ensaio sobre notas de prova de vinho do porto

vinho do porto vintage


os anos passam mas o ano da origem prevalece
o calor do xisto, as curvas das castas, o Douro nesse preciso momento, o mineral e o telúrico juntos para sempre
o púrpura desvanece
abrindo ligeiramente, pouco a pouco, despindo-se do escarlate e revelando, no limite da orla, uma tez de bronze e de floresta
a fruta vermelha, negra, fresca, ácida, amacia e em compota se concentra, arredondando-se e inundando os sentidos
camada a camada outros aromas acordam, folhas há muito caídas, cogumelos que despontam e delicados perfumes fumados em veludo se cobrem, como novelos de cetim e seda desenrolam-se no manto do paladar até ao impossível de uma lembrança


vinho do porto tawny


é um jogo de paciência pois o tempo não se engana nem engana
há que esperar
deixar lentamente o que um dia foi uva se torne passa
e que a passa se afine como vinho fino que é
e cada década que se esvai mais generoso se torna de generoso que sempre foi
a fruta que foi vermelha, negra e ácida, sonha agora em modo outonal
é fruta seca de avelã amendoada e nozes de cheiro a pinho
é fruta cristalizada em raspas de citrinos adocicados
a as cores alouram-se, douram-se como um pôr-do-sol que não acaba
e o vinho que se casa na pipa respira pelo carvalho avinhado
e na boca prolonga-se, quanto mais velho mais nos fica, mais tem que contar
e chegam-nos as especiarias longínquas, mascavadas e exóticas
e na contradição do doce amargor surge até um toque de café
no corpo adensa-se, concentra-se
e nos que a muito velhos chegam, com mais de um século disto
é gota a gota que se fundem em mel e em sombra cerrada de laivos de um sol mortiço
funde-se, implode
até na língua ser o que são os cataclismos cósmicos
sinestesia interminável

das canetas

Cada vez que me calha uma caneta diferente, brota-me dos dedos a obsessão de escrever, de lhe destapar o sussurrar e sentir os murmúrios. Deslizo pelo alvo de um papel, é um vício, uma condenação, uma inevitabilidade.
Curiosamente, sou um perdedor de canetas inveterado, semeio-as no esquecimento de um lugar perdido. Das que gosto, quando as perco, fica-me um silêncio desolador nas mãos e as palavras choram-se (sim, reflexivamente), esfumam-se.

alto mar

e um mar de sombras
onde as ondas se elevam como crinas de cavalos selvagens
chegando a uma praia de luz
espraiam-se em línguas de penumbra desenhando silhuetas numa areia tão branca que julgamos ser feita de nuvem

e as tempestades nascem ao largo em vagas imensas que são elas próprias oceanos inteiros despenhando-se no céu mesmo junto à linha do horizonte
dobrando-a como uma corda de guitarra
e os estrondos que provocam são hecatombes em si mesmo
gerando outras montanhas de breu
escurecendo o sol
atenuando-o numa lua pálida por trás da poeira celestial

em terra
abrigado
assisto a tudo isto
e penso no que poderia sentir e eventualmente escrever
mas não sinto nem escrevo
e nesses nadas um outro cataclismo se ergue
mais imenso mais infinito do que aquele que vejo
há no marasmo do silêncio as combustões de todas as estrelas e galáxias
todo amor e toda a desilusão

e recordo o que li uma vez num sonho de uma mulher

talvez não te tenha amado em certos momentos em que te amava e talvez te tenha amado noutros momentos em que tu te apagavas
desses desencontros de há mil anos
semeámos a quietude que agora grita em alto mar

lobos

No céu, ao longe, gaivotas voam cortando nuvens e tons de azul. Sobre os telhados, existem lobos que esperam a noite. Uivam em silêncio, e esta aparente contradição explica-se pela lua invisível que não desponta. Esses lobos habitam em versos que eu não escrevi, e são a derradeira alcateia a velar sobre a poesia. Guardiães de palavras e do peso que estas carregam. Têm nos olhos todas as histórias de amor, todos os beijos e todas as vertigens da alma. Movem-se juntos pelos telhados das nossas casas e aninham-se em cantos de penumbra quando o sol queima ou em abrigos quando a chuva cai. Noites há em que o uivo deixa de ser silencioso e rasga todo o firmamento, vibrando pelas paredes do que somos e estilhaçando a nossa alma como quando cedemos a um abraço ou carinho.
Os lobos não se domam, são a ultima fronteira do que é ser livre e apaixonado. Os lobos são fogo, incêndio de vida, cataclismos permanentes, como lá nas profundezas do cosmos, quando as galáxias colidem.

Paraíso Infantil


Acho que já escrevi sobre ela antes. Mas agora nem é bem sobre ela que escrevo.
Na avenida da Boavista havia um infantário chamado Paraíso Infantil. Andei lá dos 3 aos 5 anos e esta fotografia, tirada hoje durante uma corrida matinal, leva-me a voltar ao tema.
Lá encontrei o meu primeiro amor. Chamava-se Suana era loira de olhos azuis e vivia nos prédios brancos. Isto do era loira de olhos azuis e vivia nos prédios brancos ficou tatuado no meu dizer até aos dias de hoje, como uma expressão idiomática orgânica. No fundo, não há outra forma de eu a mencionar (nunca mais a vi, e isso não é importante, pois revi-a em alguns outros rostos e belezas)
E o que me espanta é que aos 3 anos já era possível o amor. Não a correspondência do mesmo, isso é, ainda no presente, um mistério por desvendar, mas a ideia do amor perante a beleza. Sabia-o, já nessa altura de criança, que no pasmo da alma perante a beleza, a absoluta rendição era possível. E tudo isto é algo de subjectivamente abstracto mas real, como uma vertigem no corpo e no âmago do espírito. E se me explicasse melhor, diria que é algo meu, algo que senti nessa altura diante uma "mulher" demasiado bonita para que o olhar pudesse suster tamanho assombro. Não é sequer um sentimento, é um sismo silencioso, um arrepio. Um reflexo.