até que cronos se esgote

surge a ideia e esculpes o que podes através do mármore alvo do silêncio

esperas em breve
naquilo que julgas ser um gesto final
passar as mãos sobre a obra e sentir-lhe as curvas suaves das imperfeições
as hesitações e as falsas certezas da criação

apercebes-te que o tempo passa e que sobre cada verso
cai um outro mais abaixo
e outro ainda
uma e outra vez até que se perca a conta

temes que com todo o peso acumulado se desmorone a poesia e te esqueças do início
da tal ideia primeira que esculpiste em mármore silencioso

e esse medo não faz senão crescer
medrar

a dado momento sentes a tentação de voltar ao cimo
de largar a leitura do agora e recomeçá-la do alto
de desesculpir

mas depressa outro temor nasce
brota

se por acaso voltar ao início
não perderei então o presente
não me atrasarei irremediavelmente
não haverá sempre um verso mais abaixo
cuja leitura já foi profanada num mais à frente
num porvir inalcançável para os meus olhos?

chegas por fim a um daqueles momentos de revelação

que os poemas são o tecido do tempo futuro e têm um avanço decisivo sobre nós

talvez a ciência consiga explicar estas coisas
e provavelmente a explicação virá em fórmulas cujo método será
necessariamente descrito em versos
sempre
caindo um após outro
numa queda de poesia
revelando o nosso atraso irrecuperável
exibindo o adiamento que vamos sendo até que cronos se esgote

 duologia

I

nesses lugares gastaram-se as palavras todas

largos desenhos de gestos vazios e olhares distraídos
a chuva caindo sem parar
o silêncio profundo das almas mudas semeadas pelas ruas
num vai e vem sem origem sem destino e sem rumo
apenas ruínas do que foram
se é que foram alguma coisa num antes esquecido

a quietude é imensa
e sob a chuva velha reina uma apatia adormecida
esvoaçam os desenhos e as silhuetas dos acenos
perdem-se ao longe no firmamento os olhares do mundo inteiro

melodias ténues ondeiam pelas esquinas
o tempo faz-se bruma esfumando-se pela madrugada que tarda em amanhecer
e sobre o oceano uma luz imaginada estrelando o mar em mil sóis reluzentes

mesmo sem palavras vão-se dizendo coisas
e o silêncio fulmina emoções
daquelas que corroem os espíritos e enlouquecem os seres

sem palavras todo o impossível acontece

II

sem palavras todo o impossível acontece
secretamente
veladamente
por entre os silêncios mais subtis
como as brisas e os indícios dos crimes por resolver

neste infinito de sermos e de estarmos por aqui
ergue-se um chão para o qual ruímos em queda
eterna a alma quase palpável
maleável
revela-se no fundo do nosso poço
e atabalhoadamente
ousamos manusear esse tecido divino da solidão
da mais profunda solidão
como se a melancolia por momentos se ouvisse no ar
e num só embalo nos sorvesse em deslembranças

sem palavras
existes tu e todo o estremecimento que me és
como um rumor de dentro
um vulcão que não dorme nunca

na mudez do cosmos
na incomensurável lonjura das cassiopeias
no mais escondido canto do mundo
a possibilidade de todas as coisas jaz
ainda que ténue
ainda que esmorecendo a cada instante

mas a esperança é a última coisa a morrer
seja a esperança das coisas belas como a das mais ignóbeis

em palavras todo o possível não acontece nunca

uma mulher

meses sem escrever
a rotina tinha vencido várias batalhas
empurrando-a para velhos vícios de sestas e vinho e cigarros à janela

os homens que a procuravam
encontravam um corpo que se escapara pelas madrugadas de solidão

ia lendo e as palavras dos outros soavam distantes na vastidão da alma
regressava aos sonos intermitentes e à bebida ocasional de um copo ou dois
quando ia à janela fumar o gato do vizinho caçava moscas colado ao vidro que separava as varandas

mais tarde quando voltou a escrever
optou por um verso longo e sem quebra
um verso incompreensível onde tudo era dito

rasgou-o e assim deixou de adormecer a meio do dia
deixou de beber e de fumar à janela
o corpo regressara e os homens que encontrava tinham porto para atracar

não escreveu mais e o gato não voltou a aparecer à varanda



a metáfora

desceu à rua como habitualmente
cumprindo a rotina velha de mil manhãs passadas
comprou o jornal e foi sentar-se num banco de jardim

do mundo as notícias de sempre
do jardim os pombos do costume

às pessoas que passavam acenava subtilmente
algumas retribuíam outras distraídas não

para além do jornal sobre o banco revelava-se também uma frase cravada na madeira
um amo-te Pedro sobressaía
declaração anónima mas definitiva

sorte a do tal Pedro
ou não que isto do amor nunca se sabe

um pombo mais atrevido debicava-lhe o chão perto dos pés
balançava o pescoço aos soluços para avançar
da rua um carro com pressa lançou uma rajada que fez tremer os ramos dos arbustos e das árvores vizinhas
e foi então que recordou a história de uma metáfora

que existe um tipo de árvore na savana africana cuja sombra da folhagem é tão densa
que quando o sol do zénite lhe cai em cima
projeta por baixo da copa uma sombra que parece feita de noite estrelada
a fina luz que passa é somente uma subtil poalha de luzes frágeis por entre os ramos e folhas
quem aí se deita e eleva o olhar espreitando
confunde dia e madrugada

imagine-se
em plena savana ao sol do meio-dia sob a sombra de uma árvore e julgando ser noite

levantou-se 
regressou a casa
a rotina chamava-o de novo para ser cumprida