um verso só

falou até o verão ser uma palavra inteira
não hesitou quando confrontado
entre a possibilidade de poesia ou de silêncio
explicou tudo até ao limite do que pode ser explicado

tu ouviste
mas vagueavas no lado oculto do que ele contou e falou
vagueavas pelo lado oposto de tudo isso

imaginavas as constelações todas
uma a uma polvilhadas no firmamento
ias cassiopeando
como uma febre
conspirando versos declamados
silêncios derradeiros já pronunciados

e se ambos fossem poema
seriam um verso só

pertença

teres vertigens nos olhos
e saber que a espera é o perfume do outono
que na melancolia conhecida dos poemas
jaz o verso abandonado numa imensidão de praia e mar
mudo perante o infinito
como um ninho de cegonha abandonado

não se regressa a nada a não ser ao fim
não existem recomeços
não se acerta o relógio profundo
esteja ele atrasado ou adiantado

os lugares que te sangram na boca
que rangem entre os dentes e cospem saliva e fogo
são a tontura contraditória
de saberes e não saberes
mas que a esses mesmos lugares pertences desde sempre





o resvalar do tempo

no aperto de se ser deserto
na quietude de um dia solitário
o teor das coisas sabe melancolicamente a pouco
as ruínas carregam ecos do passado
como sombras de oniros desaparecidos
e cavalos correndo ao longe nas planícies incendiadas de um oeste esquecido

chega-te à pele o sopro do resvalar do tempo

é certo que para que te seduzam
basta uma metáfora
ou duas

famintos de destino

o futuro com o seu avanço subtil sobre o presente
espera o sol oblíquo do ocaso
e enquanto vai sendo
já o teu rumor foi
pois não se agarra um instante nem se colhe um momento
eles derretem e deslizam por entre os dedos

decides que assim é e cismas até ao absurdo
fazes da teimosia uma arte
um capricho que insiste

sabes bem
que condenados há que vão pelo seu próprio pé para o cadafalso
que encaram o destino com fogo nos olhos
pois já viveram mil vidas e morreram mil mortes
nada temem e tudo anseiam
famintos de destino
e às mãos dos deuses sorvem nas linhas da própria sina

regressos

o vulto que vamos sendo na silhueta que nos calha
vai roendo o murmúrio que arde furtivo e lavra por dentro

e quando a poesia não chega
ela escreve-se sozinha
nasce nas catacumbas da alma
medra até se revelar ao espelho que nos devolve o ser

e diante desse pesadelo ou abismo
tudo se sabe
e só se acorda quando nos lançamos
como se na vertigem dessa queda regressássemos a nós
mesmo quando os regressos são obra de toda uma vida

Delírio

Entrou decidido e sentou-se à minha frente. Não o reconheci. Começou a falar enquanto eu bebia a última cerveja. Já antes dele entrar, essa decisão fora por mim tomada. Uma última cerveja, fosse qual fosse o desfecho.

O que dizia eu não percebia bem, mas evocava gente toda vestida de igual que se juntava para escrever.

Sobre isto, sim, eu já ouvira falar e testemunhara da veracidade da coisa. Não era incomum, perto da hora do fecho, gente igual à que ele descrevia, entrar pela porta do bar, afundar-se numa das mesas escondidas num canto e conspirarem umas quantas coisas impercetíveis.

Lá continuou mais algum tempo, ofegante, até se despedir, levantar-se e, tão decidido como chegou, sair.

Terminei a cerveja, quente e murcha. Paguei. 

Cá fora, no caminho de regresso a casa, apercebi-me de que estava a ser seguido. Estas coisas sabem-se, as sombras e os olhares emanam um peso impossível de velar.

Na esquina seguinte, escondi-me, esgueirei-me por detrás de um contentor do lixo, perscrutei e confirmei. Eram três homens, vestidos de igual, farejavam o meu caminho agora oculto. Deixei-os afastarem-se um pouco e arreei caminho. Mas eram quatro, afinal. Esse com o qual não contava, encostou-me à parede, imobilizou-me e chamou os camaradas. Não lutei. Levaram-me até um prédio abandonado do outro lado da cidade.

Lançaram-me numa cadeira velha. Havia uma mesa, um lápis e umas folhas em branco. Os quatro vestiam um fato preto, uma camisa branca coçada do uso e uma gravata negra e fina com um nó mal-amanhado e meio aberto no tiracolo.

Escreve, disseram.

Não questionei, escrevi, horas a fio.

A sala situava-se numa cave, havia uma janela corrida que dava para a rua, uma luz baça de candeeiro noturno era coada pelo vidro fosco. Os quatro olhavam-me, imóveis. O tempo foi passando, a primeira página redigida, virei-a, continuei.

Um deles saiu pela porta de ferro, quando voltou, trazia uma garrafa de água. Bebi e retomei a escrita.

Dei por mim num daqueles momentos de saber e não saber, como quando se falha e se acerta e, ainda assim, se insiste no erro do costume mas esperando um desfecho diferente. Enquanto escrevo, aceito a receita de enlouquecer, que não há outro caminho que não o da loucura, da entrega total a um instante e assim perpetuar um devaneio. Refugio-me na pele do momento, porque enquanto estas coisas sucedem, não sucedem outras e assim vou adiando o futuro e uma inevitabilidade.

Quando me começa a faltar a inspiração, lembro-me de um professor que tive. Recordo o ar tresloucado e os poemas que declamava a cada início de aula. Fazia-o numa língua que ninguém conhecia e onde cada verso rangia por entre os dentes e um rastro de cuspe e quase sangue desenhava-se nos lábios. Dizia que seria bom haver uma guilhotina à entrada da escola, que não funcionasse, obviamente, mas que se erguesse simbolicamente para que cada aluno e cada professor não esquecesse nunca que entre as profundezas da terra e o firmamento, há sempre cabeças prontas a rolar, eram as palavras dele após esses poemas iniciais. Lembro-me também do conselho que nos dava de cada vez que a mudez da vida se abatia em nós. Olhava-nos com o rosto sério e perguntava, quando não tenho nada a dizer, o que digo? E insistia para que colocássemos essa questão até ao infinito, até que as palavras se esgotassem, até que o silêncio tudo cobrisse com a quietude imensa que o sustenta. E rematava, Prometo-vos, meus caros, que após esse silêncio, alguma coisa irão de dizer, seja uma torrente infinita de coisas, seja um soluço tímido. Em ambos os casos, após tudo isso, podem sempre repetir a pergunta.

Agarrei-me a essa sabedoria e quando parecia que nada mais tinha a despejar nas folhas que se acumulavam à minha frente, lá ia escrevendo. Um pouco mais, palavra a palavra.

As horas passavam e do vidro fosco chegava agora uma luz de nascente, subtil ainda, mas com o prenúncio da manhã. Os meus quatro anfitriões mantinham uma postura grave, concentrada. Aos poucos, reparei que esperavam alguma coisa, ou alguém. Dava para notar, que afinal, tal como eu, desempenhavam um papel a mando de alguém.

Arrependo-me não ter questionado o meu primeiro interlocutor, talvez soubesse mais do que disse, talvez, quem sabe, até soubesse como escapar.

A porta de ferro abriu. Entrou uma mulher, também ela vestida com o mesmo fato, a mesma camisa gasta e o mesmo nó de gravata mal feito pendurado no pescoço.
Pode parar de escrever.

Pegou nas folhas, colocou-as dentro de uma pasta velha que trazia. Saiu.

Do outro lado da porta ouvia alguém a ler. Não sei se era o que eu acabar de escrever ou se uma outra coisa. Os quatros saíram também. Fiquei sozinho e talvez nunca tenha ficado tão sozinho como agora. Impossível esgueirar-me pela janela corrida junto ao teto. Havia que esperar.

Quando a porta voltou a abrir, regressou a mulher. Olhou-me, explicou-me que a solidão é uma queda interminável, que se nota na minha escrita um tempo cansado onde há muito navegam as palavras sem rota nem rumo.

Ao dizer-me estas coisas, senti o corpo a escapar-me, a cadeira a dissolver-se sob o peso da minha atenção, toda a sala nesta cave a evaporar-se. Dei comigo a acordar, de regresso ao bar, no meu canto e mesa do costume. A última cerveja multiplicada e o dono a querer fechar.

Perguntei-lhe se alguém se tinha sentado comigo. Respondeu que não, que nunca ninguém se senta comigo, que eu é que, às vezes, incomodo as pessoas. Pedi desculpa, paguei e sai.

Ninguém me seguiu até casa, só a minha sombra, essa sempre fiel. Até ao dia, quem sabe? Poderá haver uma noite que nem ela me acompanhe e que no meu regresso a casa, ao passar pelo prédio devoluto onde na cave se juntam os loucos escribas, nem penumbra eu desenhe no passeio. Talvez eu me deite no chão, junto à janela corrida que dá para a cave soturma e espreite lá para dentro. Pode ser que me veja, sentado, detido e obrigado a escrever. Pode ser que esse eu me olhe de volta, se aperceba da redundância, que olhar um louco nos olhos é inútil, a loucura arde para além da realidade, ela lavra no entretanto da eternidade.

Estas coisas são o que são, pairam no limite do relato e no limite da verdade. Há muito que vivo estes sonhos, que os caminho até à exaustão, até ser dia, até ser hora da medicação.

Ouço os enfermeiros a chegarem, entram pelo meu quarto, dizem que passei a madrugada muito irrequieto, que sendo assim, vão aumentar a dose.

Sorrio, rendido, quando a ponta da agulha desaparece pela veia.

Pergunto-me, ainda antes de desmaiar, que delírio me irá calhar a seguir.