Caminhamos juntos desde a primeira noite. Uma certa ideia do amor a acompanhar-nos. No silêncio das ruas desertas pudemos olhar o céu e a poalha de estrelas. De dentro das casas chegava-nos a luz fatiada pelas persianas corridas e um ou outro gato a esgueirar-se pelas vielas. A madrugada avançava, adensando-se ainda mais na quietude de todas as coisas e as sombras dos lampiões cresciam até ao negrume dos jardins mudos. Nós os dois mais uma certa ideia do amor, trindade perfeita no calor noturno, em comunhão serena e rendida.
33
Das capicuas. 33 anos. Por que não? Idade fatídica para a parte humana de J.C. e de Sam Cooke por exemplo. É assim, 15 de Março há 33 anos, nascia eu do ventre de minha mãe enquanto o meu pai jogava à bola. Há quase dois milénios atrás, Júlio César era apunhalado pelo próprio filho e outros naifas.
Andamos nisto
Andamos nisto e reconhecemos certos gestos quando, de longe, observamos os outros. E andamos nisto e, por vezes, arrebata-nos a ausência do carinho a que estamos habituados. As minhas mãos vazias das tuas quando vejo televisão, o meu olhar sobre o lado deserto que é o teu na cama, o silêncio na cozinha quando preparo comida apenas para um, a escuridão da entrada por não chegares. Andamos nisto e é bom porque o valor das coisas somos nós que o pomos lá dentro e é sabido que quanto mais ausência se adensa no tempo mais valiosas se tornam as coisas. No fundo somos avaliadores, aprumados dentro de nós quando a solidão levanta a voz e nos diz, com todas as letras, o que realmente nos faz falta. A mim, és tu que me fazes falta. E é bom para que quando estiveres eu saiba ser-nos por inteiro, sem condições, sem distracções e sem hesitações.
Saldanha da Gama revisitado
Saldanha da Gama foi um artista que conheci em Bruxelas. Um homem no mínimo peculiar. Escritor, artista plástico, anarquista, possuidor de um humor desarmante, foi um homem especial.
Tive o prazer e a honra de escrever uns textos para acompanhar uns "quadros" que ele fez, numa exposição na Orfeu em Bruxelas. As imagens não estão nas melhores condições, os textos são o que são, mas é das coisinhas de que mais me orgulho. Tratou-se na altura, para mim, de olhar os "quadros" de Saldanha da Gama e escrever o que me pareceu serem as suas más (mas deliciosas intenções) nestas colagens, pinturas, chamem-lhes o que quiserem.
Trunfo é copas
O baralho do corpo das
mulheres dá-se à exibição. Cartas na mesa, na cama, ao espelho, na cadeira e no
banho. Solitárias ou acompanhadas, multiplicadas nas copas dos seios expostos,
esperando o corte de algum outro naipe. Com elas, seja qual for o jogo, não há
espadas que as assustem, paus que as satisfaçam totalmente nem ouro que lhes
seja suficiente. Com elas o trunfo é sempre copas, esse grall do amor, meio
cheio, meio vazio dependendo do tempo.
Correspondência
Na arte perdida (ou
revelada, lá está) que é a epistolaria, é muitas vezes menosprezado o papel do
envelope. Papel enquanto material e papel enquanto metáfora. O envelope é o
último reduto do silêncio antes da revelação, da despedida, da confissão, da
declaração (de amor ou impostos, ou de impostos amores ou ainda de amores
impostores), do desabafo, do ruído, da difamação, da cordialidade, da amizade,
etc, etc. Pandora talvez não o soubesse (a caixa era, na verdade, um envelope
selado), se o soubesse talvez o resto não fosse História.
A lógica da batata entre parêntesis
A lógica da batata
perdeu-se (ou revelou-se, é que nisto das artes plásticas {recicladas ou não}
entre a perdição e a revelação vai a distância de um pêlo {encravado ou não
isso é outra história} e nunca se sabe bem se as diferenças não são, afinal,
igualdades {ou vice-versa}), mas dizíamos nós, perdeu-se a lógica da batata em
colagens caleidoscópicas. Tanto se imiscui entre dois jogadores de ténis
(trocarão eles bolas ou batatas?) como entre um casal num salão de dança e uma
sombra desenrolada num pedaço de relva. O negativo de uma mulher (que
conjugação de palavras tenebrosa essa: o
negativo de uma mulher, não será esse o primeiro sinal do Apocalipse?)
encafuado entre uma árvore ruiva e metade de um losângo. Se isto não são provas
irrefutáveis que a lógica da batata perdeu-se (ou revelou-se, é que nisto das
artes plásticas...
Fazer a ponte
Fiquei surpreendido em
descobrir com a tua carta e o fiel desenho do teu palácio, naquilo a que os
parisienses chamam bucolicamente de “la campagne”, fotografias tuas juntamente
com as das tuas irmãs, primas e amigas. Não vos sabia tão fotogenicamente
sugestivas. Para além do óbvio amor ao ciclismo, narcisismo e outros ismos que
me abstenho de mencionar e que vos une a todas. Se não for inconveniente, no
próximo fim-de-semana alongado, alongo-me eu também até vós e, se assim o
desejarem, alongo-me convosco em “vosco” e noutros “voscos” que tais...
Poderíamos “faire le pont” todos em conjunto, seria “amusant” e “coquin”.
O auto-retrato geográfico
Relembrar os países por
partes, por colagens. O passado a preto e branco, a loja (amarela) daquilo que
temos a menos na cabeça e nos coloca acima do pensamento uma notícia triste.
Postais ilustrados de outro tempo, combinados com restos de uma viagem de
avião, palavra que rima com mão e que encontramos de palma escondida para que
não se leia a sina. Uma data de cravos em Abril, um brinco feito anzol e por
trás de montanhas sobem os raios do sol. Ao centro, sob a tal notícia triste, o
mestre d’obras ou o mestre das obras, destas seguramente, de outras
provavelmente.
Pescando galinhas
Não se apanham moscas com
vinagre mas a pergunta é se se apanham galinhas com redes. Sobretudo as pernas
de galinha que são mais irrequietas e se envolvem em meias. Meia palavra
para bom entendedor chega, já diz o povo, esse sábio, mas galinha (ou “poule”
em francês) com meias de rede até meia palavra se dispensa. Um coro de pernas
de galinha, presas em meias de rede, cantando e batendo as asas freneticamente.
Mas é sabido que nem as galinhas cantam nada de jeito nem voam lá grande coisa.
As dos outros
Ao termos que retratar o
rosto de mulheres mais vale plagiar o retrato das mulheres dos outros (e se
forem famosos como o Klimt ainda melhor). Embora o plágio seja universal e
inevitável, já que nada se cria e que tudo se transforma (o rosto das mulheres
não foge às regras), sempre se pode brincar com a mulher dos outros, recortando
e colando os retratos a gosto.
Baralhar e dar de novo
As cartas baralham. As
cartas baralham-se. As mulheres também. Aliás, os seus corpos é que baralham e se
baralham. Com sorte, dão-se de novo, nem que seja em postais (mais ao menos
artísticos) ou em literatura de títulos deliciosamente pleonásticos. As várias
cartas trocadas no jogo epistolar podem levar a uma certa confusão artística
mas há que ler nas entrelinhas para se perceber que o caos não é mais que uma
ordem disfarçada. Matem-se os artistas, baralhem-se as mulheres e dê-se de
novo, pode ser que desta vez saia algo mais que duques ou duquesas.
Camuflagem
Dizem que a camuflagem é
um recurso resultante da Selecção Natural que permtiu a certos seres vivos
escaparem à extinção. Na maior parte dos casos, a camuflagem permite enganar os
predadores mas por vezes é utilizada pelos predadores para enganar as presas. Neste
caso, ao falarmos de mulheres, a camuflagem serve para ambos os casos,
dependendo dos humores. Elas não sabem é que para enganarem os homens não
precisam de tanto, basta aparecerem.
A (outra) origine du monde
Ao centro a modelo de
Courbet para a L’origine du monde,
ficou curiosa e pôs-se a coscuvilhar(-se) sob o olhar (supõe-se) atento do
homem do chapéu. No círculo imediato de influência temos pessoas de vários
quadrantes cuja a única coisa em comum (e que não é pouco) é serem pedaços de
gente. Os três reis magos afastam-se do centro e vão com dois mil anos de
atraso num postal ilustrado. As pernas são semeadas um pouco por todo o lado e,
no fundo no fundo, as colagens sempre ajudam a passar o tempo.
Dos penicos na cabeça
- Não acreditas na Liberdade?
- Nem por isso.
- Mas não leste o Quixote? Não leste quando ele se vira para Sancho Pança e lhe diz que a Liberdade é o bem mais precioso que os deuses deram ao Homem?
- Estás-me a citar um gajo que quando disse isso tinha um penico na cabeça.
- Mas precisamente por ter um penico na cabeça é que ele tem razão. As verdades maiores são ditas quando se tem um penico na cabeça, meu caro. Se não sabes isto, sabes muito pouco.
Dos antepassados
Ouvi histórias, algumas. Do lado da minha mãe e do lado do meu pai. Da mãe são histórias de vareiras por um lado e de lavradores por outro. Das vareiras a imensidão de filhos, do mar, dos lutos. Dos lavradores um tio-avô ou bisavô que foi morto por engano numa espera que correu mal. Um bisavô que morreu exactamente um ano antes de eu nascer e que tinha por hábito quando vinha lá do Minho ao Porto, ficar na avenida a contar os carros que passavam durante horas. Do lado do pai um bisavô que tinha duas famílias e que as manteve. Um que era estucador de tectos. Uma bisavó que caiu pelas escadas ao separar dois netos que se pegaram.
Dos antepassados ouvi histórias. A eternidade é isso, palimpsestos, farrapos dos ecos, mentiras novas sobre verdades antigas. Até sermos silêncio.
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