo das metáforas e dos símbolos resulta, em certos momentos, naquele sentir cujo o arrebatamento nos derriba. A beleza exige um contexto, uma narrativa, se não é apenas estética parda. O futebol é belo quando se envolve de narrativa e nos conta uma história. A imagem ali em cima é exactamente isso que faz.
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Lendo



Sérgio disse que não lhe interessava o caso. Aprenderia a pensar mais tarde, quando velho. Na hora das arrumações.

- Sim amigo, eu não sinto, porque entendo; com você, tudo se passa ao contrário. Compreender é ser claramente tolerante com o que em nós não é o o que de momento somos.

- O senhor doutor não está? - perguntou-me a criada, mostrando o papel. - Talvez seja de importância.
Para Sérgio. Provavelmente, de Churrasco. E como em Churrasco um telegrama é coisa grave, fui ao liceu. Sérgio vinha justamente ao portão com um sujeito baixo, magro e acabrunhado. Pela nula importância.dada ao homem, ou ao encontro, ou a mim, não nos apresentou. Tomou o telegrama e continuou embrulhado na conversa que trazia de dentro. O outro sentia-se decerto em justiça, na sua humildade, porque mal ergueu a cabeça.

- José Pereira! Mas é um nome monstruoso! Como é que um José Pereira é professor? E raciocina?

- Se não ficas outro, descobrindo-te, enquanto lês, não há explicação possível. Não há poema. Há caracteres impressos. Não se ensina a entender poesia como não se ensina a ser poeta. Ninguém ensina ninguém a ter olhos pretos ou azuis.
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Sophie

Bom fim-de-semana. Vou descer até Lisboa. Vou em paz (desta vez). Só regresso segunda-feira, entretanto fica mais uma manifestação do difuso.

Para memória futura 8

Debato-me entre conceitos, dos quais a nostalgia e as saudades se envolvem, cedendo um pouco cada uma das suas nuances. Entre o aperto ligeiramente doloroso de uma e a doce melancolia de outra. Não especifico qual pertence a qual, ou melhor, nenhuma delas deixa espaço para a identificação. Não se trata de um grande tormento, aliás os grandes tormentos pertencem a tragédias reais. Mas uma pessoa anda nisto e cada um sente o que sente com o seu próprio sentir e não nos cabe escolher o que à alma e ao corpo cabe revelar. No fundo, os sentimentos é que nos escolhem, a nós cabe apenas o papel de as representar. Certas músicas de Springsteen atiram-me sem piedade para um estado de arrebatamento que me espanta sempre, nada de muito transcendente mas ainda assim digno de registo. Terá sido de as ter ouvido ainda muito novo em viagens longas entre Bruxelas e o Porto. O silêncio da noite nas autoestradas cortadas por aquelas canções que contam a história de uma América entre o sonho e uma realidade feita de alcatrão, fábricas, carros e sentimentos de amizade, amor, laços de sangue e infinito. Não me sei explicar melhor. Talvez seja do domínio do insondável. É que existir não nos dá outra escolha senão cumprirmo-nos atabalhoadamente no caminho que nos é dado percorrer.
Esta versão do The River tem lá tudo. É digna de se ouvir, da introdução que contém um diálogo com o público absolutamente fantástico, ao rebentamento da canção na voz do The Boss, na harmónica e nas palavras.
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(para o facebook, careguem ali em baixo em "view original post" para chegarem à música")

Para memória futura 7

Era Julho. Ano da graça de 1993 ou 1994. Fazia muito calor em Moorsel, arredores de Bruxelas, terra de flamengos (mas bruxelenses ainda assim). Estava de férias e sozinho em casa. Durante duas semanas segui pela televisão o Tour de France. Brilhava Miguel Indurain, o homem que diziam ter um coração maior que a maior parte dos mortais, o que fazia que cada batimento bombeava mais sangue, tornando a resistência do espanhol um tratado da medicina desportiva (isso e doping talvez, não sei, esse desalento com as dúvidas sobre o ciclismo foi desgosto que veio mais tarde). Vendo as emissões das televisões francesas que transmitiam a prova (FR3 de manhã, FR2 de tarde, ou vice-versa) fui aos poucos apaixonando-me pelo ciclismo. Mais do que isso, pelo Tour em si. Os sprints, as fugas, as subidas de montanha, as histórias antigas da modalidade, os mitos. Tudo me envolvia, os nomes dos corredores, as cores das camisolas. Foi então que me deu a vergonha de ter 13 ou 14 anos e não saber andar de bicicleta. É verdade. Não sabia. E, no entanto, lá em baixo na garagem, dormia uma bicicleta que me deram para os meus 10 anos, acho. Decidi aprender. Nessa quinzena em que Indurain, sem vencer muitas etapas, dava lições de pedalada, em que Abdujaparov reinava nos sprints das chegadas, em que Virenque era rei da montanha, aprendi sozinho a andar de bicileta. Tinha 13 ou 14 anos. Nada de especial eu sei, mas terá sido a primeira vitória pessoal baseada na paixão. Abriram-se-me várias portas então sobre o reconhecimento do poder da paixão. Poderei tê-lo esquecido em alguns momentos da vida, mas nunca mais o subestimei.
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Calor do caralho

Estala o calor na evidência do sol a cair-nos em cima. Abrem-se os telejornais com perguntas de rua, está calor não está?, está sim, dizem as senhoras e os homens que apanham um microfone à frente. A evidência das coisas têm a força da idiotice das perguntas. Está calor pois, sua-se, bebe-se mais, veste-se menos. Andamos nisto há séculos, milénios até, mas ainda assim decidimos agora, neste estado de civilização, perguntarmos uns aos outros se de facto está calor e que suamos e que bebemos mais e que vestimos menos quando assim é, como papagaios entorpecidos. Perguntem-me a mim, apanhem-me a mim na rua que eu digo como deve de ser: está calor sim, um calor do caralho.
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Lendo

Começa assim:

Agora que Sérgio morreu, contarei como tudo se passou.


Reencontrar a voz de Vergílio Ferreira. Trata-se de um romance inédito da segunda metade da década de 40. Um jovem VF portanto. Reconheço-lhe a voz, e descubro os primeiros esboços daquele arrebatamento de existir, da estupefação perante o absurdo da vida. A evidência que é estar perante outro e a força das suas ideias e actos. Flávio fala do seu antigo professor Sérgio e da violência de ideias e pensamentos que travou com ele dentro de si mesmo.

Penso, porém, que um morto é um nome.

Isso: juventude prolongada por deformação profissional. Já tinha reparado, efectivamente, que os professores não são bem homens. Lidando com jovens, dissolvem a personalidade, ficam em geleia de jovens e de adultos.

Como sempre, tive a impressão que Sérgio não ouvia. De uma vez declarou-me que o ruído das palavras o intrigava, chegava a irritá-lo. Quando queria entender bem, de tal modo se enterrava no que ouvia, que as palavras lhe ficavam apenas sons, um ruído tonto borbulhando de uma língua, de um queixo e de outros instrumentos que não se viam. Afastando o barulho, esforçava-se por filar a ideia. Mordê-la. Impossível. Achava por isso admirável que os homens se pudessem entender mesmo assim.

- Bragança fica longe do Ministério e da Direcção-Geral. As ordens devem perder força pelo caminho...

No entanto, para a lembrança da minha juventude, sempre me vi trepado acima de Sérgio e Edmundo, com um pé plantado no erro de cada um.

O que mais me estonteava era sentir subjacente a tudo aquilo a torpeza de um erro deslumbrado pelo lúcido fulgor de uma razão aparente.

- Que está a fazer? - perguntei, com estupidez.
- Nada. Estou a sofrer.
Sentei-me, puxei de um cigarro. Reparei que me chocava menos aquele desvario.
- Aconteceu alguma coisa?
- Que coisa?
- Alguma coisa que o magoasse, evidentemente.
- Não.
- Então porque sofre?
- Isso é uma pergunta idiota, meu filho. Alguém pergunta porque é que a noite é triste e o sol alegre? Sofrer é tão natural e espontâneo como existir. Só os insuficientes é que procuram uma causa para serem felizes ou infelizes.

- As razões de um homem valem tanto como as de mil. A igualdade achata. Cinco dias iguais são mais curtos que dois diferentes. Mil homens iguais seriam somente um homem, apenas mais prolongado.
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Espelhos

a pausa e o silêncio encontrou um leitor anónimo pela primeira vez. Normalmente quem me lê ou comenta acaba por ser meu conhecido. Sendo certo que o anónimo leitor chegou através de um amigo (um daqueles que antes de ir para o Brasil me diz "se me raptarem vens-me buscar que eu não morro ouviste? fico vivo até me ires buscar", e eu a imaginar-me já pela Amazónia em busca dele, preocupado com o seu problema renal em condições desumanas). Tudo isto para agradecer os elogios do anónimo (que deixou de ser) e prometer a sempre despreocupada forma de escrever aqui, ali e assim, coisas deste tipo, que isto de andarmos neste mundo vale a pena é para desenharmos sorrisos no rosto dos outros. É que funcionam como espelhos.
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