tempo

tempo
o que sobra e o que não chega
expiar
excomungar
exorcizar

a desobediência civil da alma
na noite demasiado quente de febre que te acometeu

porque o passado esquecido dá lugar a futuros alternativos que nunca acontecerão
e todos os momentos petrificados nas roldanas do relógio cósmico
como coisas a ignorar totalmente ou a desvendar definitivamente

a depressão da melancolia que tanto te faz falta
mas que tanto te transtorna monotonamente

as esperas nas paragens de autocarro e os acordes de guitarra
os livros em silêncio e as garrafas por abrir
as palavras por escrever e as roupas por vestir
as futilidades necessárias ao funcionamento da rotina
e as loucuras prometidas a cada gesto vazio ou beijo roubado

o lento correr da noite na profunda solidão
e as manhãs a rebentarem de sol ou de chuva na janela que esqueceste de fechar

o texto definitivo como um tiro certeiro
um golpe fatal e simbólico como os samurais e seu seppuku
ou o abrolhar de uma flor em fruto
uma pedra no canto de um passeio por onde ninguém passa

tempo
o que sobra e o que não sobra nem chega nem passa nem nada

futebol

o Céu é verde
e poderá ter ou não ter duas balizas
poderão ser onze de cada lado ou não
mas terá de certeza uma bola

A última carta - o romance inexistente

A ideia tem 20 anos mais ao menos. E foi evoluindo. Obedeceu às leis da metamorfose. Tendo nascido na minha adolescência, obviamente que o princípio é romântico e ingénuo. Seria um romance mas a verdade é que se ficou por três capítulos até agora, reescritos várias vezes ao longo destas duas décadas.
Uma historia de amor pois claro.
Um homem e uma mulher e a ideia do amor. Esta é a estrutura.
A preguiça, o adiamento, a falta de jeito e talvez um medo profundo de me entregar à escrita, remeteu a história para os calabouços da alma.
Os nomes não mudaram desde a nascença, ele Pedro, ela Lara. Sem razões óbvias a não ser que para ele escolhi um nome banal, para ela um nome menos usual e que soa bem.
O ponto de vista é dele, ela sempre ausente, apenas lembrada. Toda a história é um relembrar e paira um segredo que nem eu conheço, uma ruptura brusca por explicar.
Recuso biografias de qualquer leitura, até porque tudo isto tem 20 anos e há 20 anos eu não tinha vivido nada ainda e o que me movia era uma imaginação romanticamente lamechas como convinha.
Mas mesmo já nessa altuta havia uma preocupação (atabalhoada) com a escrita e a palavra, um exercício estético.
Deixo aqui a ligação do que já tinha publicado há uns anos no blogue. 
Para se perceber bem a coisa e a tal lei da metamorfose, sobre isto, mentalmente, já escrevi tudo e a coisa já é uma trilogia de romances. Um desperdício portanto, uma pena.


manhãs tardias

houve um tempo de manhãs tardias
de um lento acordar onde o corpo despertava antes de tudo o resto

sobre a cama já esmorecidos os rumores da noite anterior
e a ausência de qualquer corpo a impôr-se com o silencio da solidão reencontrada

porque povoaste-te de beijos roubados de carícias e atrevimentos apenas possíveis num desespero de sentires alguma coisa
qualquer coisa

mas as manhãs tinham o peso de um arrependimento

arrependimento não passado mas futuro
como se o remorso viesse do porvir
qual anunciação de que mais cedo ou mais tarde começarias a acordar e já o sol se teria posto
e a tua vida seria sempre noite ou madrugada
alucinações e poesias adiadas

as manhãs ainda te assustam hoje
e talvez esse medo não se apague nunca
porque a manhã é um mundo perdido e longe
afastado do que os vícios te tentam
as manhãs são proibidas aos teus olhos

a seres esquivo de ti mesmo a noite e as penumbras oferecem tudo o que procuras

porventura não te julgas digno de amanhecer

trilogia do início - antes


trilogia do início

II

antes

quase no início

no antes
que é lugar igualmente desconhecido
povoado ainda de silêncios cujo rumor mói subtilmente entre as camadas da alma
deslizando no magma incandescente do que sou
e aos poucos petrificando
mas ainda sem raiz

isso:

o prelúdio é
um rio e árvores inteiras a navegar pela corrente fora
sem destino a não ser o provável oceano ainda mais incerto
é o sonho  - muito enevoado ainda - de naufragar
de fundear e empoeirar-me da solidão necessária antes de voltar a mim
seja eu qual for quando a mim voltar

e já não é apenas de tempo que o tempo precisa
é de quietude e de estagnação
e precisa desesperadamente desse exacto momento caótico que antecede o que acontece
a orla de todo o possível
o limite

o antes.

dos espaços vazios

Foi dito, e é sabido, que existe no universo mais espaço vazio do que preenchido. Entre os átomos, as moléculas, os elementos e em todo o infinitamente pequeno existe o limbo da matéria, o mar de pequenos nadas. Explicam, aqueles que sabem, que nada verdadeiramente se toca. Mas ainda assim, a nossa humanidade sabe bem que algumas coisas se tocam, têm forçosamente de se tocar. Se não como se explicam os estremecimentos da alma, os assombros do espírito, as vertigens profundas dos seres? E não, o campo electromagnético não explica tudo. Tem de haver uma onda invisível e indizível que percorre o tecido do mundo e da existência. Tem de haver poesia nos olhares que nos arrebatam e apenas as palavras certas a podem nomear. Tem de viver algo nos gestos de carinho ou na promessa dos mesmos, até mesmo no adiamento do afago que quase desenhamos. A certeza inabalável de que nesse espaço vazio onde nada vagueia haverá um rumor feito de outra voz, um eco cuja vibração não se mede com nenhum aparelho que não seja a rendição do corpo perante a promessa da beleza momentânea de cedermos, de sermos mais que nós mesmos, ou talvez de deixarmos de ser o que quer que sejamos para passarmos a ser uma outra coisa.

cumplicidade


rostos e almas penadas
sem rumo nem porto seguro à espera
faces apagadas sem expressão que denuncie uma réstia de normalidade
todo um tratado sobre a loucura de quem se perdeu

mas apesar de tudo isto
lado a lado
a cumplicidade é tecido feito de eternidade
e por muito que se estique que se esfarrape que se canse
não se desune nunca

quadro numa galeria em Aix-en-Provence