Poderia ter passado os olhos pelo livro e ser apenas isso o que aqui me traria. Mas não, passou os olhos e os olhos lá ficaram, ancorados nas palavras que lá estavam. E dito isto há que dizer o resto. As palavras diziam coisas, o que por si só não chegaria, mas as coisas que diziam eram da mais profunda beleza, da mais redonda e perfeita poesia. Como não prenderem-se e perderem-se então os olhos por lá? A beleza é isso, o íman, a vertigem, a gravidade com o peso de sua infinita e inquebrável lei.
Mas para ser sincero, no limite do que a sinceridade permite num exercício destes, o que me traz aqui será uma outra coisa que não a perda dos olhos de quem os passou pelo livro. O que me traz aqui é algo que esqueci. É sabido que o olvido ocorre quando se julga estar perante o que se revela ser novo. Mas de novo nada existe, apenas o esquecimento renasce, cada vez mais perfeito, mais intenso nessa força bruta que é a inspiração.
Do livro ficam os ecos e as citações sublinhadas a lápis e uma nova leitura no muito mais futuro que o daqui a pouco. Do solene e reverencial ato de esquecer e julgar-se frente ao que nunca antes existiu, fica, tão só, um equívoco, pois apenas existe memória ou amnésia e o meio termo de ambos.
Chegamos, por isso, facilmente à conclusão de que memória e amnésia são uma e a mesma coisa, tecido do mesmo pensar, firmamento do mesmo cosmos.
Existiram povos cuja literatura foi revelada através do esquecimento, as histórias não chegavam ao fim porque ninguém o conhecia, e em poucas gerações nem o início das histórias sabiam. Outros povos porém, a literatura revelava-se através da memória e do seu crescimento exponencial. Não tinham fim tão pouco essas histórias pois os detalhes eram tantos que jamais se chegava ao final, e em poucas gerações nem o início conseguiam contar porque a memória começava antes do início, no antes.
Quando, num acaso, o equilíbrio entre memória e amnésia for perfeito, imagino alguém passar os olhos por um livro e aí os deixar, para sempre, e um outro escrever sobre isso. Ou pelo menos tentar.